14. SÁBADO 8 DE MARÇO — SEGUNDA-FEIRA 17 DE MARÇO


Lisbeth Salander passou a semana na cama com dores no abdome, hemorragias no ânus e outras feridas, menos visíveis, que levariam mais tempo para curar. O que ela vivera ultrapassara de longe o primeiro abuso no escritório; não se tratava mais de um ato de coerção e de humilhação, mas de uma brutalidade sistemática.

Percebia tarde demais que havia subestimado Bjurman, e muito.

Tomara-o como um homem de poder que gostava de dominar, e não como um sádico total. Ele a mantivera algemada a noite toda. Várias vezes ela pensou que fosse ser morta, e houve um momento em que ele pressionou o travesseiro sobre seu rosto até ela quase desmaiar.

Não chorou.

Afora as lágrimas causadas pelas dores físicas, não derramou uma lágrima sequer. Após deixar o apartamento de Bjurman, claudicou até o ponto de táxi da Odenplan, voltou para casa e subiu com dificuldade a escada até chegar a seu apartamento. Tomou um banho e lavou o sangue dos genitais. Depois bebeu meio litro de água, ingeriu dois soníferos e desabou na cama com o cobertor puxado até a cabeça.

Despertou por volta do meio-dia de domingo com a cabeça dolorida e vazia, com dores nos músculos e no baixo-ventre. Levantou-se, bebeu dois copos de leite e comeu uma maçã. Tomou mais dois soníferos e voltou a se deitar.

Só teve forças para sair da cama na terça-feira. Foi comprar uma pizza Billy Pan, aqueceu-a no microondas e encheu uma garrafa térmica com café. Depois passou a noite lendo na internet artigos e teses sobre a psicopatologia do sadismo.

O que mais chamou sua atenção foi um artigo publicado por um grupo de mulheres americanas. A autora afirmava que o sádico escolhia suas ligações com uma precisão quase intuitiva: sua melhor vítima era a que se prestava voluntariamente a todos os seus desejos por acreditar que não tinha outra escolha. O sádico escolhia indivíduos que dependiam de outra pessoa, e tinha uma capacidade inquietante de identificar as presas que lhe convinham.

O dr. Bjurman a escolhera como vítima.

Isso a fez refletir.

Isso também indicava que idéia as pessoas faziam dela.


Na sexta-feira, uma semana após o segundo estupro, Lisbeth Salander saiu de casa para ir a um tatuador em Hornstull. Havia telefonado para marcar hora e ele não tinha outros clientes na loja. Ele a saudou com um movimento de cabeça quando a reconheceu.

Ela escolheu uma pequena tatuagem, simples, na forma de uma estreita faixa, e pediu que ele a pusesse no tornozelo. Mostrou o lugar.

— A pele é muito fina. Vai doer um bocado — disse o tatuador.

— Não faz mal — Lisbeth respondeu, levantando a calça e apresentando a perna.

— Está certo, uma faixa. Você já tem muitas tatuagens. Tem certeza de que quer mais uma?

— É um lembrete — ela disse.


Mikael Blomkvist deixou o Café Susanne na hora em que ele ia fechar, às duas da tarde do sábado. Estivera passando a limpo suas anotações no notebook, e foi até o Komsun comprar comida e cigarros antes de voltar para casa. Havia descoberto a especialidade local: a pölsa cozida com batatas e beterrabas vermelhas — um prato que jamais apreciara, mas que por uma estranha razão combinava perfeitamente bem com uma pequena casa no campo.

Por volta das sete, pôs-se a refletir enquanto olhava pela janela da cozinha. Cecilia Vanger não havia telefonado. Ele a vira brevemente no café, no começo da tarde, quando ela fora comprar pão, porém estava mergulhada em seus próprios pensamentos. Tudo indicava que não ia telefonar naquele sábado à noite. Olhou para o pequeno aparelho de tevê que quase nunca ligava, mas preferiu instalar-se no banco da cozinha e abrir um romance policial de Sue Grafton.


Lisbeth Salander retornou ao apartamento de Bjurman na Odenplan na hora combinada, sábado à noite. Ele a fez entrar com um sorriso polido e acolhedor.

— E hoje, como vai, minha cara Lisbeth? Ela não respondeu.

— Acho que exagerei um pouco na última vez — ele disse. — Você me pareceu meio nocauteada.

Ela apenas sorriu com o canto dos lábios e ele sentiu uma súbita inquietação. Essa menina é maluca. Não posso me esquecer disso. E perguntou-se se ela poderia se adaptar.

— Vamos para o quarto? — perguntou Lisbeth Salander.

Por outro lado, parece que ela só sabe pedir isso... Pôs-lhe o braço sobre o ombro como fizera no encontro anterior, para levá-la até o quarto. Hoje vou mais devagar com ela. Para criar confiança. Ele já havia deixado as algemas em cima da cômoda. Foi só quando se aproximaram da cama que o dr. Bjurman percebeu que alguma coisa não ia bem.

Era ela que o conduzia à cama, não o contrário. Ele se deteve e, com perplexidade, viu-a tirar algo do bolso que a princípio acreditou ser um telefone celular. Depois viu os olhos dela.

— Diga boa-noite — ela disse.

Pôs o bastão elétrico debaixo da axila esquerda dele e disparou setenta mil volts. Quando as pernas dele começaram a ceder, ela aproximou seu ombro e mobilizou todas as forças para fazê-lo cair sobre a cama.


Cecilia Vanger sentia-se ligeiramente bêbada. Decidira não telefonar para Mikael Blomkvist. A ligação deles adquirira a aparência de uma ridícula farsa de alcova que obrigava Mikael a rodeios e desvios para poder encontrá-la sem ser notado. Ela se comportava como uma adolescente apaixonada incapaz de controlar seu desejo. Sua conduta nas últimas semanas fora absurda.

O problema é que comecei a gostar muito dele, pensou. Vou sofrer com isso. E passou um bom tempo desejando que Mikael Blomkvist nunca tivesse vindo a Hedeby.

Ela havia aberto uma garrafa de vinho e bebido dois copos sozinha. Ligou a tevê para ver o noticiário e tentar entender o que acontecia no mundo, mas imediatamente se cansou dos comentários racionais que explicavam por que o presidente Bush devia esmagar o Iraque com bombas. Instalou-se então no sofá da sala com o livro de Gellert Tama sobre o louco que matara onze pessoas em Estocolmo por motivos racistas. Só conseguiu ler algumas páginas antes de ser obrigada a pôr o livro de lado. O assunto a fez pensar imediatamente em seu pai, em quais seriam os fantasmas dele.

A última vez em que tinham se visto fora em 1984, quando o acompanhou, com Birger, numa caça à lebre ao norte de Hedestad, para que Birger testasse um novo cão de caça — um hamilton stövare adquirido recentemente. Harald Vanger tinha setenta e três anos e ela fizera o possível para aceitar sua loucura, essa loucura que transformara sua infância num pesadelo e afetara toda a sua vida adulta.

Cecilia nunca fora tão frágil como naquela época. Seu casamento se desfizera três meses antes. Mulher que apanha do marido — expressão banal. Para ela, isso significava maus-tratos leves porém contínuos. Ameaças, bofetadas, empurrões, ser derrubada no chão da cozinha. As explosões do marido eram sempre inexplicáveis, mas os golpes nunca eram fortes o suficiente para feri-la a sério. Ele evitava bater nela com o punho, e ela se acostumou.

Até o dia em que Cecilia revidou e ele se descontrolou. No final, enlouquecido, ele a atacara com golpes de tesoura nas costas.

Arrependido e em pânico, conduziu-a ao hospital, onde inventou a história delirante de um acidente, que a equipe de emergência logo decifrou à medida que ele ia pronunciando as palavras. Ela sentiu-se envergonhada. Deram-lhe doze pontos de sutura e ficou dois dias no hospital. Então Henrik Vanger foi buscá-la e levou-a para a casa dele. Nunca mais falou com o marido.

Naquele dia ensolarado, três meses depois do fim do casamento, Harald Vanger estava bem-humorado, quase amável. Mas de uma hora para a outra, em pleno bosque, passou a insultar grosseiramente a filha, fazendo comentários vulgares sobre sua vida e seus hábitos sexuais, terminando por dizer que era natural que uma puta como ela não soubesse conservar um homem.

O irmão nem sequer reparou que as palavras do pai a atingiam como uma chicotada. Birger Vanger limitou-se a rir e a passar o braço em volta de seus ombros, tentando desanuviar a situação a seu modo, com um comentário do gênero Sabemos bem como são as mulheres. Deu uma piscadela para Cecilia e aconselhou Harald Vanger a ficar atento a uma pequena elevação do terreno.

Houve um segundo, um instante gélido, em que Cecilia olhou para o pai e o irmão com a consciência súbita de que trazia na mão uma espingarda de caça carregada. Fechou os olhos. Se não tivesse feito isso, teria levantado a arma e disparado os dois cartuchos. Sua vontade era matar o pai e o irmão. Mas abaixou a espingarda, girou os calcanhares e voltou ao lugar onde haviam estacionado o carro. Deixou-os ali e voltou sozinha para casa. Desse dia em diante, passou a falar com o pai só em raríssimas ocasiões, quando obrigada pelas circunstâncias. Negara-lhe acesso à sua casa e nunca ia vê-lo na casa dele.

Você arruinou a minha vida, pensou Cecilia Vanger. Arruinou a minha vida desde a infância.

Às oito e meia da noite, Cecilia Vanger pegou o telefone e pediu que Mikael Blomkvist fosse vê-la.


O dr. Nils Bjurman sofria um martírio. Seus músculos não respondiam, o corpo parecia paralisado. Não tinha certeza de haver perdido a consciência, mas estava desorientado e sem a menor lembrança do que havia acontecido. Quando recuperou lentamente o controle do corpo, viu que estava nu, deitado de costas na cama, com os punhos atados por algemas e as pernas dolorosamente afastadas. Tinha queimaduras no local onde os eletrodos haviam tocado seu corpo.

Lisbeth Salander trouxera a poltrona de vime para perto da cama e, com as botas em cima do colchão, esperava pacientemente, fumando um cigarro. Quando Bjurman tentou falar, ele percebeu que sua boca estava coberta por uma fita adesiva larga. Virou a cabeça. Ela havia aberto e esvaziado uma das gavetas da cômoda.

— Descobri seus brinquedinhos — disse Salander.

Brandiu um chicote e remexeu na coleção de objetos eróticos, mordaças e máscaras de borracha espalhadas no chão.

— Para que serve este treco? — E mostrou um enorme pênis anal. — Não, não tente falar, não estou entendendo o que você diz. Foi o que utilizou em mim na semana passada? Basta balançar a cabeça. — Ela se inclinou para ele, divertindo-se antecipadamente com a resposta.

Nils Bjurman sentiu um súbito calafrio de terror no peito e se descontrolou. Forçou as algemas. Ela assumiu o controle. Impossível. Estava impossibilitado de fazer o que quer que fosse quando Salander se inclinou e pôs o tampão anal entre suas nádegas.

— Não é assim que um sádico faz? — ela perguntou. — Gosta de enfiar coisas nas pessoas, não é verdade? — Fitou-o. O rosto dele era uma máscara inexpressiva. — Sem lubrificante, não é mesmo?

Bjurman urrou através da fita adesiva quando Lisbeth Salander afastou brutalmente suas nádegas e enfiou o tampão no lugar previsto.

— Pare de berrar — disse Lisbeth Salander imitando a voz dele. — Se não se comportar, serei obrigada a te punir.

Levantou-se e contornou a cama. Ele a acompanhou com o olhar... Merda, o que é isso? Lisbeth Salander havia trazido a tevê de tela grande da sala para o quarto. O aparelho de DVD estava no chão. Ela olhou para ele, sempre segurando o chicote na mão.

— Está prestando bastante atenção? — perguntou. — Não tente falar, basta balançar a cabeça. — Entende o que estou dizendo?

Ele assentiu com a cabeça.

— Certo. — Ela se inclinou para pegar sua mochila. — Reconhece isto? — Ele aquiesceu com a cabeça. — É a mochila que eu trazia quando vim te ver na semana passada. Peguei emprestada da Milton Security. — Ela abriu um zíper na parte inferior. — Aqui tem uma câmera digital. Você costuma assistir de vez em quando Insider na Tv3? Os repórteres sacanas utilizam uma mochila como esta para filmar cenas com uma câmera oculta.

Tornou a fechar a mochila.

— Deve estar se perguntando onde fica a objetiva. O detalhe está todo aí. Grande angular com fibra ótica. A lente parece um botão e está disfarçada na fivela da alça. Você deve estar lembrado que eu pus a mochila bem aqui, em cima desta mesa, antes que você começasse a me tocar. Tomei o cuidado de verificar se a objetiva estava dirigida para a cama.

Ela mostrou um DVD e a seguir o introduziu no aparelho. Depois virou a poltrona e se instalou de modo a poder ver a tela da tevê. Acendeu mais um cigarro e acionou o controle remoto. O advogado Bjurman viu-se abrindo a porta a Lisbeth Salander. Não sabe ler as horas?, ele perguntava, irritado.

Ela passou o DVD inteiro. O filme tinha noventa minutos de duração e terminou no meio de uma cena em que o dr. Bjurman, nu e encostado à cabeceira da cama, bebia um copo de vinho enquanto contemplava Lisbeth Salander estendida com as mãos atadas nas costas.

Ela desligou a tevê e continuou sentada na poltrona sem dizer nada por uns dez minutos e sem olhar para ele. Bjurman nem ousava se mexer. Ela se levantou, foi até o banheiro, depois voltou e sentou-se de novo na poltrona: Sua voz era como lixa.

— Cometi um erro na semana passada — disse. —Achei que mais uma vez seria obrigada a te chupar, o que é absolutamente nojento, mas não ultrapassa demais minhas capacidades. Achei que fosse obter, de modo muito tranquilo, provas inquestionáveis, evidentes, de como você é um canalha perverso e imundo. Eu o subestimei. Não percebi o quanto você é um sujeito podre e doente. Vou ser bem clara — ela continuou. — Esse filme mostra você estuprando uma jovem de vinte e quatro anos, retardada mental, da qual você é o tutor responsável. Com certeza você nem imagina o quanto posso ser retardada mental quando é necessário. Qualquer um que vir esse DVD vai entender que você não só é um lixo mas também um sádico louco furioso. Um filme bem instrutivo, não acha? Eu diria que você, e não eu, é que seria internado. Concorda comigo?

Esperou. Ele não reagiu, mas ela viu que ele tremia. Pegou o chicote e desferiu um golpe seco nos órgãos sexuais dele.

— Concorda comigo? — repetiu com voz mais forte. Ele assentiu com a cabeça.

— Ótimo. Assim estamos nos entendendo.

Ela puxou a poltrona e sentou-se de modo a poder olhá-lo bem nos olhos.

— Bem, o que você e eu poderíamos fazer para remediar essa situação? — Ele não podia responder. — Não tem algumas idéias? — Como ele não reagisse, ela esticou a mão, pegou seus testículos e puxou até o rosto de Bjurman se contorcer de dor. — Tem ou não tem algumas boas idéias? — repetiu.

Ele balançou negativamente a cabeça.

— Melhor assim. Porque, se por acaso vier a ter alguma idéia no futuro, eu ficarei muito zangada com você.

Jogou o corpo para trás e acendeu outro cigarro.

— Então eu vou te contar, eu, o que vai acontecer. Na semana que vem, assim que você conseguir expulsar esse brinquedinho de borracha do seu cu, você vai dar instruções ao meu banco de que somente eu — e mais ninguém

— terá acesso à minha conta daqui pra frente. Entende o que estou dizendo?

O advogado Bjurman concordou com a cabeça.

— Perfeito. Você não entrará mais em contato comigo. No futuro só nos veremos se eu tiver vontade. Que fique bem claro que você está proibido de me visitar.

Ele concordou com a cabeça várias vezes e deu um suspiro. Ela não tem a intenção de me matar.

Se tentar entrar em contato comigo, cópias desse DVD vão chegar a todas as redações dos jornais de Estocolmo. Está entendendo?

Ele assentiu com a cabeça várias vezes. Preciso pôr as mãos nesse filme.

— Uma vez por ano, enviará o relatório sobre o meu estado à comissão de tutelas. Escreverá que levo uma existência perfeitamente normal, que tenho um trabalho fixo, que ajo de maneira conveniente e que você não vê nada de anormal no meu comportamento. Certo?

Ele fez que sim com a cabeça.

— Todo mês você escreverá um relatório fictício sobre os nossos encontros. Contará em detalhe o quanto sou confiável e o quanto estou progredindo. Enviará uma cópia para mim, certo?

Ele balançou de novo a cabeça. De passagem, Lisbeth Salander notou gotas de suor surgindo em sua testa.

— Dentro de um ano ou dois, iniciará conversações com o juiz para obter a revogação da minha tutela, usando para isso os relatórios fictícios dos nossos encontros mensais. Encontrará um psicólogo que prestará juramento de que sou absolutamente normal. Você se esforçará nesse sentido. Fará exatamente tudo que estiver ao seu alcance para que eu seja declarada emancipada.

Ele assentiu com a cabeça.

— E sabe por que fará o melhor possível? Porque tem uma razão fodida para você agir assim. Se não fizer o melhor possível, mostro esse filminho pra todo mundo.

Ele escutava cada sílaba pronunciada por Lisbeth Salander. Um brilho súbito de ódio passou por seus olhos. Disse a si mesmo que ela cometia um erro em deixá-lo viver. Vai pagar caro, sua puta suja. Cedo ou tarde, vou te esmagar. Mas continuou balançando a cabeça com entusiasmo a cada pergunta.

— O mesmo vale se tentar entrar em contato comigo. — E passou a mão pelo pescoço num gesto de degola. — Adeus, belo apartamento; adeus, trabalho; adeus, seus milhões em contas do exterior.

Os olhos de Bjurman se arregalaram ao ouvi-la mencionar o dinheiro. Merda, como ela sabe disso?...

Ela sorriu, deu uma tragada no cigarro, depois o jogou no carpete e o esmagou com o calcanhar.

— Você me dará cópias das suas chaves daqui e do escritório. Bjurman franziu as sobrancelhas. Ela se inclinou com um sorriso hipócrita.

— Daqui em diante eu controlarei a sua vida. Quando menos esperar, talvez quando estiver dormindo, vou entrar de repente aqui no seu quarto com isto nas mãos. — Mostrou o bastão elétrico. — Vou vigiar você. — Se alguma vez eu te encontrar com uma mulher — e pouco importa que ela esteja aqui de livre e espontânea vontade ou não —, se alguma vez eu te encontrar com uma mulher, qualquer que seja...

E Lisbeth passou novamente os dedos pelo pescoço.

— Se eu morrer... se eu sofrer um acidente, for atropelada, seja lá o que for... cópias desse filme serão enviadas aos jornais. Junto com uma história detalhada onde eu conto como é ter você como tutor. Outra coisa. — E ela se inclinou para a frente, para que seu rosto ficasse a poucos centímetros do dele. — Se me tocar outra vez, eu te mato. Pode ter certeza.

O dr. Bjurman acreditou nessas palavras. Não havia lugar para blefe nos olhos dela.

— Lembre-se de que eu sou maluca.

Ele assentiu com a cabeça.

Então ela o fitou com um olhar circunspecto.

— Não acho que vamos ser bons amigos, eu e você — disse Lisbeth Salander com voz grave. — Você deve estar todo alegre de eu ser suficientemente idiota para te deixar viver. Embora seja meu prisioneiro, acha que está no controle porque imagina que a única coisa que eu posso fazer, se não te matar, é te soltar. Então tem a esperança de recuperar em breve seu poder sobre mim, não é mesmo?

Ele balançou negativamente a cabeça, tomado de súbito por um mau pressentimento.

— Vou te presentear com uma coisa para você se lembrar sempre do nosso acordo.

Sorriu com o canto dos lábios, subiu em cima da cama e se ajoelhou entre as pernas dele. O advogado Bjurman não entendeu o que ela quis dizer, mas ficou aterrorizado.

Depois viu a agulha na mão dela.

Moveu violentamente a cabeça e tentou se virar, mas ela apoiou o joelho sobre seu escroto como advertência.

— Não se mexa. É a primeira vez que utilizo esses instrumentos.

Ela trabalhou concentradamente durante duas horas. Quando terminou, ele não emitia mais som algum. Parecia estar num estado próximo ao da apatia.

Ela desceu da cama, abaixou a cabeça e examinou sua obra com olhar crítico. Seus talentos artísticos eram limitados. As letras, irregulares, lembravam um desenho impressionista. Ela utilizara o vermelho e o azul para tatuar a mensagem, escrita com letras maiúsculas e em cinco linhas que cobriam todo o ventre dele, desde os mamilos até o púbis: SOU UM PORCO SÁDICO, UM CANALHA ESTUPRADOR.

Recolheu as agulhas e guardou as bisnagas de cor na mochila. Depois foi lavar as mãos no banheiro. Sentia-se consideravelmente melhor ao voltar para o quarto.

— Boa noite — disse.

Antes de partir, abriu uma das algemas e pôs a chave sobre o ventre de Bjurman. Ao sair, levou o DVD e o molho de chaves de Bjurman.


Foi no momento em que compartilhavam um cigarro, pouco depois da meia-noite, que Mikael contou que eles não iam poder se ver durante algum tempo. Cecilia virou-se para ele espantada.

— O que está querendo dizer? — perguntou.

Ele pareceu envergonhado.

— Segunda-feira que vem vou cumprir minha pena de três meses na prisão. Mais explicações eram desnecessárias. Cecilia permaneceu um longo tempo silenciosa. Estava prestes a chorar.


Dragan Armanskij já tinha perdido as esperanças, quando Lisbeth Salander o procurou na segunda-feira à tarde. Não a via desde que a investigação do caso Wennerström fora cancelada no começo de janeiro, e toda vez que tentou chamá-la, ou ela não respondera ou telefonara de volta dizendo que estava ocupada.

— Tem algum trabalho para mim? — ela perguntou sem perder tempo com saudações inúteis.

— Olá! Quem bom te ver. Achei que estava morta ou algo do gênero.

— Eu tinha umas duas ou três coisinhas para resolver.

— Você sempre tem umas coisinhas para resolver.

— Era urgente. Mas estou de volta. Tem algum trabalho para mim?

Armanskij negou com a cabeça.

— Sinto muito. No momento, não.

Lisbeth Salander o contemplou com um olhar tranquilo. Depois de alguns segundos, ele continuou.

— Lisbeth, você sabe que eu a quero bem e que sempre que posso lhe ofereço trabalho. Mas você desapareceu por dois meses, quando eu estava com um monte de solicitações de trabalho. É simples, não se pode contar com você. Fui obrigado a recorrer a outras pessoas para cobrir a sua ausência, e no momento não tenho nada.

— Aumente o volume.

— Quê?

— Do rádio.


... a revista Millenium. O anúncio de que o veterano da indústria Henrik Vanger tornou-se co-proprietário da Millenium e de que fará parte do conselho administrativo da revista chega no mesmo dia em que o ex-editor responsável da publicação, Mikael Blomkvist, começa a cumprir três meses de prisão por difamação contra o financista Hans-Erik Wennerström. Erika Berger, diretora da Millenium, explicou na coletiva de imprensa que Míkael Blomkvist reassumirá o cargo de editor-chefe assim que deixar a prisão.


— Qual é? — disse Lisbeth Salander em voz tão baixa que Armanskij nem ouviu, apenas notou os lábios dela se mexendo. Ela se levantou de repente e foi saindo.

— Espere. Aonde você vai?

— Para a minha casa. Tenho duas ou três coisas para verificar. Me chame quando tiver alguma coisa para mim.


A notícia de que a Millennium recebera o reforço de Henrik Vanger era um acontecimento bem mais importante do que Lisbeth Salander imaginara. A Aftonbladet já havia publicado na internet um longo comunicado da agência de notícias TT, fazendo um balanço da carreira de Henrik Vanger e constatando que era a primeira vez em mais de vinte anos que o velho magnata da indústria aparecia em público. O anúncio de que investia seu capital na Millennium era tão inimaginável quanto ver de repente os velhos conservadores Peter Wallenberg ou Erik Penser virarem a casaca para se associar à ETC ou para patrocinar a revista Ordfront.

O acontecimento era tão incomum que a edição das sete e meia de Rapport, na tevê, transformou-o num dos principais assuntos, dedicando-lhe três minutos. Erika Berger era entrevistada por jornalistas na redação da Millennium. De uma hora para outra, o caso Wennerström voltava às manchetes.

— No ano passado cometemos um erro grave, que resultou na condenação da revista por difamação. Evidentemente é uma coisa que lamentamos... e temos a intenção de retomar esse caso num momento propício.

— O que você quer dizer com retomar o caso? — perguntou um repórter.

— Quero dizer que vamos contar a nossa versão dos fatos, o que não fizemos até agora.

— Mas poderiam ter feito durante o processo.

— Preferimos não fazer. Mas é claro que vamos manter nossa linha editorial crítica.

— Significa que continuam sustentando a versão pela qual foram condenados?

— Não tenho comentários a fazer sobre isso.

— A senhora demitiu Mikael Blomkvist após o julgamento.

— Está completamente enganado. Leia o nosso comunicado de imprensa. Ele precisava de uma pausa e de um descanso merecido. Ainda este ano reassumirá a publicação.

A câmera fez uma panorâmica da redação, enquanto o repórter enumerava alguns dados sobre a agitada história da Millennium, revista conhecida por sua independência e por suas críticas contundentes. Mikael Blomkvist não pôde ser ouvido. Acabava de ser preso no centro de detenção de Rullaker, situado à beira de um pequeno lago, em plena floresta, a uma dezena de quilômetros de Östersund, no Jämtland.

Lisbeth Salander viu Dirch Frode aparecer de repente, pela fresta de uma porta da redação, ao fundo da imagem televisionada. Ela franziu o cenho e mordeu pensativamente o lábio inferior.


A segunda-feira fora pobre em acontecimentos e Henrik Vanger pôde dispor de quatro minutos no noticiário das nove. Foi entrevistado num estúdio da tevê local em Hedestad. O repórter começou observando que, após duas décadas de silêncio, o mítico industrial Henrik Vanger voltou às luzes da ribalta. Na introdução, a reportagem apresentava um pouco da vida de Henrik Vanger mostrando imagens antigas de tevê, em preto-e-branco, nas quais ele era visto na companhia do primeiro-ministro Tage Erlander inaugurando fábricas nos anos 1960. A seguir a câmera mostrou um sofá no estúdio de gravação, onde Henrik Vanger aparecia tranquilamente instalado, de pernas cruzadas. Vestia camisa amarela, uma gravata verde fina e casaco esporte marrom. Não escapava a ninguém que estava descarnado e envelhecido, mas se expressava com uma voz sonora e firme. E com franqueza. O repórter começou perguntando o que o levara a se associar à Millennium.

A Millennium é uma boa publicação que venho acompanhando com interesse há vários anos. Hoje ela está sofrendo alguns ataques. Tem inimigos poderosos que organizam um boicote de anunciantes com o objetivo de torpedeá-la.

O repórter, com certeza, não estava preparado para uma resposta como essa, mas percebeu de imediato que a história, já bastante interessante em si mesma, ganhava dimensões inesperadas.

— O que há por trás desse boicote?

— E uma das coisas que a Millennium vai verificar minuciosamente. Mas aproveito para declarar que a revista não pretende se deixar afundar ao primeiro tiro.

— E por essa razão que entrou como sócio?

— A liberdade de expressão sofreria um duro golpe se interesses particulares tivessem o poder de reduzir ao silêncio vozes que os incomodam na mídia.

Henrik Vanger agia como se tivesse passado a vida toda defendendo radicalmente a liberdade de expressão. Mikael Blomkvist começou a rir de repente na sala de televisão do centro de detenção de Rullaker, que ele inaugurava naquela noite. Seus colegas de prisão lançaram-lhe olhares inquietos.

Mais tarde, deitado em sua cela que lembrava um quarto de motel, com uma pequena mesa, uma cadeira e uma prateleira fixa à parede, ele foi obrigado a admitir que Henrik e Erika estavam certos sobre a maneira de lançar essa informação no mercado. Sem ter falado com ninguém, ele sabia que alguma coisa havia mudado na atitude com relação à Millennium.

A aparição de Henrik Vanger era nada mais nada menos que uma declaração de guerra a Hans-Erik Wennerström. A mensagem, muito clara — daqui em diante você não vai mais lutar contra uma revista com seis funcionários e um orçamento anual equivalente a um jantar de negócios do grupo Wennerström. Vai enfrentar também as empresas Vanger, que certamente são apenas a sombra de sua grandeza de outrora, mas que ainda assim representam um desafio bem mais árduo. Agora Wennerström podia escolher: ou se retirava do conflito ou encarava a tarefa de reduzir também a migalhas as empresas Vanger.

Henrik Vanger acabava de anunciar na tevê que estava disposto a lutar. Talvez não tivesse nenhuma chance contra Wennerström, mas a guerra ia custar caro.

Erika escolhera cuidadosamente as palavras. Na verdade não dissera grande coisa, mas sua afirmação de que a revista ainda não "apresentara sua versão dos fatos" fazia supor que havia uma versão a dar. Embora Mikael tivesse sido julgado e no momento estivesse preso, ela não se constrangera em dizer — sem dizer — que na realidade ele era inocente e que existia uma outra verdade.

Mesmo sem usar a palavra "inocência", tornou a inocência dele ainda mais tangível. O anúncio de que ele reassumiria o cargo de responsável pela publicação sublinhava que a Millennium não tinha do que se censurar. Aos olhos do grande público, a verdade não era um problema — todo mundo adora a teoria do complô e, entre um homem de negócios cheio de ases na manga e uma bonita diretora de revista, não era difícil adivinhar para que lado tenderiam as simpatias. A mídia decerto não endossaria facilmente a história, mas Erika desarmara alguns críticos que agora não ousariam levantar a cabeça.

Nenhum dos acontecimentos do dia alterou fundamentalmente a situação, mas eles conseguiram ganhar tempo e modificar um pouco o equilíbrio de forças. Mikael imaginou que Wennerström passara uma noite desagradável. Wennerström não tinha como saber em que medida — em que pequeníssima medida — eles sabiam de alguma coisa, e, antes de mover seu próximo peão, seria obrigado a descobrir o que eles sabiam de fato.


Com expressão séria, Erika desligou a tevê e o videocassete depois de assistir primeiro a suas próprias declarações e depois à gravação da entrevista de Henrik Vanger. Olhou o relógio, quinze para as três da manhã, e conteve o impulso de ligar para Mikael. Ele estava preso e era pouco provável que estivesse com seu celular na cela. Ela chegara tão tarde em casa, em Saltsjöbaden, que seu marido já estava dormindo. Levantou e se serviu de uma dose de uísque Aberlour — ingeria álcool só uma ou duas vezes por ano —, sentou-se diante da janela e contemplou o mar e o farol na entrada do estreito de Skurusund.

Mikael e ela haviam trocado palavras ásperas quando se viram sozinhos depois do acordo que ela fizera com Henrik Vanger. Ao longo dos anos, eles discutiram muitas vezes sobre a orientação a dar a um texto, o visual da revista, a avaliação da credibilidade das fontes e várias outras coisas relacionadas à produção de um periódico. Mas a discussão na casa dos convidados de Henrik fora sobre princípios, e ela sabia estar pisando num terreno incerto.

— Não sei o que vou fazer agora — dissera Mikael. — Henrik Vanger me contratou para escrever sua biografia. Até agora fui livre para me levantar e ir embora no momento em que ele tentasse me forçar a escrever algo que não fosse a verdade ou procurasse me convencer a orientar a história para um lado ou outro. Agora ele é um dos proprietários da nossa revista, e mais: o único com recursos financeiros para salvá-la. Com isso me vejo de repente servindo a dois senhores, numa posição que a comissão de ética profissional não apreciaria nada.

— Tem uma idéia melhor a propor? — perguntou Erika. — Se tem, o momento de dizer é agora, antes de seguirmos adiante e assinarmos o acordo.

— Ricky, Vanger está nos usando numa espécie de vendeta particular contra Hans-Erik Wennerström.

— E daí? Também não estamos numa vendeta particular contra Wennerström?

Mikael evitou olhar para ela e acendeu um cigarro com um gesto irritado. A discussão prosseguiu por um bom tempo, até Erika entrar no quarto de Mikael, despir-se e se deitar na cama. Ela fingiu que dormia quando, duas horas depois, Mikael foi se encolher ao lado dela.

Naquela noite, um repórter do Dagens Nyheter lhe fizera a mesma pergunta:

— Até que ponto, agora, a Millennium poderá manter sua credibilidade e afirmar sua independência?

— Como assim?

O repórter ergueu as sobrancelhas. Ele achou sua pergunta suficientemente clara, mas ainda assim explicou-a.

— A missão da Millennium é, entre outras coisas, avaliar se as empresas estão se conduzindo bem. Como é que a revista vai poder, agora, garantir que está mesmo de olho na boa conduta das empresas Vanger?

Erika o encarou com ar estupefato, como se a pergunta fosse totalmente inesperada.

— Você está insinuando que a credibilidade da Millennium pode diminuir porque um empresário conhecido e de recursos entrou em cena?

— Sim, me parece bastante evidente que vocês perderão a credibilidade como observadores das empresas Vanger.

— E essa regra se aplica somente à Millennium?

— Desculpe, não entendi.

— O que eu quero dizer é que você trabalha para um jornal que está totalmente nas mãos dos grandes interesses econômicos. Por acaso isso significa que nenhum dos jornais pertencentes ao grupo Bonniers é digno de crédito? A Aftonbladet pertence a uma grande empresa norueguesa que, por sua vez, tem grande influência na área da informática e da comunicação. Por acaso isso significa que as análises da indústria eletrônica feitas pela Aftonbladet não têm credibilidade? O Metro pertence ao grupo Stenbeck. Está querendo dizer que nenhum jornal sueco sustentado por grandes interesses econômicos é digno de crédito?

— Não, claro que não.

— Nesse caso, por que está insinuando que a Millennium perderia credibilidade por contarmos também com o apoio de financistas?

O repórter desculpou-se.

— Está bem, retiro a pergunta.

— Não, não retire. Quero que você reproduza exatamente o que acabo de dizer. E pode acrescentar que, se o Dagens Nyheter decidir se concentrar mais particularmente nas empresas Vanger, nós também vamos nos concentrar um pouco mais no grupo Bonniers.

Apesar de tudo, havia, de fato, um dilema ético.

Mikael trabalhava para Henrik Vanger, que, por sua vez, se achava numa posição em que podia, numa canetada, afundar a Millennium. O que aconteceria se Mikael e Henrik Vanger se indispusessem por qualquer razão?

E mais: que preço ela fixava para sua própria credibilidade e em que momento passaria de diretora independente a diretora corrupta? Ela não gostava nem das perguntas nem das respostas.


Lisbeth Salander desconectou-se da internet e fechou seu Powerbook. Estava sem trabalho e com fome. A primeira coisa não a perturbava diretamente desde que retomara o controle de sua conta bancária e que o dr. Bjurman adquirira o caráter de um vago estorvo do passado. A fome ela remediou indo até a cozinha e ligando a cafeteira. Preparou três grossos sanduíches com queijo, atum e ovo cozido, sua primeira refeição depois de muitas horas. Devorou os sanduíches noturnos encolhida no sofá da sala e ao mesmo tempo concentrada na informação que acabava de obter.

Dirch Frode, de Hedestad, a contratara para investigar Mikael Blomkvist, condenado à prisão por difamar o financista Hans-Erik Wennerström. Poucos meses depois, Henrik Vanger, também de Hedestad, entra no conselho administrativo da Millennium e afirma haver uma conspiração destinada a afundar a revista. Tudo isso no mesmo dia em que Mikael Blomkvist começa a cumprir sua pena. O mais fascinante: um pequeno artigo publicado dois anos antes — "Com as duas mãos vazias" — sobre Hans-Erik Wennerström, que ela descobriu na edição on-line do Finansmagasinet Monopol. O artigo dizia que ele começara sua ascensão no mundo das finanças justamente nas empresas Vanger, no final dos anos 1960.

Não era preciso ser nenhum gênio para concluir que os acontecimentos estavam de alguma forma interligados. Havia um segredo no negócio, e Lisbeth Salander adorava desvendar segredos. Ainda mais quando não tinha outra coisa para fazer.


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