7. SEGUNDA-FEIRA - 11 DE ABRIL – TERÇA-FEIRA 12 DE ABRIL
Às 17h45 da segunda-feira, Mikael Blomkvist fechou o seu iBook e levantou do seu lugar, à mesa da cozinha do seu apartamento da Bellmansgatan. Vestiu um paletó e foi a pé até a sede da Milton Security, perto de Slussen. Pegou o elevador para subir à recepção, no segundo andar, e foi imediatamente introduzido numa sala de reuniões.
— Olá, Dragan — disse ele estendendo a mão. — Obrigado por aceitar fazer esta reunião informal aqui.
Olhou em volta. Além de Dragan Armanskij e ele, estavam ali Annika Giannini, Holger Palmgren e Malou Eriksson. O ex-inspetor criminal Steve Bohman, da Milton, que desde o primeiro dia, por ordem de Armanskij, acompanhara a investigação sobre Salander, também estava presente.
Holger Palmgren estava saindo pela primeira vez depois de dois anos. Seu médico, o Dr. A. Sivarnandan, não ficara muito entusiasmado com a idéia de deixá-lo sair do centro de reabilitação de Ersta, mas Palmgren tinha insistido. Efetuara o trajeto num carro particular, acompanhado de sua enfermeira pessoal, Johanna Karolina Oskarsson, de trinta e nove anos, cujo salário era pago por um fundo criado por um benfeitor misterioso e que tinha por objetivo oferecer a Palmgren o melhor tratamento possível. Karolina Oskarsson aguardava numa área de descanso em frente à sala de reuniões. Tinha trazido um livro. Mikael fechou a porta.
— Para quem não conhece: essa é a Malu Eriksson, a nova redatora-chefe da Millennium. Pedi-lhe que viesse à reunião porque o que vamos conversar aqui vai afetar o trabalho dela.
— Certo — disse Armanskij. — Está todo mundo aqui. Estamos ouvindo.
Mikael se aproximou do quadro branco de Armanskij e pegou uma caneta. Seu olhar percorreu a sala.
— Acho que nunca vivi nada tão delirante — disse. — Quando tudo isso acabar, vou fundar uma associação beneficente. Vou chamá-la de Os Cavaleiros da Távola Biruta, e sua missão será organizar um jantar anual para falar mal da Lisbeth Salander. Vocês todos serão membros.
Fez uma pausa.
— A realidade se parece com o seguinte — disse ele, traçando umas colunas no quadro de Armanskij. Falou durante uma boa meia hora. A discussão que se seguiu durou quase três horas.
Uma vez formalmente encerrada a reunião, Evert Gullberg sentou-se frente a frente com Fredrick Clinton. Conversaram em voz baixa durante alguns minutos, até que Gullberg se levantou. Os dois velhos irmãos de armas apertaram-se as mãos.
Gullberg voltou de táxi para o Hotel Frey, juntou suas coisas, pagou a conta e pegou um trem que saía à tarde para Gõteborg. Escolheu a primeira classe e ficou com um vagão inteiro só para ele. Depois que o trem passou a ponte de Ársta, ele pegou uma esferográfica e um bloco de papel de cartas. Refletiu alguns instantes e em seguida se pôs a escrever. Preencheu cerca de metade da página, então se deteve e destacou-a do bloco.
Documentos falsificados não eram sua especialidade, ele não se considerava um entendido no assunto, mas naquele caso sua tarefa estava sendo facilitada pelo fato de que as cartas que estava escrevendo levavam a sua assinatura. A dificuldade é que nenhuma palavra poderia ser verdadeira.
Ao passar por Nykõping, ainda se desfez de uma boa quantidade de rascunhos, mas já começava a ter uma idéia de como deveria formular as cartas.
Ao chegar a Gõteborg, estava satisfeito com as doze cartas de que dispunha. Cuidou para que suas impressões digitais ficassem nítidas e claras no papel.
Na estação central de Gõteborg, conseguiu achar uma copiadora e fez urnas fotocópias. Depois comprou selos e envelopes e jogou a correspondência na caixa postal que seria esvaziada às nove da noite.
Gullberg pegou um táxi para ir ao City Hotel, na Lorensbergsgatan, onde Clinton lhe reservara um quarto. De modo que se hospedou no mesmo hotel em que Mikael Blomkvist pernoitara dias antes. Em seguida foi para o quarto e desabou sobre a cama. Estava extremamente cansado e se deu conta de que comera apenas duas fatias de pão o dia inteiro. Continuava sem fome. Despiu-se, deitou-se e adormeceu quase em seguida.
Lisbeth Salander acordou sobressaltada ao escutar a porta se abrindo. Soube de imediato que não se tratava da enfermeira da noite. Abriu os olhos em duas fendas estreitas e avistou, à porta, a silhueta com muletas. Zalachenko não se movia e contemplava-a da fresta de luz do corredor que passava pela abertura da porta.
Sem se mover, ela virou os olhos para o relógio e viu que eram 3h10.
Desviou o olhar alguns milímetros e avistou o copo d'água na beirada do criado-mudo. Mal podia alcançá-lo sem ter que movimentar o corpo.
Levaria uma fração de segundo para estender o braço e, num gesto decidido, quebrá-lo contra a beirada do criado-mudo. Levaria meio segundo para enfiar a borda cortante na garganta de Zalachenko se ele se debruçasse sobre ela. Avaliou outras possibilidades, mas percebeu que aquela era a única arma possível.
Relaxou e esperou.
Zalachenko permaneceu uns dois minutos à porta, sem se mexer.
Depois, fechou-a devagar. Ela escutou o fraco arrastar das muletas enquanto ele se afastava tranqüilamente do quarto.
Passados cinco minutos, ela se ergueu apoiando-se nos cotovelos, pegou o copo e tomou um gole grande. Balançou as pernas por cima da beira da cama e tirou os eletrodos dos braços e do peito. Levantou-se e ficou em pé, cambaleando. Levou um bom minuto para reassumir o controle do corpo.
Foi mancando até a porta, apoiou-se na parede e recobrou o fôlego. Suava frio. Então, teve um acesso de fúria contida.
Fuck you, Zalachenko. Vamos acabar logo com isso!
Precisava de uma arma.
Nisso, ouviu passadas rápidas no corredor.
Droga. Os eletrodos.
— Caramba, o que você está fazendo aí em pé? — exclamou a enfermeira.
— Preciso... ir... ao banheiro — disse Lisbeth Salander, sem fôlego.
— Volte imediatamente para a cama.
Pegou na mão de Lisbeth e a ajudou a voltar para a cama. Em seguida foi buscar uma comadre.
— Se você precisar ir ao banheiro, chame a gente. Este botão aqui serve para isso — explicou a enfermeira.
Lisbeth não disse nada. Concentrou-se para conseguir produzir umas poucas gotas.
Na terça-feira, Mikael Blomkvist acordou às dez meia, tomou banho, ligou a cafeteira e em seguida se instalou diante do seu iBook. Depois da reunião na Milton Security na noite anterior, tinha vindo para casa e trabalhado até as cinco da manhã. Sentia que, finalmente, sua matéria começava a tomar forma. A biografia de Zalachenko continuava cheia de buracos — ele só dispunha, para se orientar, das informações que arrancara de Bjõrck e dos detalhes acrescentados por Holger Palmgren. A história de Lisbeth Salander estava praticamente concluída. Ele explicava com detalhes de que maneira ela se vira confrontada com um bando de frios combatentes da DGPN/Sapo e internada numa clínica de psiquiatria infantil para que não viesse à tona o segredo envolvendo Zalachenko.
Estava satisfeito com seu texto. Era uma matéria espetacular que iria estremecer as bancas de jornais e, além disso, criar problemas nas altíssimas esferas da burocracia do Estado.
Acendeu um cigarro enquanto refletia.
Restavam-lhe duas grandes lacunas para preencher. Uma era administrável. Precisava enfrentar Peter Teleborian, tarefa que ele encarava com prazer. Depois que acabasse com ele, o famoso psiquiatra infantil seria um dos homens mais odiados da Suécia.
O outro problema era um tanto mais complicado.
A maquinação contra Lisbeth Salander — ele apelidara esses conspira-dores de Clube Zalachenko — ocorrera dentro da Sapo. Ele conhecia um nome, Gunnar Bjõrck, mas Gunnar Bjòrck não podia, de modo algum, ser o único responsável. Havia necessariamente um grupo, uma espécie de equipe. Havia necessariamente chefes, responsáveis, e alguma verba. Só que ele não tinha a menor idéia de como identificar essas pessoas. Não sabia por onde começar. As informações que possuía sobre a organização da Sapo eram apenas rudimentares.
Na segunda-feira, começara sua pesquisa mandando Henry Cortez percorrer vários sebos de Sõdermalm com a instrução de comprar todos os livros que, de algum modo, mencionassem a Sapo. Cortez chegara à casa de Mikael Blomkvist por volta das quatro da tarde, levando seis livros. Mikael contemplou a pilha em cima da mesa.
Espionagem na Suécia [Spionage y Sverige] (Tempus, 1988); Eu fui chefe da Sapo de 1962 a 1970 [Sâpochef 1962-70]; Poderes secretos, de Jan Ottosson e Lars Magnusson [Hemliga makter: svensk hemlig militar under-ráttelsetjãnst frân unionstiden till det kalla kriget] (Tiden, 1991); Luta pelo controle da Sapo, de Erik Magnusson (Corona, 1989) [Maktkamp om SAPO]; Missão, de Carl Lidbom (w&w, 1990) [Ett Uppdrag], além do — um tanto surpreendente — An agent in place (Ballantine, 1966), sobre o caso Wen-nerstrõm. O caso dos anos 1960, portanto, e não o de Mikael Blomkvist, do início do século xxi.
Mikael passara boa parte da noite de terça-feira lendo, ou pelo menos folheando, os livros encontrados por Henry Cortez. Concluída a leitura, chegou a algumas conclusões. Em primeiro lugar, a maioria dos livros já escritos sobre a Sapo tinha aparentemente sido publicada no final dos anos 1980. Uma pesquisa na internet mostrou que não existia nenhuma literatura recente sobre o tema.
Em segundo lugar, tudo indicava que não existia um resumo compreensível das atividades da polícia secreta sueca ao longo dos anos. Isso se explicava pela quantidade de casos considerados segredo de segurança nacional, dificilmente abordáveis, portanto, mas tudo indicava não haver uma única instituição, um único pesquisador ou órgão de imprensa disposto a lançar um olhar crítico sobre a Sapo.
Também chamou sua atenção o fato de não existir, em nenhum dos livros reunidos por Henry Cortez, referência a outras obras. As notas de rodapé remetiam invariavelmente a artigos em jornais vespertinos ou a entrevistas pessoais feitas com algum aposentado da Sapo.
Poderes secretos era fascinante, mas tratava, sobretudo, da época anterior e contemporânea à Segunda Guerra Mundial. Mikael via nas memórias de P. G. Vinge, antes de mais nada, um livro de propaganda escrito em defesa própria por um diretor da Sapo duramente criticado e demitido do cargo. An agent in place continha, desde o primeiro capítulo, tantas esquisitices sobre a Suécia que ele simplesmente jogou o livro no lixo. Os únicos volumes com a clara intenção de descrever o trabalho da Sapo eram Luta pelo controle da Sapo e Espionagem na Suécia. Apresentavam datas, nomes e organogramas. Achou o livro de Erik Magnusson particularmente interessante. Embora não trouxesse resposta às suas perguntas imediatas, oferecia um bom panorama do que tinham sido a Sapo e de suas atividades nas décadas passadas.
Sua maior surpresa, contudo, foi Missão, de Carl Lidbom, que descrevia os problemas enfrentados pelo antigo embaixador em Paris quando, por ordem do governo, investigou sobre a Sapo na esteira do assassinato de Palme e do caso Ebbe Carlsson. Mikael nunca tinha lido Carl Lidbom e se surpreendeu com sua linguagem irônica permeada de observações mordazes. Mas o livro de Carl Lidbom também não ajudou Mikael a encontrar resposta às suas perguntas, embora ele começasse a ter uma vaga idéia da confusão que tinha pela frente.
Depois de refletir por algum tempo, pegou o celular e ligou para Henry Cortez.
— Oi, Henry. Obrigado pelo trabalho de ontem.
— Humm. O que você quer?
— Tenho mais uns servicinhos para você.
— Micke, eu tenho trabalho a fazer. Eu agora sou assistente de redação.
— Um belo avanço na carreira.
— Desembucha!
— Nesses anos todos, foram feitas algumas investigações públicas sobre a Sapo - Uma delas pelo Carl Lindbom. Deve haver um bocado de investigações desse tipo.
— Ahã.
— Me traga tudo o que tenha a ver com o Parlamento: orçamentos, inquéritos oficiais do Estado, discussões decorrentes de interpelações da Câmara, esse tipo de coisa; E compre os anais da Sapo, até o mais antigo que conseguir.
— Às suas ordens, capitão.
— Ótimo. E... Henry...
— Sim?
— ... eu só vou precisar disso amanhã.
Lisbeth Salander passou o dia pensando em Zalachenko. Sabia que ele estava dois quartos adiante do seu, que rondava pelos corredores à noite e viera até o seu quarto às 3hl0.
Ela o seguira até Gosseberga com o propósito de matá-lo. Fracassara, Zalachenko ainda estava vivo e se achava a menos de dez metros de distância. Ela estava encrencada. Era difícil definir até que ponto, mas imaginava que teria de fugir e desaparecer discretamente no exterior se não quisesse se arriscar a ser trancafiada outra vez com os loucos, tendo Peter Teleborian como guardião.
O problema, claro, é que ela não tinha forças sequer para se sentar na cama. Percebia alguns sinais de melhora. A dor de cabeça persistia, mas vinha por ondas em vez de ser constante. A dor no ombro estava superficial, só explodindo quando ela tentava se mexer.
Escutou passos no corredor e viu uma enfermeira abrir a porta e introduzir uma mulher de calças pretas, camisa branca e casaco escuro. Uma mulher bonita, magra, de cabelos castanhos bem curtos e que emanava uma calma autoconfiança. Carregava uma pasta preta. Lisbeth imediatamente reconheceu os olhos de Mikael Blomkvist.
— Bom dia, Lisbeth. Meu nome é Annika Giannini — disse ela. — Posso entrar?
Lisbeth contemplou-a sem nenhuma expressão. De repente, não estava com a mínima vontade de conhecer a irmã de Mikael Blomkvist e se arrependeu de ter aceitado a proposta de tê-la como advogada.
Annika Giannini entrou, fechou a porta atrás de si e puxou uma cadeira. Ficou sentada em silêncio alguns instantes, observando sua cliente.
Lisbeth Salander não parecia nada bem. Sua cabeça não passava de um pacote de bandagens. Enormes hematomas vermelhos circundavam seus olhos injetados de sangue.
— Antes de a gente começar a conversa, preciso saber se você realmente me quer como advogada. Em geral, eu só atuo em casos civis, representando vítimas de estupro e maus-tratos. Não sou advogada criminal. Em compensação, estou à par dos mínimos detalhes do seu caso e com muita vontade de representar você, se concordar. Devo dizer também que o Mikael Blomkvist é meu irmão — isso eu acho que você já sabe — e que ele e o Dragan Armanskij estão pagando meus honorários.
Ela esperou um instante, mas como não obteve nenhuma reação por parte de sua cliente, prosseguiu.
— Se me aceitar como advogada, vou trabalhar para você. Quero dizer, não estou trabalhando para o meu irmão nem para o Armanskij. Além disso, para tudo que estiver relacionado com o direito penal, vou contar com o auxílio do seu antigo tutor, Holger Palmgren. Está aí um homem de fibra, que deixou seu leito no hospital para te ajudar.
— O Palmgren? — disse Lisbeth Salander.
— É.
— Você esteve com ele?
— Estive. Ele vai ser meu conselheiro.
— Como é que ele está?
— Está furioso, mas não me pareceu particularmente preocupado com você.
Lisbeth Salander esboçou um sorrisinho de esguelha. O primeiro desde que ela chegara ao Hospital Sahlgrenska.
— Como você está se sentindo? — perguntou Annika Giannini.
— Um lixo — disse Lisbeth Salander.
— Ahã. Você quer que eu cuide da sua defesa? O Armanskij e o Mikael estão pagando os meus honorários e...
— Não.
— Como assim?
- Eu mesma vou pagar. Não vou aceitar um ore do Armanskij ou do Suer-Blomkvist. Mas só vou poder lhe pagar quando eu tiver acesso à internet.
— Entendo. Na hora certa a gente dá um jeito nisso e, seja como for, 0 Ministério Público é quem vai pagar a maior parte do meu salário. Então você aceita que eu faça a sua defesa?
Lisbeth Salander assentiu brevemente com a cabeça.
— Ótimo. Para começar, vou lhe passar um recado do Mikael. Ele falou em código, mas disse que você entenderia.
— Ah, é?
— Ele mandou dizer que me contou quase tudo, tirando umas coisinhas. A primeira se refere aos seus talentos, que ele descobriu em Hedestad.
Mikael sabe que eu tenho memória fotográfica... e que sou uma hacker. Ele guardou segredo.
— Certo.
— A segunda é sobre o DVD. Não sei do que se trata, mas ele disse que você é quem deve decidir se quer falar sobre isso comigo ou não. Você entende o que isso quer dizer?
— Entendo.
— Bem...
Annika Giannini hesitou de repente.
— Estou meio irritada com o meu irmão. Mesmo tendo me contratado, ele só me conta o que convém a ele. Você também pretende me esconder alguma coisa?
Lisbeth refletiu.
— Não sei.
— A gente vai ter que conversar bastante. Estou sem tempo agora, tenho um encontro com a procuradora Agneta Jervas daqui a quarenta e cinco minutos. Eu só precisava confirmar que você me aceitava como advogada. Também preciso lhe passar uma instrução...
— Ah, é?
— É o seguinte: se eu não estiver presente, você não deve dizer uma palavra sequer à polícia. Mesmo que eles a provoquem e a acusem de tudo que é coisa. Pode me prometer isso?
— Não vai ser difícil — disse Lisbeth Salander.
Exausto pela tensão da segunda-feira, Evert Gullberg acordou às nove horas da terça, quase quatro horas depois de seu horário habitual. Foi até o banheiro, lavou-se e escovou os dentes. Contemplou demoradamente seu rosto no espelho antes de apagar a luz e ir se vestir. Escolheu a única camisa limpa que lhe sobrava na pasta e pôs uma gravata estampada marrom.
Desceu até a sala de café da manhã do hotel, tomou uma xícara de café preto e comeu uma fatia de pão de forma torrada com queijo e um pouco de geléia de laranja. Bebeu um copo grande de água mineral.
Em seguida, foi até o hall do hotel e ligou de uma cabine telefônica para o celular de Fredrik Clinton.
— Sou eu. Como está a situação?
— Bastante agitada.
— Fredrik, você vai conseguir dar conta disso tudo?
— Sim, como antigamente. Só é pena que o Hans von Rottinger não esteja vivo. Ele era melhor que eu para planejar as operações.
— Você e ele tinham o mesmo gabarito. Podiam ocupar o lugar um do outro a qualquer momento. Aliás, vocês fizeram isso mais de uma vez.
— Havia uma diferença pequena, mínima, entre nós. Ele sempre foi um tantinho melhor que eu.
— Em que pé vocês estão?
— O Sandberg é mais esperto do que parecia. Chamamos o Mártensson como reforço. É um garoto de recados, mas nos será útil. O Blomkvist já está sob escuta, celular e telefone fixo de casa. Hoje, durante o dia, vamos cuidar dos telefones da Giannini e da Millennium. Estamos estudando a planta dos escritórios e dos apartamentos. Vamos entrar assim que possível.
— Primeiro você tem que localizar todas as cópias...
— Isso já foi feito. Tivemos uma sorte incrível. A Annika Giannini ligou para o Blomkvist agora às dez da manhã para perguntar, justamente, quantas cópias estão circulando, e descobrimos, pela conversa, que o Mikael Blomkvist é quem está com o único exemplar. A Berger fez uma cópia do relatório, mas mandou para o Bublanski.
— Ótimo. Não temos um segundo a perder.
- Eu sei. Mas precisamos pegar tudo de uma vez. Se não juntarmos todas as cópias do relatório do Bjõrck ao mesmo tempo, não vamos conseguir.
— Eu sei.
— Complicou um pouco porque a Giannini foi até Gõteborg hoje de manhã. Despachei uma equipe de colaboradores externos atrás dela. A essa hora eles estão no avião.
— Ótimo.
Gullberg não lembrava de mais nada para dizer. Ficou um bom tempo calado.
— Obrigado, Fredrik — disse por fim.
— Eu é que agradeço. Essa história é mais divertida do que ficar esperando por um rim que nunca chega.
Despediram-se. Gullberg pagou a conta do hotel e saiu. A sorte estava lançada. Agora era só esperar que a coreografia desse certo.
Primeiro, foi a pé até o Park Avenue Hotel e perguntou se poderia usar o fax. Não queria fazer isso no mesmo hotel onde tinha se hospedado. Enviou as cartas que escrevera no trem no dia anterior. Em seguida, saiu na Avenyn e procurou um táxi. Parou em frente a uma lixeira e rasgou as cópias que fizera das cartas.
Annika Giannini conversou por quinze minutos com a procuradora Agneta Jervas. Queria saber que acusações, a procuradora pretendia fazer contra Lisbeth Salander, mas percebeu rapidamente que Jervas ainda não sabia bem o que ia acontecer.
— Por enquanto, vou me limitar a indiciá-la por golpes e ferimentos agravados, acompanhados de tentativa de homicídio. Refiro-me à machadada que Lisbeth Salander desfechou no pai. Suponho que a senhora vá alegar legítima defesa.
— Pode ser.
— Mas, para ser sincera, minha prioridade no momento é o Niedermann, o assassino do policial.
— Compreendo.
— Conversei com o procurador-geral da nação. No momento, estão tentando decidir se todas as acusações contra a sua cliente não deveriam ser centralizadas por um procurador de Estocolmo e vinculadas ao que aconteceu lá.
— Estou partindo do princípio de que o caso vai ser transferido para Estocolmo.
— Ótimo. Seja como for, preciso ter a oportunidade de ouvir a Lisbeth Salander. Quando pode ser?
— Tenho aqui uma declaração do médico dela, o doutor Anders Jonasson. Ele diz que durante alguns dias Lisbeth Salander ainda não terá condições de enfrentar um interrogatório. Além dos ferimentos no corpo, ela está sob o efeito de sedativos fortíssimos.
— Foi mais ou menos o que me disseram. Mas você há de compreender que é frustrante para mim. Repito, minha prioridade no momento é o Ronald Niedermann. Sua cliente diz que não sabe onde ele está.
— E é verdade. Ela não conhece o Niedermann. Só o que ela fez foi descobrir quem ele era e ir atrás dele.
— Muito bem — disse Agneta Jervas.
Evert Gullberg segurava um buquê de flores quando entrou no elevador do Hospital Sahlgrenska junto com uma mulher de cabelos curtos e casaco escuro. Segurou educadamente a porta e deixou que ela passasse à sua frente para se dirigir à recepção.
— Meu nome é Annika Giannini. Sou advogada e preciso falar de novo com a minha cliente, Lisbeth Salander.
Evert Gullberg virou a cabeça e olhou, surpreso, para a mulher que viera com ele no elevador. Desviou o olhar para a sua pasta, enquanto a enfermeira verificava a identidade de Giannini e consultava uma lista.
— Quarto número 12 — disse a enfermeira.
— Obrigada. Já estive aqui, sei onde é.
Pegou a pasta e desapareceu do campo visual de Gullberg.
— Posso ajudar? — perguntou a enfermeira.
— Sim, obrigado, eu queria deixar essas flores para Karl Axel Bodin.
— Ele não está autorizado a receber visitas.
— Eu sei, só queria deixar as flores.
— Posso cuidar disso.
Gullberg só trouxera o buquê como pretexto. Queria ter uma idéia da burocracia de entrada. Agradeceu e se dirigiu para a saída. No caminho, cassou em frente ao quarto de Zalachenko, o número 14 segundo Jonas Sandberg.
Esperou no patamar. Pela porta de vidro, viu a enfermeira pegar o buquê que ele acabara de trazer e entrar no quarto de Zalachenko. Assim que ela voltou para a sua mesa, Gullberg empurrou a porta, dirigiu-se rapidamente para o quarto número 14 e entrou.
— Olá, Zalachenko — disse.
Zalachenko fitou, espantado, aquele visitante inesperado.
— Achei que você já estivesse morto a esta altura — disse ele.
— Ainda não — disse Gullberg.
— O que você quer? — perguntou Zalachenko.
— O que você acha?
Gullberg puxou a cadeira dos visitantes e se sentou.
— Me ver morto, provavelmente.
— Sim, até que eu ia gostar. Como você conseguiu ser tão idiota? Nós lhe demos uma vida nova, e aqui está você de novo.
Se Zalachenko pudesse sorrir, sem dúvida o teria feito. Para ele, a Segurança sueca era composta de amadores, entre os quais Evert Gullberg e Sven Jansson, ou melhor, Gunnar Bjõrck. Para não falar naquele inepto do dr. Nils Bjurman.
— E mais uma vez a gente é que tem que apagar o seu incêndio.
A metáfora não foi muito do agrado de Zalachenko, que já tinha sido vítima de graves queimaduras,
— Pare de me dar sermão. Vocês têm que me tirar daqui.
— E sobre isso que quero falar com você.
Pôs a pasta no colo, pegou um novo bloco de anotações e abriu uma página em branco. Depois, observou Zalachenko.
— Uma coisa me intriga: você seria capaz de nos fritar depois de tudo que fizemos por você?
— O que você acha?
— Depende do tamanho da sua loucura.
— Não me chame de louco. Sou um sobrevivente. Faço o que tenho que fazer para sobreviver.
Gullberg balançou a cabeça.
— Não, Alexander, você faz o que faz porque é ruim e depravado. Você queria saber qual a posição da Seção. Pois estou aqui para te informar. Desta vez não vamos levantar um dedo para te ajudar.
Pela primeira vez, Zalachenko pareceu hesitar.
— Você não tem escolha — disse.
— Sempre se tem escolha — disse Gullberg.
— Eu vou...
— Você não vai fazer coisa nenhuma.
Gullberg respirou fundo, enfiou a mão no bolso externo da pasta marrom e pegou uma Smith & Wesson 9 milímetros com coronha banhada a ouro. A arma era um presente de vinte e cinco anos atrás do serviço de informações inglês — fruto de uma informação inestimável que ele extorquira de Zalachenko e transformara numa sólida moeda de troca: o nome de um estenógrafo do MI-5 inglês que, no bom e velho espírito de Philby, trabalhava para os russos.
Zalachenko pareceu surpreso. Deu uma risada.
— E o que você vai fazer com isso? Me matar? Vai passar o resto da sua miserável vida na cadeia.
— Acho que não — disse Gullberg.
De repente, Zalachenko já não sabia se Gullberg estava blefando ou não.
— Vai ser um escândalo e tanto.
— Também acho que não. Vai dar só algumas manchetes. Daqui a uma semana ninguém mais vai se lembrar do nome Zalachenko.
Os olhos de Zalachenko se estreitaram.
— Seu canalha — disse Gullberg, com uma voz tão fria que Zalachenko ficou gelado.
Ele apertou o gatilho e enfiou a bala no meio da testa de Zalachenko no exato momento em que este começava a puxar a prótese sobre a beira da cama. Zalachenko foi projetado para trás, sobre o travesseiro. Seu corpo se agitou em alguns movimentos espasmódicos, depois se aquietou. Gullberg viu os respingos formarem uma flor vermelha na parede atrás da cabeceira da cama. O tiro ecoava em seus ouvidos e ele esfregou maquinalmente o canal auditivo com o dedo indicador livre.
Em seguida levantou-se, acercou-se de Zalachenko, pressionou o cano da arma em sua têmpora e atirou mais duas vezes. Queria ter certeza de que o velho canalha estava realmente morto.
Lisbeth Salander ergueu-se de um salto quando o primeiro tiro foi disparado. Sentiu uma dor intensa no ombro. Quando os dois tiros seguintes ecoaram, tentou jogar as pernas sobre a beira da cama.
Annika Giannini estava conversando com Lisbeth havia poucos minutos quando ouviram os tiros. De início, ficou paralisada, tentando entender de onde vinha o disparo. A reação de Lisbeth Salander lhe mostrou que algo estava acontecendo.
— Não se mexa! — gritou. Pôs automaticamente a mão no peito de Lisbeth Salander, prendendo sua cliente na cama com tanta força que Lisbeth se sentiu sufocar.
Então Annika atravessou depressa o quarto e abriu a porta. Avistou duas enfermeiras correndo em direção a um quarto duas portas adiante. A primeira estacou de chofre ao entrar. Annika ouviu-a gritar: "Não faça isso" e dar um passo atrás, esbarrando na outra.
— Ele está armado. Corra.
Annika viu as duas enfermeiras abrirem a porta do quarto vizinho ao de Lisbeth e se refugiarem lá dentro.
No instante seguinte, viu o homem magro de cabelos grisalhos e paletó pied-de-poule aparecer no corredor. Segurava uma pistola na mão. Annika reconheceu o homem que subira com ela no elevador poucos minutos antes.
Então seus olhares se cruzaram. Ele pareceu embaraçado. Em seguida, viu que ele virava a arma em sua direção e dava um passo à frente. Ela levou a cabeça para trás, bateu a porta e olhou em volta, desesperada. Bem à seu lado havia uma mesa alta de enfermagem. Puxou-a num gesto brusco para junto da porta e prendeu-a debaixo da maçaneta.
Escutou um movimento, virou a cabeça e viu que Lisbeth Salander tentava sair da cama novamente. Alcançou sua cliente em poucas passadas e pegou-a no colo. Arrancou os eletrodos e o gotejador para levá-la até o banheiro, onde a acomodou sobre a tampa do vaso sanitário. Virou-se e fechou a porta a chave. Em seguida, pegou o celular no bolso do casaco e ligou para o 112.
Evert Gullberg se aproximou do quarto de Lisbeth Salander e tentou mover a maçaneta da porta. Estava bloqueada com alguma coisa. Não se mexeu um milímetro sequer.
Por um instante, ficou indeciso diante da porta. Sabia que Annika Giannini estava no quarto e se perguntou se uma cópia do relatório de Bjõrck não estaria em sua bolsa. Não podia entrar no quarto e não tinha forças suficientes para arrombar a porta.
Mas isso não fazia parte do plano. O encarregado de Giannini e da ameaça que ela podia representar era o Clinton. A parte dele limitava-se a Zalachenko.
Gullberg olhou em volta no corredor e percebeu que estava sendo observado por cerca de vinte enfermeiras, pacientes e visitantes que esticavam a cabeça pela abertura das portas. Ergueu a pistola e deu um tiro num painel afixado no fundo do corredor. Sua platéia desapareceu como num passe de mágica.
Lançou um último olhar para a porta fechada, voltou resolutamente para o quarto de Zalachenko e fechou a porta. Sentou-se na poltrona dos visitantes e contemplou o dissidente russo que durante tantos anos fora parte integrante de sua vida.
Permaneceu imóvel durante quase dez minutos, até que ouviu a agitação no corredor e percebeu que a polícia estava chegando. Não pensou em nada de especial.
Então ergueu a pistola uma última vez, apontou-a para a própria têmpora e apertou o gatilho.
Os acontecimentos que se seguiram demonstraram a imprudência de tentar se suicidar no Hospital Sahlgrenska. Evert Gullberg foi levado com urgência ao serviço de traumatologia do hospital, sendo recebido pelo Dr. Anders Jonasson, que imediatamente deu início a uma série de medidas destinadas a manter suas funções vitais.
Pela segunda vez em menos de uma semana, Jonasson realizou uma cirurgia de emergência para extrair uma bala dos tecidos cerebrais humanos.
Após cinco horas de cirurgia, o estado de Gullberg permanecia crítico. Mas ele estava vivo.
Os ferimentos de Evert Gullberg, porém, eram bem mais graves que os de Lisbeth Salander. Durante vários dias ele oscilou entre a vida e a morte.
Mikael Blomkvist estava no Kaffebar, na Hornsgatan, quando escutou no rádio a notícia de que um homem de cerca de sessenta anos, ainda não identificado e que estava sendo acusado de tentar matar Lisbeth Salander, havia sido morto com um tiro no Hospital Sahlgrenska em Gõteborg. Ele largou a xícara, apanhou a sacola do computador e correu para a redação na Gõtgatan. Atravessou a Mariatorget e estava entrando na Sankt Paulsgatan quando seu celular tocou. Atendeu sem parar de caminhar.
— Blomkvist.
— Oi, é a Malu.
— Acabo de ouvir o noticiário. Já se sabe quem atirou?
— Ainda não. O Henry Cortez está indo atrás.
— Eu estou indo para aí. Chego em cinco minutos.
Na porta da Millennium, Mikael cruzou com Henry Cortez, que ia saindo.
— O Ekstròm vai dar uma entrevista coletiva às três da tarde — disse Henry. — Estou indo para Kungsholmen.
— E o que já se sabe? — gritou Mikael às suas costas.
— Malu — disse Henry, e desapareceu.
Mikael dirigiu-se à sala de Erika Berger... opa, de Malu Eriksson. Ela estava ao telefone, tomando notas febrilmente num post-it amarelo. Fez com a mão um sinal para que ele saísse. Mikael foi até a copa e encheu de café com leite duas canecas, uma com o logotipo da Juventude Cristã-Democrata e outra com o do Círculo da Juventude Social-Democrata. Quando voltou à sala de Malu, ela estava encerrando a ligação. Ele lhe ofereceu a caneca do cjs.
— Bem — disse Malu. — O Zalachenko foi morto hoje às 13h15. Ela olhou para Mikael.
— Acabo de falar com uma enfermeira do Sahlgrenska. Diz ela que o assassino é um homem de certa idade, em torno dos setenta anos, que foi levar flores para o Zalachenko minutos antes do assassinato. Deu vários tiros à queima-roupa na cabeça do Zalachenko e depois apontou a arma para si mesmo. O Zalachenko está morto. O assassino sobreviveu, está sendo operado.
Mikael respirou aliviado. Desde que ouvira a notícia no Kaffebar, estava com um aperto no coração e a sensação, bem próxima do pânico, de que Lisbeth Salander é que tivesse disparado a arma. O que iria realmente complicar seu plano.
— Já sabem o nome do assassino? — ele perguntou.
Malu balançava a cabeça quando o telefone voltou a tocar. Ela atendeu e, pela conversa, Mikael percebeu que era um freelancer enviado por Malu até o Sahlgrenska. Ele fez um gesto com a mão e foi para a sua sala.
Tinha a impressão de que era a primeira vez, em semanas, que ia para a redação da Millennium. Decididamente, empurrou de lado uma pilha de correspondência ainda fechada. Ligou para a irmã.
— Giannini.
— Oi. E o Mikael. Você soube do que aconteceu no Sahlgrenska?
— É, pode-se dizer que sim.
— Aonde você está?
— No Sahlgrenska. O canalha apontou a arma para mim.
Mikael permaneceu calado por vários segundos até entender o que sua irmã estava dizendo.
— Puta merda... você estava aí?
— Estava. Foi a pior experiência que já tive na vida.
— Você está ferida?
— Não. Mas ele tentou entrar no quarto da Lisbeth. Eu bloqueei a porta e me tranquei com ela no banheiro.
Mikael, de repente, sentiu seu mundo balançar. Sua irmã por pouco não...
— Como está a Lisbeth? — ele perguntou.
— Está tudo bem. Quero dizer, tudo bem quanto a essa tragédia de hoje.
Ele respirou um pouco melhor.
— Annika, você sabe alguma coisa sobre o assassino?
— Nadica de nada. É um homem de idade, bem-vestido. Achei seu ar um pouco perturbado. Nunca o tinha visto, mas ele estava comigo no elevador minutos antes do assassinato.
— E o Zalachenko está mesmo morto?
— Está. Eu escutei três tiros e, pelo que ouvi por aqui, atiraram nele três vezes. Foi um caos absoluto, os policiais correndo para lá e para cá, e um setor inteiro de pessoas gravemente feridas, que não podem ser removidas, teve de ser evacuado. Quando a polícia chegou, alguém até tentou interrogar a Salander sem entender até que ponto ela está mal. Fui obrigada a falar grosso.
O inspetor Marcus Ackerman avistou Annika Giannini no quarto de Lisbeth Salander pela abertura da porta. A advogada estava com o celular junto ao ouvido e ele esperou que ela terminasse a ligação.
Duas horas depois do assassinato, um caos mais ou menos organizado ainda reinava no corredor. O quarto de Zalachenko estava interditado. Alguns médicos haviam tentado intervir logo após os tiros, mas desistiram em seguida. Zalachenko não precisava mais de ajuda. Seu corpo fora levado ao necrotério e o exame da cena do crime estava em andamento.
O celular de Ackerman tocou. Era Frank Malmberg, da equipe de investigação.
— Temos uma identificação segura do assassino — disse Malmberg. — Seu nome é Evert Gullberg, tem setenta e oito anos. Meio velho para um assassino!
— E quem é o puto desse Evert Gullberg?
— Aposentado. Mora em Laholm. Parece que é advogado empresarial. Recebi uma ligação da DGPN/Sapo dizendo que recentemente eles abriram um inquérito preliminar sobre ele.
— Quando e por quê?
— Quando eu não sei. Por quê... bem, porque ele tinha o péssimo hábito de mandar cartas ameaçadoras e sem pé nem cabeça para figuras públicas.
— Para quem, por exemplo?
— Para o ministro da Justiça.
Marcus Ackermann suspirou. Quer dizer, um louco. Um justiceiro.
— Hoje de manhã a Sapo recebeu ligações de vários jornais para os quais o Gullberg tinha escrito cartas. O Ministério da Justiça também telefonou, depois que o tal Gullberg ameaçou expressamente o Karl Axel Bodin de morte.
— Quero uma cópia dessas cartas.
— Da Sapo?
— Claro, porra. Vá até Estocolmo buscá-las pessoalmente, se preciso. Quero as cartas na minha mesa quando eu voltar para a chefatura de polícia. Ou seja, daqui a uma hora mais ou menos.
Ele refletiu um instante e fez mais uma pergunta.
— Foi a Sapo que ligou para você?
— Foi o que eu disse.
— Quero dizer, foram eles que ligaram para você, e não o contrário?
— Isso mesmo.
— Certo — disse Marcus Ackerman, e desligou o celular.
Perguntou-se o que dera na telha da Sapo para, de repente, ter a iniciativa de contatar a polícia comum. Em geral, era praticamente impossível conseguir que ela desse o menor sinal de vida.
Com um gesto brusco, Wadensjõõ abriu a porta do quarto que Fredrik Clinton usava para repousar na Seção. Clinton se ergueu com cautela na cama.
— Eu gostaria de saber que baderna é essa — berrou Wadensjõõ. — O Gullberg matou o Zalachenko e depois deu um tiro na cabeça.
— Eu sei — disse Clinton.
— Você sabe? — exclamou Wadensjõõ.
Ele estava escarlate e parecia prestes a ter um derrame cerebral.
— Já pensou, o idiota deu um tiro em si próprio. Tentou se suicidar. Ele por acaso pirou?
— Quer dizer que ele ainda está vivo?
— Por enquanto, sim, mas está com lesões enormes no cérebro. Clinton suspirou.
— Que pena — disse, a voz repleta de tristeza.
— Pena?! — gritou Wadensjõõ. — Ora essa, o Gullberg está é completamente maluco. Você não percebe que...
Clinton interrompeu-o.
— O Gullberg está com câncer. No estômago, no cólon e na bexiga. Faz meses que ele está morrendo e, na melhor das hipóteses, só teria mais dois meses de vida.
- Câncer?
- Faz seis meses que ele carregava essa arma com ele, firmemente disposto a usá-la quando a dor se tornasse insuportável e antes que ele próprio se transformasse num pacote humilhado em alguma UTI. Com isso, ele pôde prestar um último serviço à Seção. Foi uma saída triunfal.
Wadensjõò parecia atônito.
__Você sabia que ele pretendia matar o Zalachenko.
— É evidente. A missão dele era dar um jeito para o Zalachenko nunca mais ter a oportunidade de falar. E você sabe muito bem que ele não se deixava ameaçar, muito menos convencer.
— Mas você não percebe o escândalo que isso vai provocar? Você está tão maluco quanto o Gullberg?
Clinton levantou-se com dificuldade. Fitou Wadensjõò olho no olho e lhe passou uma pilha de faxes.
— A decisão depende do setor de intervenções. Eu lamento pelo meu amigo, mas é bem provável que eu o siga muito em breve. Quanto a esta história de escândalo... Um ex-perito em assuntos fiscais escreveu cartas claramente paranóicas, fruto de uma mente perturbada, e mandou para os jornais, a polícia e o Ministério da Justiça. Aqui tem uma. O Gullberg acusa o Zalachenko de tudo que é coisa, desde o assassinato do Palme até uma tentativa de envenenar a população sueca com cloro. As cartas foram manifestamente escritas por um doente mental, em certos trechos a letra está ilegível, com maiúsculas, sublinhados e pontos de exclamação. Gosto do jeito como ele escreve na margem.
Wadensjõò leu as cartas, enquanto seu espanto crescia. Passou a mão pela testa. Clinton olhou para ele.
— O que quer que aconteça, a morte de Zalachenko não vai ter nada a ver com a Seção. Quem atirou foi um aposentado desnorteado e demente.
Ele fez uma pausa.
— O mais importante, a partir de agora, é você se manter na linha. Não fique se agitando dentro da canoa, que ela pode virar!
Cravou o olhar em Wadensjõò. De súbito, o olhar daquele homem exibiu uma dureza de aço.
— Você precisa entender que a Seção é figura de proa no conjunto da Defesa sueca. Somos a última linha de defesa. Nossa missão é zelar pela segurança do país. O resto não tem a menor importância.
Wadensjõõ mirou Clinton fixamente, com um olhar de dúvida.
— Nós somos aqueles que não existem. Somos aqueles a quem ninguém agradece. Somos aqueles que precisam tomar as decisões que ninguém mais consegue tomar... muito menos os políticos.
Havia desprezo em sua voz quando pronunciou a última palavra.
— Faça o que eu estou dizendo, e a Seção talvez sobreviva. Mas para que isso aconteça vamos precisar ter muita determinação e não usar meias-medidas.
Wadensjõõ sentiu-se invadido pelo pânico.
Henry Cortez anotou febrilmente tudo o que era dito no tablado durante a entrevista coletiva da chefatura de polícia em Kungsholmen. O procurador Ekstrõm foi quem abriu a coletiva. Explicou que, naquela manhã, eles haviam decidido entregar a um procurador da jurisdição de Gõteborg a instrução do assassinato de um policial em Gosseberga, pelo qual Ronald Niedermann era procurado, mas que qualquer outra investigação referente a Niedermann seria dirigida por ele próprio. Niedermann era, portanto, suspeito dos assassinatos de Dag Svensson e Mia Bergman. O dr. Bjurman não foi mencionado. Ekstrõm também iria investigar Lisbeth Salander e entrar com uma ação na Justiça cobrindo uma extensa lista de infrações.
Ele explicou que decidira tornar pública essa informação após os acontecimentos de Gõteborg naquele dia, já que o pai de Lisbeth Salander, Karl Axel Bodin, havia sido morto a tiros. O primeiro motivo daquela entrevista coletiva é que ele queria desmentir algumas informações já divulgadas pela imprensa, sobre as quais já recebera várias ligações.
— Com base nas informações de que dispomos no momento, posso dizer que a filha de Karl Axel Bodin, que se encontra detida por tentativa de homicídio contra o seu pai, não tem nada a ver com os acontecimentos desta manhã.
— E quem é o assassino? — gritou um jornalista do Dagens Eko.
— Foi identificado o homem que, às 13hl5 de hoje, fez os disparos que mataram Karl Axel Bodin e depois tentou se suicidar. E um aposentado de setenta e oito anos, que fazia algum tempo vinha se tratando de uma doença fatal e dos problemas psíquicos decorrentes dessa doença.
- Existe alguma ligação com Lisbeth Salander?
- Não. Podemos refutar essa hipótese com toda a segurança. Essas duas pessoas nunca se viram e não se conhecem. O homem de setenta e oito anos é uma figura trágica. Ele agiu sozinho, levado por suas próprias fantasias, claramente paranóicas. Não faz muito tempo, a Sapo iniciou uma investigação sobre ele por causa de uma quantidade de cartas confusas que ele escreveu para políticos de destaque e para a imprensa. Ainda hoje de manhã, cartas desse homem chegaram aos jornais e a autoridades, contendo ameaças de morte contra Karl Axel Bodin.
— Por que a polícia não colocou Bodin sob proteção?
— As cartas foram enviadas ontem à noite e, pelo que se sabe, chegaram justamente no instante em que ele cometia o assassinato. Não houve nenhuma margem de ação para nós.
— Qual o nome desse homem?
— Não podemos divulgar o nome dele antes que a família tenha sido informada.
— Sabe-se alguma coisa do passado dele?
— Pelo que entendi até agora, ele era auditor e especialista em assuntos fiscais. Estava aposentado havia quinze anos. As investigações continuam, mas, como mostram as cartas, essa tragédia talvez pudesse ter sido evitada se a sociedade fosse mais vigilante.
— Ele ameaçou outras pessoas?
— Segundo me informaram, ameaçou, mas não tenho mais detalhes.
— O que isso significa para o processo de Lisbeth Salander?
— Por enquanto, nada. Dispomos do depoimento que o próprio Karl Axel Bodin prestou aos policiais que o interrogaram e temos provas técnicas consideráveis contra ela.
— E quanto à informação de que Bodin teria tentado matar a filha?
— Isso está sendo investigado, mas há fortes indícios de que é verdade. Tudo parece indicar que estamos diante de sérios antagonismos de uma família desfeita de modo trágico.
Henry Cortez parecia pensativo. Cocou a orelha. Observou que seus alegas tomavam notas tão febrilmente quanto ele.
Gunnar Bjõrck sentiu o pânico invadi-lo ao escutar a notícia dos tiros no Sahlgrenska. Estava com dores terríveis nas costas.
Primeiro, permaneceu indeciso por mais de uma hora. Depois, pegou o telefone e tentou ligar para seu antigo protetor, Evert Gullberg, em Laholm. Ninguém atendeu.
Assistiu ao noticiário e ouviu o resumo do que havia sido dito na entrevista coletiva da polícia. Zalachenko morto por um justiceiro.
Caramba. Setenta e oito anos.
Tentou ligar mais uma vez para Evert Gullberg, sem sucesso.
Por fim, o pânico e a angústia prevaleceram. Ele não podia ficar na casa que tinham lhe emprestado em Smâdalarõ, pois ali se sentia cercado e exposto. Precisava de tempo para pensar. Enfiou roupa, analgésicos e objetos de higiene pessoal numa sacola. Preferiu não usar o telefone e foi mancando até uma cabine, em frente à mercearia, a fim de ligar para Landsort e fazer uma reserva no velho farol transformado em pousada. Landsort ficava no fim do mundo, e pouca gente iria procurá-lo lá. Fez uma reserva para duas semanas.
Consultou o relógio. Precisava correr se quisesse pegar a última balsa e voltar para casa tão depressa quanto suas costas doloridas permitiam. Passou pela cozinha para conferir se a cafeteira elétrica estava desligada, e foi até o hall de entrada apanhar a sacola. Deu uma última olhada na sala e se deteve, atônito.
De início, não entendeu o que via.
O lustre fora misteriosamente retirado e colocado sobre a mesa de centro. Em seu lugar, havia uma corda presa no gancho, acima de um banquinho que costumava ficar na cozinha.
Bjõrck olhou para a corda sem entender.
Então escutou um movimento atrás de si e sentiu as pernas fraquejarem.
Virou-se lentamente.
Eram dois homens de cerca de trinta anos. Observou que tinham um tipo mediterrâneo. Não teve tempo de reagir quando o agarraram delicadamente, cada um por um braço, ergueram-no e o puxaram para trás em direção ao banquinho. Quando ele tentou resistir, a dor transpassou-o como uma facada nas costas. Estava quase paralisado quando sentiu que o colocavam sobre o banco.
Tonas Sandberg estava acompanhado de um homem de cerca de cinqüenta anos, apelidado de Falun, que quando jovem fora assaltante profissional e mais tarde se tornara chaveiro. Hans von Rottinger, da Seção, recrutara Falun em 1986 para uma operação que consistia em arrombar a casa do líder de uma organização anarquista. Depois disso, Falun tinha sido regularmente recrutado até meados dos anos 1990, quando esse tipo de ação perdera o fôlego. Cedo, pela manhã, Fredrik Clinton reativara o relacionamento contatando Falun para uma missão. Falun ia ganhar dez mil coroas livres de impostos para trabalhar cerca de dez minutos. Em troca, comprometera-se a não roubar nada no apartamento visado; a Seção, afinal, não tinha uma atuação criminosa.
Falun não sabia ao certo o que Clinton representava, mas supunha que tinha alguma relação com o Exército. Ele lera Jan Guillou. Não fazia perguntas. Em compensação, estava feliz por voltar à ativa após tantos anos de silêncio por parte do sócio.
Sua função era abrir portas. Era especialista em arrombamentos e utilizava uma picareta elétrica. Contudo, precisou de cinco minutos para forçar as fechaduras do apartamento de Mikael Blomkvist. Depois, Falun esperou no patamar enquanto Jonas Sandberg passava pela porta.
— Entrei — disse Sandberg ao microfone do seu headset.
— Ótimo — disse Fredrik Clinton no seu receptor. — Fique calmo e aja com prudência. Descreva-me o que está vendo.
— Estou no hall de entrada, há um armário e uma prateleira para chapéus à direita e um banheiro à esquerda. O resto do apartamento é uma sala grande, de uns cinqüenta metros quadrados. Tem uma pequena cozinha americana à direita.
— Por acaso tem uma mesa de trabalho ou...
— Tenho a impressão de que ele trabalha na mesa da cozinha, ou então no sofá... espere.
Clinton esperou.
— É. Tem uma pasta na mesa da cozinha com o relatório do Bjõrck. Parece ser o original.
— Ótimo. Há mais alguma coisa interessante em cima da mesa?
— Livros. As memórias de I. G. Vinge. Luta pelo controle da Sapo, de Krik Magnusson. Uns seis livros desse tipo.
— Computador?
— Não.
— Armário com chave?
— Não... não estou vendo.
- Certo. Não tenha pressa. Examine cada metro quadrado do apartamento. O Mártensson está me informando que o Blomkvist continua na vedação. Você está usando luvas?
— É claro.
Marcus Ackerman esperou que Annika Giannini terminasse a ligação para entrar no quarto de Bishelh Salander. Estendeu a mão para Annika e se apresentou. Depois cumprimentou Bishelh e perguntou-lhe como estava se sentindo. Bishelh Salander não disse nada. Ele se virou para Annika (íiannini.
— Eu queria fazer umas perguntas.
— Tudo bem.
— Poderia me contai o que aconteceu?
Annika Giannini contou o que ela linha vivenciado c sua atuação ale o momento em que se trancou com Lisbeth no banheiro. Ackerman pareceu pensativo. Olhou para Bishelh Salander e depois para a advogada.
— Então a senhora acha que ele vinha para este quarto.
— Eu ouvi, ele tentou abrir a porta.
- Tem certeza? A gente imagina um monte de coisa quando está com medo ou enlouquecido.
— Eu ouvi. Ele me viu. Apontou a arma paia num.
— Acha que ele também estava tentando matar a senhora?
— Não sei. Pus a cabeça para dentro e bloqueei a porta.
— Fez muito bem. E fez melhor ainda quando escondeu sua cliente no banheiro. Essas portas são tão finas que as balas provavelmente teriam atravessado a madeira caso ele atirasse. O que estou tentando entender é se ele quis de fato apontar a arma para a senhora ou se apenas reagiu porque a senhora estava olhando. Estava muito perto dele, no corredor.
— É verdade.
- Tive a impressão de que ele a conhecia, ou reconhecia, quem sabe?
- Na verdade, não.
— Você poderia conhecê-la dos jornais? A senhora foi mencionada em vários casos importantes.
— Pode ser. Não sei.
— E a senhora nunca o tinha visto antes?
— Vi no elevador, quando cheguei aqui.
— Ali, isso eu não sabia. Vocês conversaram?
— Não. Olhei para ele durante talvez meio segundo. Ele estava com um buquê de flores numa mão e uma pasta na outra.
— Vocês fizeram contato visual?
— Não. Ele estava olhando para a frente.
— Ele foi o primeiro a entrar no elevador, ou foi a senhora? Annika refletiu.
— Acho que entramos mais ou menos na mesma hora.
— Ele parecia perturbado ou...
— Não. Distava ali parado segurando as flores.
— O que aconteceu em seguida?
— Saí do elevador. Ele também saiu, e eu fui me encontrar com a minha cliente.
— Veio direto para o quarto?
— Sim... não. Ouça! Primeiro fui até a recepção me identificar. O procurador decretou proibição de visitas para a minha cliente.
— Onde estava o homem nessa hora?
Annika Giaimini hesitou.
— Não tenho certeza. Imagino que tenha vindo atrás de mim. Espere... Ele saiu do elevador primeiro, mas parou e segurou a porta para mim. Eu não posso jurar, mas acho que ele também foi até a recepção. Eu só fui mais rápida que ele.
Um assassino aposentado muito galante, pensou Ackerman.
— É verdade, ele foi ate a recepção — ele confirmou. — Falou com a enfermeira e entregou o buquê de flores para ela. Mas a senhora não viu isso?
— Não, acho que não.
Marcus Ackerman pensou uni pouco, mas não se lembrou de mais nada para perguntar. Uma sensação de frustração o incomodava. Já tivera essa sensação e aprendera a interpretá-la como um alerta de seu instinto.
O assassino fora identificado como Evert Gullberg, setenta e oito anos, ex-auditor, eventual consultor de empresas e especialista em assuntos fiscais. Um homem de idade avançada. Um homem que estava sofrendo um inquérito preliminar aberto recentemente pela Sapo, porque ele era um doido que mandava cartas com ameaças para celebridades.
Sabia, por sua experiência como policial, que existia um bocado de gente doida, gente obcecada que ficava assediando celebridades e ia em busca do amor fixando residência num bosque atrás das mansões delas. E, ao não ser correspondido, esse amor podia rapidamente se transformar num ódio cego. Existiam assediadores que saíam da Alemanha ou da Itália para declarar sua paixão à jovem cantora de um famoso grupo pop, e ficavam injuriados quando ela não permitia uma relação de intimidade. Existiam os justiceiros que ficavam ruminando ofensas reais ou imaginárias e podiam apresentar um comportamento bastante ameaçador. Existiam os psicopatas puros e os doidos obcecados por conspirações, capazes de detectar mensagens ocultas que escapavam ao resto do mundo.
Também não faltavam exemplos de malucos que faziam seus fantasmas entrar em ação. O assassinato de Anna Lindh não seria justamente o impulso de um doente desses? Talvez sim. Talvez não.
Mas o inspetor Marcus Ackerman não gostou nem um pouco que um ex-especialista em assuntos fiscais, ou outra profissão qualquer, psiquicamente perturbado, tivesse conseguido entrar no Hospital Sahlgrenska com um buquê de flores na mão e uma pistola na outra e executado uma pessoa que, naquele momento, era objeto de investigação policial — a sua investigação. Um homem que nos registros oficiais tinha o nome de Karl Axel Bodin, mas que, segundo Mikael Blomkvist, chamava-se Zalachenko e era um maldito agente russo dissidente, além de assassino.
Zalachenko, no melhor dos casos, era uma testemunha, e no pior, estava envolvido numa série de homicídios. Ackerman tivera a oportunidade de interrogar Zalachenko duas vezes e em momento algum acreditara em seus protestos de inocência.
Além disso, o assassino mostrara interesse por Lisbeth Salander ou, pelo menos, por sua advogada. Tinha tentado entrar em seu quarto.
Depois tentara se suicidar com um tiro na cabeça. Segundo os médicos, parecia estar tão mal que a tentativa provavelmente seria bem-sucedida, embora seu corpo ainda não tivesse entendido que chegara a hora de abandonar o jogo. Tudo levava a crer que Evert Gullberg nunca compareceria diante de um juiz.
Marcus Ackerman não estava gostando da situação. Nem um pouco. Mas nada provava que os disparos de Gullberg eram algo além do que pareciam. De qualquer modo, resolveu não descartar nada. Olhou para Annika Giannini.
— Decidi transferir Lisbeth Salander para outro quarto. Ainda tem um vago no pedacinho de corredor à direita da recepção que, do ponto de vista da segurança, é muito melhor que este. Fica visível da recepção e da sala das enfermeiras do dia e da noite. Toda visita está proibida, com exceção da senhora. Ninguém vai entrar no quarto dela sem autorização, a não ser um médico ou enfermeira conhecidos no Sahlgrenska. Vou mandar instalar uma vigilância vinte e quatro horas na frente do quarto.
— Acha que ela está ameaçada?
— Nada indica isso. Mas não quero correr nenhum risco.
Lisbeth Salander escutou atentamente a conversa entre sua advogada e seu adversário policial. Estava impressionada de ouvir Annika Giannini responder com tanta precisão e clareza, e com tantos detalhes. Estava ainda mais impressionada pela atuação lúcida da advogada num momento de estresse.
Afora isso, estava com uma tremenda dor de cabeça desde que Annika a puxara da cama e carregara para o banheiro. Por instinto, queria ter o mínimo possível a ver com a equipe do hospital. Não gostava de pedir ajuda e dar sinais de fragilidade. Mas a dor de cabeça era tão arrasadora que ela não conseguia concatenar as idéias. Estendeu a mão e apertou a campainha.
Annika Giannini planejara a viagem a Gòteborg como o prólogo de um trabalho de fôlego. Pensara em conhecer Lisbeth Salander, informar-se sobre seu real estado de saúde e traçar um primeiro esboço da estratégia que ela e Mikael Blomkvist tinham combinado com vistas ao processo. De início, imaginara voltar para Estocolmo naquela noite, mas os extraordinários acontecimentos do Sahlgrenska impediram que conversasse com Lisbeth Salander. O estado de sua cliente era bem pior do que ela tinha entendido quando os médicos o classificaram como estável. Lisbeth continuava atormentada por uma dor de cabeça terrível e estava com muita febre, motivo pelo qual uma médica chamada Helena Endrin prescrevia-lhe analgésicos fortes, antibióticos e repouso. Tão logo sua cliente foi transferida para o novo quarto e um policial foi designado para a sua vigilância, Annika foi expulsa de lá.
Ela resmungou e consultou o relógio, que indicava quatro e meia da tarde. Hesitou. Se fosse para Estocolmo, provavelmente teria de voltar a Gõteborg no dia seguinte. Podia passar a noite ali, mas também se arriscar a que no dia seguinte sua cliente não estivesse em condições de suportar uma visita. Não tinha reservado um quarto num hotel; afinal, ela era apenas uma advogada com orçamento reduzido que representava mulheres expostas à violência e sem recursos, portanto procurava não inchar suas despesas com faturas caras de hotel. Ligou primeiro para casa, depois para sua colega Lillian Josefsson, membro da Rede de Mulheres e uma velha amiga da universidade. Fazia dois anos que não se viam e conversaram um pouco antes de Annika contar por que estava ligando.
— Estou em Gótehorg — disse. — Eu tinha planejado voltar no final da tarde, mas aconteceram umas coisas e vou ser obrigada a passar a noite aqui. Achei que talvez você pudesse me convidar para ficar um pouco na sua casa.
— Ótimo. Adoro parasitas. Faz uma eternidade que a gente não se vê.
— Não vou incomodar?
— Não, claro que não. Eu me mudei. Estou morando perto da Linnegatan. Tenho um quarto de hóspedes. A gente podia dar uma volta pelos bares à noite.
— Se eu tiver energia. A que horas posso ir para aí? Combinaram que Annika apareceria por volta das seis da tarde. Annika pegou o ônibus para a Linnegatan e passou a hora seguinte num restaurante grego. Estava faminta, pediu um espetinho com salada. Refletiu demoradamente sobre os acontecimentos do dia. Estava meio trêmula, agora que o pico de adrenalina tinha baixado, mas contente consigo mesma. Agira sem hesitação diante do perigo, com calma e eficiência. Era bom ter essa segurança sobre suas próprias capacidades.
Por fim, pegou sua agenda Filofax dentro da pasta e deu uma folheada na parte das anotações. Leu concentradamente. O que seu irmão lhe explicara a deixava perplexa. Na hora, tinha parecido lógico, mas na verdade havia belas lacunas naquele plano. Contudo, ela não tinha intenção de recuar.
Às seis horas, pagou, foi a pé para o prédio de Lillian Josefsson, na Olivedalsgatan, e teclou o código de acesso que sua amiga lhe fornecera. Quando entrou no hall e começou a procurar o elevador com os olhos, o ataque caiu sobre ela feito um raio. Sem nenhum tipo de aviso, foi brutal e violentamente jogada contra a parede de tijolos do hall. Bateu a testa e sentiu uma dor lancinante.
No instante seguinte, ouviu passos que se afastavam rapidamente, e a porta se abrindo e fechando. Levantou-se, apalpou a testa e viu sangue em sua mão. Caramba! Confusa, olhou em volta e foi para a rua. Avistou as costas de um homem dobrando a esquina da Sveaplan. Ficou atordoada, sem se mover, durante um longo minuto.
Então percebeu que sua pasta não estava mais ali, que acabava de ser roubada. Demorou alguns segundos para que as conseqüências disso chegassem até seu cérebro. Não! O dossiê Zalachenko. Sentiu o choque se espalhando a partir do estômago e deu alguns passos hesitantes atrás do homem que fugia. Não ia adiantar. Ele já havia sumido.
Sentou-se devagar na beira da calçada.
Então, de um salto, se pôs de pé e vasculhou o bolso do casaco. A agenda. Graças a Deus. Ao sair do restaurante ela a tinha guardado no bolso em vez de na pasta. Continha, item por item, a primeira versão da sua estratégia no caso Lisbeth Salander.
Correu para a porta, teclou novamente o código, entrou e subiu a escada até o terceiro andar, onde se pôs a martelar na porta de Lillian Josefsson.
Já eram mais de seis e meia quando Annika, recuperada de suas emoções, conseguiu ligar para Mikael Blomkvist. Estava com um olho roxo e um corte aberto no supercílio, que Lillian Josefsson tinha limpado com álcool antes de aplicar um curativo. Não, Annika não queria ir para o hospital. Sim, aceitava uma xícara de chá. Só então começou a pensar racionalmente. Sua Primeira medida foi chamar seu irmão.
Mikael Blomkvist ainda estava na redação da Millennium, buscando informações sobre o assassino de Zalachenko junto com Henry Cortez e Malu Eriksson. Escutou o relato de Annika com um espanto crescente.
— Você está bem? — perguntou.
— Olho roxo. Vou estar em condições de agir depois que eu me acalmar.
— Puta merda, roubo seguido de violência?
— Levaram a minha pasta com o dossiê Zalachenko que você tinha me dado. Sumiu.
— Não faz mal, posso fazer uma cópia.
Ele se interrompeu, sentindo os cabelos se arrepiarem de repente na cabeça. Primeiro Zalachenko. Agora Annika.
— Annika... eu já te ligo.
Fechou o iBook, enfiou-o na sacola e saiu depressa da redação, sem uma palavra. Correu até em casa, na Bellmansgatan, e subiu os degraus da escada de quatro em quatro.
A porta estava trancada.
Assim que entrou no apartamento, percebeu que a pasta azul que tinha deixado na mesa da cozinha havia desaparecido. Nem se deu ao trabalho de procurá-la. Sabia exatamente onde havia deixado a pasta quando saíra do apartamento. Deixou-se cair devagar numa cadeira diante da mesa enquanto os pensamentos borbulhavam em sua cabeça.
Alguém tinha entrado no apartamento. Alguém estava tentando apagar o rastro de Zalachenko.
A sua cópia e a de Annika haviam sumido.
Bublanski ainda tinha o relatório.
Ou?
Mikael se levantou e foi até o telefone, mas parou, com o fone na mão. Alguém tinha entrado no apartamento. De repente, olhou desconfiado para o telefone e apalpou o bolso do casaco em busca do celular.
Serd que é possível pôr um celular sob escuta?
Devagar, deixou o celular ao lado do aparelho fixo e olhou em volta.
Estou lidando com profissionais. Será possível colocar um apartamento inteiro sob escuta?
Voltou a se sentar à mesa da cozinha.
Fitou a sacola do computador.
Será que é fácil interceptar e-mails? A Lisbeth sabe bem disso, ela consegue em cinco minutos.
Ficou um bom tempo refletindo antes de voltar ao telefone e ligar para a sua irmã em Gõteborg. Escolheu as palavras com cuidado.
— Oi... tudo bem?
— Estou bem, Mike.
— Me conte o que aconteceu desde que você saiu do Sahlgrenska até ser agredida.
Ela levou dez minutos para fazer um balanço do seu dia. Mikael não comentou nada sobre o impacto do que ela estava relatando, mas foi encaixando algumas perguntas até se sentir satisfeito. Passava a impressão de um irmão preocupado, mas ao mesmo tempo seu cérebro atuava em outro nível, estabelecendo pontos de referência.
Às quatro e meia da tarde, ela tinha resolvido ficar em Gõteborg e ligara do celular para a sua amiga, que lhe fornecera o endereço e o código da entrada do prédio dela. O ladrão estava esperando por ela no hall às seis em ponto.
O celular de sua irmã estava grampeado. Era a única explicação.
O que significava que o seu também estava.
Senão, não teria sentido.
— Mas eles pegaram o dossiê Zalachenko — repetiu Annika.
Mikael hesitou um instante. Quem tinha roubado o dossiê já sabia que Mikael tinha sido roubado. Era natural que contasse a Annika por telefone.
— O meu também — disse ele.
— O quê?
Ele explicou que viera correndo para casa e que a pasta azul sobre a mesa da cozinha havia desaparecido.
— Certo — disse Mikael com voz surda. — E um desastre. O dossiê Zalachenko evaporou. Era o ponto forte da nossa argumentação.
— Mike... eu sinto muito.
— Eu também — disse Mikael. — Droga! Mas não é culpa sua. Eu deveria ter divulgado o relatório no dia em que o encontrei.
— E agora, o que a gente faz?
— Não sei. É a pior coisa que podia acontecer. Nosso plano todo foi para o espaço. Não temos nem sombra de prova contra o Bjõrck e o Teleborian.
Conversaram mais uns dois minutos, então Mikael encerrou a conversa.
— Queria que você voltasse para Estocolmo amanhã — disse ele.
— Lamento. Preciso ver a Salander.
— Faça isso de manhã. Volte à tarde. Temos que nos encontrar para pensar no que fazer.
Encerrada a conversa, Mikael permaneceu imóvel no sofá, fitando um ponto à sua frente. Então um sorriso se espalhou por seu rosto. Quem tinha escutado a conversa agora sabia que a Millennium tinha perdido o relatório Bjõrck de 1991, assim como a correspondência entre Bjõrck e Teleborian, o médico de doidos. Sabia que Mikael e Annika estavam desesperados.
A desinformação é a base de toda espionagem, pelo menos isso Mikael aprendera ao estudar a história da Sapo na noite anterior. E ele acabava de plantar uma desinformação que, a longo prazo, podia se revelar inestimável.
Abriu a sacola do computador e tirou a cópia que fizera para Dragan Armanskij, mas que ainda não tivera tido tempo de lhe passar. Era o único exemplar remanescente. Não pretendia perdê-lo. Pelo contrário, pretendia fazer de imediato cinco cópias, no mínimo, e distribuí-las em locais apropriados.
Então deu uma olhada no relógio e ligou para a redação da Millennium. Malu Eriksson ainda estava lá, mas já de saída.
— Por que você saiu correndo daquele jeito?
— Você poderia esperar um pouco para ir embora? Vou voltar para a redação e preciso ver uma coisa com você antes de você sair.
Havia semanas que não punha a roupa para lavar. Não tinha tido tempo. Todas as suas camisas estavam no cesto de roupa suja. Pegou o barbeador e Luta pelo controle da Sapo, junto com o único exemplar remanescente do relatório de Bjõrck. Foi caminhando até a Dressman, comprou quatro camisas, duas calças e dez cuecas, e levou as compras para a redação. Malu Eriksson esperou enquanto ele tomava um banho rápido. Perguntou o que ele estava tramando.
— Alguém arrombou o meu apartamento e roubou o relatório Zalachenko. Alguém agrediu a Annika em Gõteborg e roubou a cópia dela. Tive a confirmação de que o telefone dela está grampeado, o que significa que o meu, e talvez o seu, e talvez todos os telefones da Millennium estejam sob escuta. E imagino que se alguém se deu ao trabalho de entrar na minha casa, seria burrice não ter aproveitado para pôr o apartamento inteiro sob escuta.
— Ah — disse Malu Eriksson com voz apagada. Ela olhou para o seu celular que estava em cima da mesa, à sua frente.
— Continue trabalhando normalmente. Use o celular, mas não passe nenhuma informação. Amanhã a gente avisa o Henry Cortez.
— Está bem. Ele saiu faz uma hora. Deixou uma pilha de investigações do Estado em cima da sua mesa. Mas o que você está fazendo aqui...?
— Pretendo dormir na Millennium esta noite. Se eles hoje mataram o Zalachenko, roubaram os relatórios e colocaram o meu apartamento sob vigilância, tudo leva a crer que estão só começando, e ainda não tiveram tempo de cuidar da Millennium. Teve gente aqui o dia inteiro. Não quero que a redação fique deserta durante a noite.
— Você acha que o assassinato do Zalachenko... Mas o assassino era um velho perturbado de setenta e oito anos.
— Não acredito nesse tipo de acaso nem por um segundo. Alguém está apagando o rastro do Zalachenko. Não estou nem aí para quem é esse velho e para quantas cartas piradas ele mandou para os ministros. Ele era uma espécie de matador de aluguel. Foi até lá com a intenção de matar o Zalachenko... e talvez a Lisbeth Salander.
— Mas ele se matou depois, ou pelo menos tentou. Um matador de aluguel faria isso?
Mikael refletiu um instante. Seu olhar cruzou com o da redatora-chefe.
— Sim, se tiver setenta e oito anos e, talvez, nada a perder. Ele está envolvido nisso tudo e, depois de cavarmos bastante, nós vamos conseguir provar.
Malu Eriksson observou com atenção o semblante de Mikael. Nunca o tinha visto tão friamente seguro e decidido. De repente, sentiu um arrepio. Mikael notou a reação dela.
— Outra coisa. Nós agora não estamos jogando contra um bando de criminosos, mas contra uma autoridade de Estado. A coisa vai esquentar.
Malu concordou com a cabeça.
— Nunca pensei que isso fosse tão longe. Malu, se você quiser tirar o time de campo, é só dizer.
Ela hesitou um instante. Perguntou-se o que Erika Berger teria respondido. Então, desafiadoramente, disse não com a cabeça.