11. SEXTA-FEIRA 13 DE MAIO - SÁBADO 14 DE MAIO
Mikael Blomkvist tomou o maior cuidado para não ser seguido quando, na sexta-feira bem cedo, foi a pé da redação da Millennium até o antigo endereço de Lisbeth Salander na Lundagatan. Precisava ir a Gõteborg se encontrar com Idris Ghidi. A questão era achar um meio de transporte seguro, sem riscos de ser identificado e que não deixasse pistas. Depois de muito ponderar, rejeitara o trem, por não querer usar seu cartão de banco. Em geral, pegava emprestado o carro de Erika Berger, mas isso já não era possível. Chegara a pensar em pedir que Henry Cortez, ou outra pessoa, alugasse um carro para ele, mas isso também acabaria deixando pistas em alguma papelada.
Por fim, descobriu a solução óbvia. Sacou uma quantia significativa num caixa automático da Gõtgatan. Usou as chaves de Lisbeth Salander para abrir a porta do Honda cor de vinho dela, que estava abandonado na frente de sua residência desde o mês de março. Ajustou o assento e constatou que o tanque estava pela metade. Deu a partida e dirigiu-se para a E4 pela ponte de Liljeholmen.
Em Gõteborg, estacionou às 14h50 numa rua transversal à Avenyn. Pediu um almoço tardio no primeiro bar que encontrou. As 16hl0, pegou o bonde para Angered e desceu no centro. Levou vinte minutos para achar o endereço de Idris Ghidi. Estava dez minutos atrasado para o encontro.
Idris Ghidi mancava. Abriu a porta, apertou a mão de Mikael Blomkvist e o convidou a entrar numa sala de mobília espartana. Sobre uma cômoda ao lado da mesa em que convidou Mikael a se sentar, havia uma dúzia de fotografias emolduradas, que Mikael contemplou.
— Minha família — disse Idris Ghidi.
Falava com um sotaque carregado. Mikael calculou que ele não sobreviveria ao teste de proficiência no idioma proposto pelos moderados.
— São seus irmãos?
— Meus dois irmãos, à esquerda, foram assassinados por Saddam nos anos 1980, assim como meu pai, que está ali no meio. A minha mãe morreu em 2000. Minhas três irmãs estão vivas. Moram no exterior. Duas na Síria e a caçula em Madri.
Mikael meneou a cabeça. Idris Ghidi serviu um café turco.
— O Kurdo Baksi mandou lembranças.
Idris Ghidi fez um gesto de assentimento com a cabeça.
— Ele lhe explicou o que eu queria?
— O Kurdo me disse que você queria me contratar para um serviço, mas não disse o que era. Já vou dizendo que não aceito fazer nada ilegal. Não posso me dar ao luxo de me envolver nesse tipo de coisa.
Mikael balançou a cabeça.
— Não há nada de ilegal no que eu vou lhe pedir, mas é uma coisa meio incomum. O serviço vai durar várias semanas, e seu trabalho propriamente dito deverá ser feito todos os dias. Por outro lado, vai levar apenas poucos minutos por dia. Estou disposto a lhe pagar mil coroas por semana. O dinheiro vai para você direto, nem precisa passar pelo fisco.
— Entendo. O que eu teria que fazer?
— Você trabalha no setor de limpeza do Hospital Sahlgrenska. Idris Ghidi fez que sim com a cabeça.
— Uma das suas tarefas diárias — ou pelo menos seis dias por semana, pelo que entendi — consiste em fazer a faxina do setor 11C, ou seja, a unidade de tratamento intensivo.
Idris Ghidi meneou a cabeça.
— O que eu queria de você é o seguinte.
Mikael Blomkvist se inclinou para a frente e explicou sua proposta.
O procurador Richard Ekstrõm contemplou, pensativo, seu visitante. Era a terceira vez que se encontrava com o delegado Georg Nystrõm. Viu um rosto enrugado, emoldurado por cabelos grisalhos. Georg Nystrõm o visitara pela primeira vez nos dias que se seguiram ao assassinato de Zalachenko. Exibira uma carteira profissional provando que trabalhava para a DGPN/Sãpo. Tiveram uma longa conversa em voz baixa.
— É importante que o senhor entenda que de maneira alguma estou tentando interferir na sua atuação ou fazer o seu trabalho — disse Nystrõm.
Ekstrõm fez um gesto de assentimento com a cabeça.
— Queria também enfatizar que em hipótese alguma o senhor poderá tornar pública a informação que vou lhe passar.
— Entendo — disse Ekstrõm.
Para ser sincero, Ekstrõm não entendia muito bem, mas não queria parecer tolo fazendo perguntas demais. Percebera que o caso Zalachenko era algo a ser tratado com a máxima cautela. Percebera também que as visitas de Nystrõm eram totalmente informais, mesmo havendo uma conexão com o chefe da Segurança.
— Estamos falando de vidas humanas — explicara Nystrõm já no primeiro encontro. — Para nós, da Sapo, tudo o que se refere à verdade sobre o caso Zalachenko é considerado segredo de Estado. Posso confirmar que se trata de um ex-agente secreto que desertou da espionagem militar soviética e uma das figuras-chave na ofensiva dos russos contra a Europa Ocidental nos anos 1970.
— Pois é... aparentemente, é o que afirma o Mikael Blomkvist.
— Nesse caso, o Mikael Blomkvist está coberto de razão. Ele é jornalista e deparou com um dos casos mais secretos da Defesa sueca em todos os tempos.
— Ele vai publicar essa história.
— Evidentemente. Ele representa a imprensa, com todas as suas vantagens e desvantagens. Vivemos numa democracia e não temos nenhuma influência sobre o que circula na mídia. A desvantagem, nesse caso, é que o Blomkvist obviamente só conhece uma parte ínfima da verdade sobre o Zalachenko, e muito do que ele sabe está errado.
— Entendo.
— O que o Blomkvist não percebe é que, se a verdade sobre o Zalachenko vier à tona, os russos vão conseguir identificar os nossos informantes e as nossas fontes entre eles. Isso significa que pessoas que arriscaram a vida pela democracia poderiam ser mortas.
— Mas a Rússia também se tornou uma democracia, não é? Quero dizer, se tudo isso aconteceu no tempo dos comunistas, então...
— Que ilusão! Estamos falando de gente que fez espionagem contra a Rússia — nenhum regime do mundo aceitaria uma coisa dessas, mesmo que tenha acontecido há vários anos. E muitas dessas fontes ainda estão em atividade...
Esses agentes não existiam, mas isso o procurador Ekstrôm não tinha como saber. Era obrigado a aceitar o que Nystrõm dizia. E, contra a sua vontade, sentia-se lisonjeado por partilhar, daquele modo informal, informações consideradas segredo de segurança nacional. Estava vagamente surpreso que a Segurança sueca tivesse conseguido penetrar na defesa russa até onde Nystrõm dava a entender e entendia perfeitamente que aquele tipo de informação sem dúvida não podia ser divulgado.
— Quando me encarregaram de entrar em contato com o senhor, realizamos uma avaliação minuciosa a seu respeito — disse Nystrõm.
Para seduzir uma pessoa, sempre é preciso identificar seus pontos fracos. O ponto fraco do procurador Ekstrõm era a convicção que ele tinha de sua própria importância, e, como todo mundo, ele apreciava a lisonja. O objetivo era ele pensar que havia sido escolhido.
— E constatamos que o senhor goza da maior confiança dentro da polícia... e também, é claro, nas esferas governamentais — acrescentou Nystrõm.
Ekstrõm se sentia no céu. Que pessoas não mencionadas das esferas governamentais confiassem nele era uma informação que indicava, sem ser claramente dito, que ele poderia contar com alguma gratidão se soubesse jogar suas cartas com habilidade. Era uma boa perspectiva para a sua carreira.
— Entendo... e o que vocês desejam?
— Falando de maneira simples, minha missão é lhe fornecer elementos da forma mais discreta possível. O senhor entende, claro, a que ponto essa história é incrivelmente complicada. Por um lado, há um inquérito preliminar dentro das normas, pelo qual o senhor é o responsável. Ninguém... nem 0 governo, nem a Segurança, nem quem quer que seja pode interferir na maneira como o senhor conduz esse inquérito. O seu trabalho consiste em descobrir a verdade e indiciar os culpados. E uma das funções mais importantes que existem num Estado de direito. Ekstrõm assentiu com a cabeça.
— Por outro lado, seria uma catástrofe nacional de proporções quase inconcebíveis se toda a verdade sobre o Zalachenko fosse revelada.
— Qual é, então, o objetivo de sua visita?
— Primeiro, cabe a mim chamar sua atenção para essa situação delicada. Não creio que a Suécia tenha estado numa situação mais vulnerável desde a Segunda Guerra Mundial. Pode-se dizer que o destino do país está, em certa medida, nas suas mãos.
— Quem é o seu chefe?
— Lamento, mas não posso revelar o nome das pessoas que estão trabalhando nesse caso. Mas posso lhe garantir que as minhas instruções vêm do escalão mais alto que se possa imaginar.
Meu Deus. Ele está agindo por ordem do governo. Mas isso não pode ser dito, pois isso desencadearia um desastre político.
Nystrõm viu que Ekstrõm estava mordendo a isca.
— Em compensação, o que posso fazer é ajudá-lo fornecendo informações. Estou autorizado a lhe repassar, na medida em que me parecer pertinente, um material considerado dos mais secretos que temos no país.
— Entendo.
— Isso quer dizer que, quando o senhor tiver perguntas a fazer, quaisquer que sejam, deverá dirigir-se a mim. Não deverá falar com mais ninguém da Segurança, só comigo. Minha missão é guiá-lo nesse labirinto, e se houver qualquer risco de um choque de interesses, vamos ter de encontrar juntos uma solução.
— Entendo. Nesse caso, permita-me dizer que fico muito grato por o senhor e seus colegas estarem dispostos a facilitar as coisas para mim, como estão fazendo.
— Fazemos questão que as vias jurídicas sigam seu curso normal, embora a situação seja delicada.
— Melhor assim. Posso garantir que serei de uma discrição absoluta. Não é a primeira vez que trabalho com dados sigilosos.
— Sim, estamos informados.
Ekstrõm fizera uma dúzia de perguntas, que Nystrüm anotara meticulosamente para tentar lhe trazer mais tarde respostas tão completas quanto possível. Durante uma terceira visita, Ekstrõm teria a resposta para várias dessas perguntas. A mais importante era o que havia de verídico no relatório de Bjõrckdel991.
— Isso é um problema para nós — disse Nystrõm. Ele parecia preocupado.
— Talvez eu deva explicar, antes de mais nada, que desde que esse relatório veio à tona temos um grupo de análise trabalhando quase vinte e quatro horas por dia para esclarecer exatamente o que aconteceu. E já estamos, afinal, chegando a algumas conclusões. São conclusões bastante desagradáveis.
— Posso entender, já que o relatório prova que a Sapo e o psiquiatra Peter Teleborian conspiraram para mandar internar Lisbeth Salander num hospital psiquiátrico.
— Antes tivesse sido assim — disse Nystrõm com um sorrisinho.
— O que o senhor quer dizer?
— Bem, se tivesse sido assim, tudo seria muito simples. Teria havido uma infração à lei que poderia resultar em indiciamento. O problema é que o relatório não corresponde ao que está nos nossos arquivos.
— Como assim?
Nystrõm pegou uma pasta azul e a abriu.
— O que eu tenho aqui é o verdadeiro relatório que Gunnar Bjõrck redigiu em 1991. Temos também nos nossos arquivos os originais da correspondência entre ele e o Teleborian. O problema é que as duas versões não batem.
— Me explique melhor.
— É um tremendo azar o Bjõrck ter se enforcado. Supõe-se que ele tenha feito isso por causa das revelações sobre seus desvios sexuais, que iam ser publicadas em breve. A Millennium pretendia denunciá-lo. Eles o levaram a tal desespero que ele preferiu acabar com a própria vida.
— Sei...
— O relatório original é uma investigação sobre a tentativa de Lisbeth Salander de matar o pai, Alexander Zalachenko, com um coquetel Molotov.
As trinta primeiras páginas que o Blomkvist descobriu batem com o original. Essas páginas não trazem nenhuma informação sensacional. É só a partir da página 33, quando o Bjórck tira suas conclusões e emite um parecer, que aparece a divergência.
— De que jeito?
— Na versão original, o Bjõrck faz cinco recomendações muito claras. Não vou esconder que ele propõe que o caso Zalachenko desapareça dos noticiários. O Bjõrck sugere que a recuperação de Zalachenko — que ficou gravemente queimado — fosse feita no exterior. Coisas desse tipo. Sugere também que seja oferecido a Lisbeth Salander o melhor tratamento psiquiátrico.
— Ah, é?
— O problema é que um bocado de frases foram alteradas, de maneira bem sutil. Na página 34, há um trecho em que o Bjõrck parece sugerir que a Salander seja declarada psicótica, de modo a desacreditá-la caso alguém começasse a fazer perguntas sobre o Zalachenko.
— E essa sugestão não consta no relatório original?
— Exatamente. O Gunnar Bjõrck jamais sugeriu nada do gênero. Sem contar que teria sido contra a lei. Ele sugeriu que ela recebesse o tratamento de que de fato precisava. Na cópia do Blomkvist, isso tudo vira uma maquinação.
— Posso ler o original?
— Pois não. Mas preciso levá-lo comigo quando sair. E, antes que o leia, permita-me chamar sua atenção para o anexo, a correspondência que posteriormente se estabeleceu entre o Bjõrck e o Teleborian. Foi quase que toda falsificada. E nesse caso não se trata de alterações sutis, e sim de falsificações grosseiras.
— Falsificações?
— Acho que a palavra é essa. O original mostra que Peter Teleborian foi indicado pelo Tribunal de Instâncias para fazer uma avaliação psiquiátrica legal de Lisbeth Salander. O que não é nada estranho. Lisbeth Salander tinha doze anos e havia tentado matar o pai com um coquetel Molotov. Estranho seria se não tivesse havido nenhuma avaliação psiquiátrica.
— Sim, claro.
— Se o senhor fosse procurador naquela época, imagino que também teria pedido não só uma investigação social como uma avaliação psiquiátrica.
— Sem dúvida.
— Já naquela época o Teleborian era um psiquiatra infantil conhecido e respeitado, além de já ter trabalhado com medicina legal. Foi indicado e realizou um exame absolutamente normal, concluindo que Lisbeth Salander apresentava perturbações psíquicas... desculpe se estou deixando de lado os termos técnicos.
— Sim, sim...
— O Teleborian registrou todas as suas conclusões num relatório, que ele enviou ao Bjõrck e que posteriormente foi apresentado ao Tribunal de Instâncias, o qual decidiu que a Salander deveria ser tratada na clínica Sankt Stefan.
— Entendo.
— Na versão do Blomkvist, não consta a avaliação feita pelo Teleborian. Em seu lugar, há uma correspondência entre o Bjõrck e o Teleborian insinuando que o Bjõrck orienta o Teleborian a apresentar um exame psiquiátrico forjado.
— E, segundo o senhor, essa correspondência é falsa.
— Sem dúvida.
— E quem teria interesse em fazer essas falsificações? Nytstrõm largou o relatório e franziu o cenho.
— Agora o senhor pôs o dedo no nó da questão.
— E a resposta é...
— Não sabemos. O nosso grupo de análise está dando um duro justamente para descobrir a resposta a essa pergunta.
— Seria possível imaginar que o Blomkvist forjou tudo isso? Nystrõm riu.
— No começo também pensamos assim. Mas parece inverossímil. Achamos que essas falsificações foram feitas muito tempo atrás, provavelmente na época em que o relatório original foi escrito.
— Ah, é?
— O que nos leva a conclusões desagradáveis. Quem fez essa falsificação estava bem por dentro do caso. Além disso, o falsário tinha acesso à mesma máquina de escrever do Bjõrck.
— Está querendo dizer que...
— Não sabemos onde o Bjõrck redigiu o relatório. Pode ter usado uma máquina de escrever em casa, ou no seu trabalho, ou em qualquer outro lugar- Estamos considerando duas alternativas. O falsário era uma pessoa do meio psiquiátrico ou médico-legal que, por algum motivo, queria desacreditar o Teleborian. Ou então a falsificação foi feita por outro motivo bem diferente por alguém da Sapo.
— Por quê?
— Isso aconteceu em 1991. Poderia ser que um agente russo infiltrado na DGPN/Sãpo tivesse farejado o Zalachenko. Essa possibilidade nos levou a verificar, atualmente, uma boa quantidade de arquivos pessoais.
— Mas se a KGB tivesse ouvido rumores do... isso teria sido revelado há alguns anos.
— Bem pensado. Mas não esqueça que foi justamente nessa época que a União Soviética caiu e a KGB foi dissolvida. Não sabemos o que deu errado. Quem sabe uma operação planejada acabou sendo abortada. A KGB era realmente mestra em falsificar documentos e em desinformação.
— Mas por que a KGB faria uma coisa dessas?
— Também não sabemos. Mas um motivo plausível, claro, seria humilhar o governo sueco.
Ekstrõm beliscou o lábio inferior.
— Está querendo dizer que a avaliação médica da Salander está correta?
— Se está! Sem sombra de dúvida. A Salander é completamente insana, com o perdão da expressão. Não tenha o menor receio quanto a isso. A decisão de interná-la numa instituição foi totalmente justificada.
— Vasos sanitários! — disse, incrédula, a redatora-chefe interina Malu Eriksson. Pelo visto, ela achava que Henry Cortez estava de gozação com ela.
— Vasos sanitários — repetiu Henry Cortez meneando a cabeça.
— Você pretende fazer um artigo sobre vasos sanitários para a Millennium?
Monika Nilsson deu uma súbita e inoportuna gargalhada de escárnio. Ela notara o mal disfarçado entusiasmo dele ao chegar à reunião de sexta-feira e identificara todos os sintomas do jornalista às voltas com um bom assunto para um artigo.
— Certo, explique-se.
— É muito simples — disse Henry Cortez. — A maior indústria sueca em todas as categorias, é a da construção civil. É uma indústria que, na prática, não pode ser transferida para outro lugar, mesmo que a Skanska finja ter escritórios em Londres e coisas do gênero. Seja como for, os prédios têm de ser construídos na Suécia.
— Sim, isso não é novidade.
— Não. O que é mais ou menos uma novidade é que a construção civil está anos-luz atrás de todas as demais indústrias suecas quando se trata de concorrência e eficiência. Se a Volvo fabricasse automóveis do mesmo jeito, um carro último modelo estaria custando um ou dois milhões. Qualquer indústria normal só pensa em baixar os preços. Na construção civil, é o oposto. Eles não estão nem aí para os preços, o custo do metro quadrado aumenta o tempo todo e o Estado tem de oferecer subsídio com o dinheiro do contribuinte para que o negócio simplesmente não se inviabilize.
— E isso dá matéria?
— Espere. E complicado. Se o preço do hambúrguer tivesse subido do mesmo jeito de 1970 para cá, um Big Mac estaria custando umas cento e cinqüenta coroas ou mais. Prefiro não imaginar o quanto estaria custando com as batatas fritas e uma Coca. Meu salário aqui da Millennium não seria suficiente. Quantos de vocês aqui em volta desta mesa topariam comprar um hambúrguer por cem coroas?
Ninguém respondeu.
— Têm razão. Mas quando a NCC ergue rapidinho em Gâshaga uns contêineres de latão que eles chamam de moradia, ela tem a ousadia de pedir dez ou doze mil coroas de aluguel mensal por dois dormitórios. Quantos de vocês podem pagar isso?
— Eu, pelo menos, não posso — disse Monika Nilsson.
— Não pode. E olhe que você já mora num quarto-e-sala em Danvikstull, que seu pai comprou para você há vinte anos e que você poderia vender por, digamos, um milhão e meio. Mas o que faz um jovem de vinte anos que quer sair do ninho? Não tem condições. Ele então faz uma sublocação, ou até uma subsublocação, ou fica morando com a velha mãezinha dele até se aposentar.
— E onde é que entram os vasos sanitários? — perguntou Christer Malm.
— Estou chegando lá. O fato é que a gente deve se perguntar por que os apartamentos são tão caros. Ora, porque o pessoal que encomenda os prédios não sabe como se faz. Para simplificar, o caso é o seguinte: um promotor municipal chama uma empresa de construção civil como a Skanska, diz que deseja encomendar cem apartamentos e pergunta quanto vai custar. A Skanska faz uns cálculos e liga de volta dizendo que vai custar, digamos, quinhentos milhões de coroas. O que significa que o preço por metro quadrado é xis coroas, e vai lhe custar uns dez mil paus por mês se você quiser morar ali. Porque, diferentemente do que acontece no caso do MacDonald's, você não pode não morar em algum lugar. É obrigado, portanto, a pagar o quanto custa.
— Por favor, Henry... vamos aos fatos.
— Mas o fato é justamente esse. Por que me custa dez mil paus morar num desses malditos caixotes em Hammarbyhamnen? Vou explicar. É porque as construtoras não se preocupam em segurar os preços. O cliente paga seja lá o que for. Um dos maiores custos é o material de construção. O comércio de material de construção passa pelos atacadistas, que estabelecem seus próprios preços. Como não há concorrência de fato, uma banheira, na Suécia, custa cinco mil coroas. Na Alemanha, a mesma banheira, do mesmo fabricante, custa duas mil coroas. Não sei como se explica essa diferença de preço.
— Certo.
— Boa parte disso tudo pode ser lida num relatório da Comissão do Governo para Custos de Construção, que se movimentou bastante no final dos anos 1990. De lá para cá, as coisas não avançaram muito. Ninguém negocia com os construtores para denunciar essa aberração de preços. Os clientes pagam documente o preço que custar e, no fim de tudo, os locatários ou os contribuintes é que pagam a conta.
— E os vasos sanitários, Henry?
— Depois que a Comissão para Custos de Construção foi criada, os poucos avanços ocorreram em nível local, principalmente na periferia de Estocolmo. Alguns clientes se cansaram dos preços altos. Um exemplo é a Karlskronahem, que constrói mais barato que qualquer outra, simplesmente comprando ela própria os seus materiais. Além disso, a Federação de Comércio sueca andou se envolvendo. Eles acham os preços do material de construção completamente delirantes e têm tentado facilitar as coisas para os clientes importando produtos equivalentes mais baratos. O que resultou num pequeno conflito na Feira da Construção de Àlvjõ um ano atrás. O comércio sueco tinha trazido um sujeito da Tailândia que estava liquidando vasos sanitários por pouco mais de quinhentas coroas a unidade.
— Ahã. E daí?
— O concorrente imediato era um atacadista sueco, a Vitavara S.A., que vende autênticos vasos sanitários suecos por mil e setecentas coroas cada um. E alguns consumidores mais espertos, em quase todos os municípios, estão começando a cocar a cabeça e se perguntar por que eles devem morrer com mil e setecentas coroas quando poderiam conseguir um vaso sanitário equivalente, made in Tailândia, por quinhentos paus.
— Talvez seja de melhor qualidade? — perguntou Lottie Karim.
— Não. É um produto equivalente.
— Tailândia — disse Christer Malm. — Isso cheira a trabalho infantil clandestino, coisas assim. O que talvez explique o preço inferior.
— Não — disse Henry Cortez. — Na Tailândia, o trabalho infantil é praticado principalmente na indústria têxtil e de suvenires. Além de no comércio de pedofilia, claro. Estou falando em indústria de verdade. A ONU tem estado de olho no trabalho infantil, e eu verifiquei a empresa. Nada a opor. Trata-se de uma grande emprega, moderna e respeitável, de produtos sanitários.
— Bem... estamos falando de um país em que os salários são baixos, e podemos acabar escrevendo uma matéria clamando para que a indústria sueca seja eliminada pela concorrência tailandesa. Despeçam os operários suecos, fechem as empresas e importem da Tailândia. Com essa você não vai crescer na estima dos operários suecos.
Um sorriso iluminou o rosto de Henry Cortez. Ele se inclinou para trás e adotou um ar escandalosamente fanfarrão.
— Nã nã nã — disse. — Adivinhem onde é que a Vitavara S.A. fabrica seus vasos sanitários de mil e setecentos paus?
Fez-se um silêncio na redação.
— No Vietnã — disse Henry Cortez.
— Não acredito! — exclamou Malu Eriksson.
— Mas é, minha cara — disse Henry. — Faz pelo menos dez anos que eles terceirizam lá a fabricação de vasos sanitários. Os operários suecos já foram despedidos nos anos 1990.
— Puta merda!
— Mas a cereja do bolo é a seguinte: se a gente importasse diretamente da fábrica vietnamita, o preço seria pouco mais de trezentas e noventa coroas. Adivinhem como se explica a diferença de preço entre a Tailândia e o Vietnã?
__Não vai me dizer que...
Henry Cortez fez que sim com a cabeça. O sorriso transbordava em seu rosto.
— A Vitavara S.A. entrega a fabricação a uma coisa chamada Fong Soo Industries. Ela consta na lista da ONU das empresas que, pelo menos numa investigação de 2001, empregava crianças. Mas a maior parte dos operários é de prisioneiros.
Malu Eriksson sorriu de repente.
— Isso é bom — disse ela. — Realmente muito bom. Assim você vai acabar virando jornalista quando crescer. Quando é que você acha que pode terminar esse texto?
— Daqui a duas semanas. Ainda tenho que checar várias coisas sobre o comércio internacional. Além disso, vamos precisar de um bad guy para o artigo, e preciso me informar sobre os donos da Vitavara S.A.
— Podemos publicar no número de junho? — perguntou Malu, esperançosa.
— No problem.
O inspetor Jan Bublanski contemplou o procurador Richard Ekstrõm com um olhar sem expressão. A reunião tinha durado quarenta minutos, e Bublanski sentia uma imensa vontade de estender a mão para pegar o exemplar de A Lei do reino que estava na ponta da mesa de Ekstrõm e debochar do procurador. O que sem dúvida resultaria em grandes manchetes nos tablóides e, provavelmente, num indiciamento por golpes e ferimentos. Descartou a idéia. A vantagem de ser um homem civilizado é não ceder a esse tipo de impulso, qualquer que seja a provocação do adversário. E, em geral, era justamente quando alguém cedia a um impulso desse tipo que se recorria ao inspetor Bublanski.
— Ótimo — disse Ekstrõm. — Parece que estamos de acordo.
— Não, não estamos — respondeu Bublanski, levantando-se. — Mas o senhor é quem está à frente do inquérito preliminar.
Ele resmungou baixinho ao virar no corredor de sua sala e em seguida reuniu os inspetores Curt Bolinder e Sonja Modig, que compunham toda a sua equipe naquela tarde. Jerker Holmberg tivera a péssima idéia de tirar duas semanas de férias.
— Na minha sala — disse Bublanski. — Tragam café.
Depois que se acomodaram, Bublanski abriu sua caderneta com as anotações da reunião com Ekstrõm.
— A atual situação é que o nosso chefe do inquérito preliminar descartou todas as acusações contra Lisbeth Salander relativas aos assassinatos pelos quais ela foi procurada. De modo que, no que nos diz respeito, ela não está mais incluída no inquérito preliminar.
— Bem, temos que ver isso como um avanço — disse Sonja Modig. Curt Bolinder, como sempre, não disse nada.
— Não tenho tanta certeza — disse Bublanski. — A Salander ainda está sendo acusada de infrações graves em Stallarholmen e Gosseberga. Mas isso não faz mais parte da nossa investigação. O que sobrou para a gente é encontrar o Niedermann e explicar o cemitério selvagem de Nykvarn.
— Entendi.
— O certo é que, agora, quem vai indiciar a Lisbeth Salander é o Ekstrõm. O caso foi transferido para Estocolmo e foram pedidas investigações bem diferentes.
— Ah, é?
— E adivinhe quem vai investigar a Salander.
— Já estou temendo o pior.
— O Hans Faste voltou. Vai assessorar o Ekstrõm.
— Que absurdo! O Faste não é, de jeito nenhum, a pessoa certa para investigar a Salander.
— Eu sei. Mas o Ekstrõm tem bons argumentos. O Faste estava de licença médica desde que teve um... humm... esgotamento em abril, e estão dando a ele uma investigaçãozinha simples.
Silêncio.
— Portanto, vamos repassar para ele hoje à tarde todo o nosso material sobre a Salander.
— E a história do Gunnar Bjórck, e da Sapo, e do relatório de 1991...
— O Ekstrõm e o Faste vão cuidar dessa parte.
- Não estou gostando nada disso — disse Sonja Modig.
- Nem eu. Mas o chefe é o Ekstrõm, e ele tem contatos lá em cima. Ou a nossa tarefa ainda é encontrar o assassino. Curt, em que pé estamos?
Curt Bolinder balançou a cabeça.
- O Niedermann continua sumido. Devo confessar que nesses anos todos de casa nunca passei por nada igual. Não temos um único informante que conheça o sujeito ou aparente saber onde ele se encontra.
— Muito suspeito — disse Sonja Modig. — Em todo caso, ele está sendo procurado pelo homicídio do policial de Gosseberga, por golpes e ferimentos agravados contra um policial, tentativa de assassinato de Lisbeth Salander e rapto agravado mais golpes e ferimentos sobre Anita Kaspersson, a assistente de odontologia. E também pelos assassinatos de Dag Svensson e Mia Berg-son. Em todos esses casos, as provas técnicas são satisfatórias.
— Deve ser suficiente. E como vai a investigação sobre o consultor financeiro do MC Svavelsjõ?
— Viktor Gõransson e sua companheira Lena Nygren. Temos provas técnicas que ligam o Niedermann ao local. Impressões digitais e DNA no corpo do Gõransson. O Niedermann ralou o dorso das mãos quando deu uma surra nele.
— Certo. Novidades sobre o MC Svavelsjõ?
— O Benny Nieminen assumiu a chefia enquanto o Magge Lundin está em prisão preventiva, aguardando o julgamento pelo rapto da Miriam Wu. Corre o boato de que o Nieminen prometeu uma bela recompensa para quem der uma pista do paradeiro do Niedermann.
— O que torna ainda mais estranho o fato de o cara ainda não ter sido encontrado. E o carro de Gõransson?
— Como o carro da Anita Kaspersson foi encontrado no sítio de Gõransson, estão achando que o Niedermann mudou de carro. Não temos nenhuma pista sobre esse outro.
— E de se perguntar, então, se o Niedermann ainda está entocado em algum lugar da Suécia — e, nesse caso, onde e com quem — ou se já teve tempo de se pôr em segurança no exterior. O que o pessoal está achando?
— Nada indica que ele foi para o exterior, mas não deixa de ser a única Possibilidade lógica.
— Nesse caso, onde é que ele abandonou o carro?
Num mesmo gesto, Sonja Modig e Curt Bolinder balançaram a cabeça O trabalho da polícia, nove em cada dez vezes, era razoavelmente simples quando se tratava de procurar um indivíduo cujo nome se sabia. Bastava criar uma cadeia lógica e começar a puxar os fios. Quem eram seus amigos? Com quem dividira uma cela no xadrez? Em que área seu celular fora usado recentemente? Onde estava o carro dele? No final da cadeia, em geral se encontrava a pessoa procurada.
O problema com Ronald Niedermann é que ele não tinha amigos, não tinha namorada, nunca tinha sido preso e não tinha celular conhecido.
Grande parte da investigação havia se concentrado, portanto, em procurar o carro de Viktor Gõransson, que Niedermann supostamente estava usando. Se encontrassem o carro, já seria uma indicação de por onde prosseguir as buscas. De início, imaginaram que o carro iria aparecer em alguns dias, provavelmente num estacionamento de Estocolmo. Mas, apesar dos avisos de busca, o veículo continuava se destacando pela ausência.
— Se ele estiver no exterior... onde estará?
— Ele é cidadão alemão, o mais natural seria ele tentar ir para a Alemanha.
— Ele está sendo procurado na Alemanha. E não parece ter mantido contato com seus antigos amigos de Hamburgo.
Curt Bolinder agitou as mãos.
— Se o plano dele era se mandar para a Alemanha... por que, neste caso, ele iria para Estocolmo? O certo seria ele pegar a direção de Malmõ e a ponte de 0resund, ou de uma das balsas.
— Eu sei. Nos primeiros dias o Marcus Ackerman, de Gõteborg, direcionou o grosso das buscas nessa direção. A polícia da Dinamarca está informada sobre o carro do Gõransson, e podemos afirmar com segurança que ele não pegou nenhuma balsa.
— Mas ele foi a Estocolmo, até o MC Svavelsjõ, trucidou o tesoureiro e — supõe-se — roubou uma quantia ignorada de dinheiro. Qual seria o passo seguinte?
— Ele precisa deixar a Suécia — disse Bublanski. — O mais natural seria ele pegar uma balsa para os Países Bálticos. O Gõransson e a companheira foram mortos bem tarde da noite de 9 de abril. Isso quer dizer que o Niedermann pode ter pego uma balsa de manhã. Só fomos avisados dezesseis horas i p0js da morte deles, e desde então estamos procurando o carro.
- Se ele pegou a balsa de manhã, o carro do Gõransson deveria estar estacionado perto de um dos portos — constatou Sonja Modig.
Curt Bolinder meneou a cabeça.
— De repente, é muito mais simples. Talvez não tenhamos encontrado o carro do Gõransson porque o Niedermann saiu do país pelo norte, via Haparanda. É um tremendo desvio contornar o Golfo de Bótnia, mas em dezesseis horas ele certamente teve tempo de atravessar a fronteira finlandesa.
— É, mas depois ele teria que abandonar o carro em algum lugar da Finlândia e, a essa altura, nossos colegas finlandeses já deveriam tê-lo encontrado.
Ficaram um bom momento calados. Por fim, Bublanski se levantou e foi para a frente da janela.
— É contra toda a lógica e probabilidade, mas o fato é que o carro do Gõransson continua desaparecido. Será que ele conseguiu achar um esconderijo e está entocado esperando a hora certa, uma casa de campo ou...
— Dificilmente pode ser uma casa de campo. Nessa época do ano, todos os proprietários estão ajeitando e enfeitando as casas para o verão.
— E não deve ser nada ligado ao MC Svavelsjõ. Imagino que sejam as últimas pessoas que ele quer ver pela frente.
— Portanto, daria para excluir o círculo dele... Será que existe uma namorada e a gente não sabe?
As especulações eram muitas, mas eles não dispunham de nenhum dado concreto.
Assim que Curt Bolinder foi embora, Sonja Modig retornou à sala de Jan Bublanski e bateu no batente da porta. Ele fez sinal para ela entrar.
— Você teria dois minutinhos?
— O que foi?
— A Salander.
— Pode falar.
— Não gosto nem um pouco desse novo planejamento, com o Ekstrõm e o Faste e um novo processo. Você leu o relatório do Bjõrck. Eu li o relatório do Bjõrck. A Salander foi sabotada em 1991, e o Ekstrõm sabe disso. Que diabos está acontecendo?
Bublanski tirou seus óculos fundo de garrafa e guardou-os no bolso da camisa.
— Eu não sei.
— Você não tem nenhuma idéia?
— O Ekstrõm diz que o relatório do Bjõrck e a correspondência dele com o Teleborian foram falsificados.
— Mentira. Se tivessem sido falsificados, o Bjõrck teria dito isso quando foi interrogado.
— Diz o Ekstrõm que o Bjõrck se negava a falar disso por ser um assunto sigiloso de segurança nacional. Ele me censurou por eu ter me adiantado e detido o Bjõrck.
— Cada dia que passa detesto mais o Ekstrõm.
— Ele está sendo pressionado.
— Isso não é desculpa.
— Nós não temos o monopólio da verdade. O Ekstrõm afirma que lhe apresentaram provas de que o relatório é falso; não existe nenhuma investigação de fato cadastrada com esse número. Ele diz também que a falsificação foi muito benfeita e que é uma mescla de verdade e de invenção.
— Que parte é verdadeira e que parte foi inventada?
— O conjunto está mais ou menos certo. O Zalachenko é pai da Lisbeth Salander, um cretino que espancava a mãe dela. A história de sempre — a mãe nunca queria dar queixa, de modo que a situação se manteve daquele jeito por anos a fio. A tarefa do Bjõrck era descobrir o que aconteceu quando a Lisbeth tentou matar o pai com um coquetel Molotov. Ele mantinha uma correspondência com o Teleborian, mas, no conjunto, a correspondência que nós vimos era falsificada. O Teleborian fez uma avaliação psiquiátrica de rotina na Salander e constatou que ela era louca, e um procurador resolveu desistir das acusações que pesavam contra ela. Ela precisava de tratamento e foi internada na Sankt Stefan.
— Mas foi tudo uma encenação... Quem teria feito isso, e com que objetivo?
Bublanski fez um gesto separando as mãos.
— Você está de gozação?
- Pelo que entendi, o Ekstrõm vai exigir outro exaustivo exame psiquiátrico da Salander.
- Não consigo aceitar isso.
- Não é mais assunto nosso. Fomos desligados do caso Salander.
- E o Hans Faste foi ligado... Jan, pretendo alertar a imprensa se esses nojentos atacarem de novo a Salander...
— Não, Sonja. Você não vai fazer isso. Primeiro, porque não temos mais acesso à investigação; logo, você não tem mais como provar o que vai dizer. Vão te achar uma paranóica de primeira e a sua carreira acaba num piscar de olhos.
— Eu ainda estou com o relatório — disse Sonja Modig com voz débil. — Eu tinha feito uma cópia para o Curt Bolinder, mas não tive tempo de entregar antes de o Ministério Público recolher tudo.
— Se você deixar vazar esse relatório, não só vai ser despedida como vai incorrer em falha profissional grave por colocar um relatório sigiloso nas mãos da imprensa.
Sonja Modig ficou um instante calada e encarou seu chefe.
— Sonja, me prometa que não vai fazer nada. Ela hesitou.
— Não, Jan, não posso prometer isso. Tem algo de podre nessa história. Bublanski concordou com a cabeça.
— Tem, sim. Mas no momento não sabemos quem são nossos inimigos. Sonja Modig inclinou a cabeça.
— E você, tem a intenção de fazer alguma coisa?
— Isso eu não vou lhe contar. Confie em mim. Estamos no final da tarde de sexta-feira. Curta o seu fim de semana. Vá para casa. Essa conversa nunca aconteceu.
Era uma e meia da tarde de sábado quando o agente da Securitas Niklas Adamsson ergueu os olhos do livro de economia política que estava estudando para um exame que ocorreria dali a três semanas. Acabava de ouvir o discreto zumbido das escovas rotativas do carrinho de faxina e viu que se datava do imigrante manco. O sujeito sempre o cumprimentava educada-rtlente, mas não falava muito e nunca ria nas vezes em que Adamsson tentava brincar com ele. Observou-o enquanto ele pegava um frasco e vaporizava o balcão da recepção, enxugando em seguida com um pano. Depois, ele pegou a vassoura com franjas e passou-a pelos cantos da recepção que as escovas do carrinho não alcançavam. Niklas Adamsson tornou a enfiar o nariz no livro e continuou sua leitura.
O funcionário da limpeza levou dez minutos para chegar à cadeira de Adamsson, no fim do corredor. Cumprimentaram-se com um gesto de cabeça. Adamsson se levantou e deixou o faxineiro cuidar do piso em volta de sua cadeira, em frente ao quarto de Lisbeth Salander. Ele via aquele homem praticamente todos os dias desde que começara seu plantão em frente ao quarto, mas seria incapaz de lembrar o nome dele. De qualquer modo, era um nome de turco. Adamsson não via realmente necessidade de controlar a identidade dele. De um lado, o imigrante não ia fazer faxina dentro do quarto da prisioneira — duas mulheres cuidavam disso de manhã — e, de outro, aquele manco não parecia representar nenhuma ameaça.
Quando o homem terminou a limpeza no fim do corredor, abriu com a chave a porta vizinha ao quarto de Lisbeth Salander. Adamsson o observou com o rabo dos olhos, mas isso tampouco significava um desvio da rotina. Ali, no fim do corredor, ficava o armário das vassouras. Ele passou os cinco minutos seguintes esvaziando o balde, limpando as escovas e enchendo o carrinho com sacos plásticos para o lixo. Em seguida, empurrou o carrinho para dentro do armário.
Idris Ghidi estava ciente da presença do vigilante da Securitas no corredor. Era um rapaz loiro de uns vinte e cinco anos mais ou menos, que em geral ficava de plantão dois ou três dias por semana e lia livros de economia política. Ghidi concluíra que ele trabalhava meio período na Securitas e ao mesmo tempo estudava, e prestava tão pouca atenção ao que se passava em volta quanto um tijolo da parede.
Idris Ghidi perguntou-se o que Adamsson faria se alguém tentasse de fato entrar no quarto de Lisbeth Salander.
Idris Ghidi também se perguntou o que Mikael Blomkvist teria em mente. Estava perplexo. Ele, claro, tinha lido os jornais e fizera a associação com a Lisbeth Salander do 11C, e sua expectativa era que Mikael Blomkvist quisesse que ele introduzisse alguma coisa clandestinamente no quarto. Nesse caso ele teria sido obrigado a recusar, pois não tinha acesso ao quarto nem nunca o tinha visto. A proposta que ele lhe fizera, porém, não tinha nada a ver com isso.
Ele não via nada de ilegal em sua tarefa. Deu uma olhada pela fresta da porta e viu que Adamsson voltara a se sentar na cadeira em frente à porta e estava lendo seu livro. Estava satisfeito por não haver mais ninguém por perto o que geralmente era o caso, já que o armário das vassouras ficava no fim do corredor. Enfiou a mão no avental e pegou um celular novo, um Sony Eriksson Z600. Idris Ghidi vira aquele modelo num folheto publicitário e sabia que custava mais de três mil e quinhentas coroas no mercado e dispunha de todos os macetes imagináveis.
Olhou para o mostrador e notou que o celular estava ligado, mas com o som de chamada no silencioso e o vibrador desativado. Então ficou na ponta dos pés e desencaixou o tampo branco e redondo de um sistema de ventilação que ia até o quarto de Lisbeth Salander. Colocou o celular dentro do conduto, fora do alcance da vista, exatamente como Mikael Blomkvist lhe pedira.
A manobra durou cerca de trinta segundos. No dia seguinte, levaria cerca de dez. Sua tarefa então seria pegar o celular, trocar a bateria e colocar o aparelho de volta no conduto de ventilação. Levaria a bateria usada para casa e a recarregaria durante a noite.
Era só o que Idris Ghidi precisava fazer.
Contudo, isso não ajudaria Lisbeth Salander. Do lado de lá, havia uma grade parafusada na parede. Ela jamais conseguiria pegar o celular se não tivesse acesso a uma chave de fenda cruciforme e a uma escada.
— Eu sei — dissera Mikael. — Mas ela não vai precisar tocar no celular.
Idris Ghidi teria de realizar essa tarefa todos os dias, até Mikael Blomkvist avisar que ela não era mais necessária.
E para isso Idris Ghidi receberia mil coroas líquidas por semana. Além disso, poderia ficar com o celular depois de concluído o serviço.
Ele balançou a cabeça. Sabia, é claro, que Mikael tramava alguma coisa, mas não conseguia imaginar o quê. Colocar um celular ligado, mas não conectado, num sistema de ventilação fechado a chave era uma idéia tão esquisita que Ghidi não entendia para que servia. Se Blomkvist queria se comunicar com Lisbeth Salander, seria mais inteligente subornar uma enfermeira para lhe passar o telefone. Não havia nenhuma lógica naquela operação.
Ghidi balançou a cabeça. Por outro lado, não se negaria a fazer esse favor para Mikael Blomkvist enquanto ele lhe pagasse mil coroas por semana. E não pretendia fazer perguntas.
O Dr. Anders Jonasson diminuiu o passo ao avistar um homem de uns quarenta anos apoiado na grade da entrada de seu prédio, na Hagagatan. O homem, que lhe parecia vagamente familiar, dirigiu-lhe um sinal de reconhecimento com a cabeça.
— Doutor Jonasson?
— Sou eu.
— Lamento incomodá-lo assim, na rua, na frente da sua casa. Mas não queria procurá-lo no seu trabalho e preciso falar com o senhor.
— Do que se trata, e quem é o senhor?
— Meu nome é Mikael Blomkvist. Sou jornalista da revista Millennium. Trata-se de Lisbeth Salander.
— Ah, sim, estou lembrado. Foi o senhor que ligou para o sos-Brigada quando ela foi encontrada... Também foi o senhor que colocou fita adesiva nos ferimentos?
— Fui.
— Foi um gesto inteligente. Mas lamento. Não estou autorizado a falar sobre os meus pacientes com os jornalistas. Vai ter de fazer como todo mundo e ver com a área de comunicação do Sahlgrenska.
— O senhor não me entendeu. Não estou atrás de informações, estou aqui em caráter privado. Não precisa me dizer nada nem me passar informações. Na verdade, é o contrário. Eu é que gostaria de lhe passar alguns dados.
Anders Jonasson franziu o cenho.
— Por favor — suplicou Mikael Blomkvist. — Não costumo assediar cirurgiões no meio da rua, mas é extremamente importante que eu fale com o senhor. Há um café mais adiante, ali na esquina. Posso convidá-lo para tomar alguma coisa?
— Nós vamos falar sobre o quê?
— Sobre o futuro e o bem-estar de Lisbeth Salander. Eu sou amigo dela.
Anders Jonasson hesitou bastante. Sabia que se fosse outra pessoa que não Mikael Blomkvist que o abordasse assim no meio da rua, se fosse um desconhecido qualquer, teria recusado. Mas Blomkvist era uma figura conhecida e, de repente, Anders Jonasson convenceu-se de que não se tratava de uma brincadeira de mau gosto.
— Não quero, de jeito nenhum, ser entrevistado e não vou falar sobre a minha paciente.
— Para mim está bem — disse Mikael.
Por fim, Anders Jonasson assentiu rapidamente com a cabeça e acompanhou Blomkvist até o café.
— Do que se trata? — ele perguntou num tom neutro, depois que foram servidos. — Estou ouvindo, mas não pretendo fazer nenhum comentário.
— O senhor tem medo que eu o cite ou o exponha na imprensa. Quero que fique absolutamente claro desde já que não se trata de nada disso. No que me diz respeito, esta conversa nunca aconteceu.
— Certo.
— Gostaria de lhe pedir um favor. Mas antes preciso explicar exatamente o porquê, para que o senhor possa julgar se é moralmente aceitável para o senhor me fazer esse favor.
— Não estou gostando do rumo desta conversa.
— Só o que estou lhe pedindo é que me escute. Como médico da Lisbeth Salander, cabe ao senhor zelar pelo bem-estar físico e mental dela. Como amigo da Lisbeth, cabe a mim fazer o mesmo. Não sou médico, portanto não posso remexer na cabeça dela para extrair balas de lá, por exemplo. Mas tenho outro tipo de competência, tão importante quanto, para o bem-estar dela.
— Ahã.
— Sou jornalista e, cavando aqui e ali, descobri a verdade sobre tudo o que aconteceu.
— Certo.
— Posso lhe contar, em linhas gerais, para que o senhor possa avaliar Por si mesmo.
— Ahã.
— Eu talvez deva dizer, para começar, que Annika Giannini é a advogada da Lisbeth Salander. O senhor já cruzou com ela.
Anders Jonasson fez que sim com a cabeça.
— Annika é minha irmã e sou eu que a estou pagando para defender a Lisbeth,
— Ah, é?
— Pode verificar no cartório de registro civil que ela é mesmo minha irmã. Não posso pedir esse favor para a Annika. Ela não fala comigo sobre a Lisbeth. Está presa ao sigilo profissional e sujeita a regras bem diferentes.
— Humm.
— Imagino que o senhor leu o que os jornais falam sobre a Lisbeth. Jonasson concordou com a cabeça.
— Ela foi pintada como uma assassina em série lésbica, psicótica e doente mental. Isso tudo é bobagem. A Lisbeth Salander não é psicótica; é talvez tão psiquicamente saudável quanto eu e o senhor. E as preferências sexuais dela não interessam a ninguém.
— Se entendi direito, houve uma reviravolta. Atualmente, o tal alemão é que está sendo acusado dos assassinatos.
— É a mais pura verdade. O Ronald Niedermann é culpado, é um assassino sem nenhum escrúpulo. Mas a Lisbeth tem inimigos. Inimigos de verdade, fortes e cruéis. Alguns deles estão dentro da Sapo.
Anders Jonasson.ergueu as sobrancelhas com ar cético.
— Quando a Lisbeth tinha doze anos, ela foi internada na psiquiatria infantil de um hospital em Uppsala porque tinha topado com um segredo que a Sapo tentava ocultar a todo custo. O pai dela, Alexander Zalachenko, que foi assassinado no hospital, era um ex-espião russo dissidente, uma relíquia da guerra fria. Era também um homem extremamente violento com as mulheres e durante anos espancou a mãe da Lisbeth. Quando a Lisbeth estava com doze anos, ela revidou e tentou matar o Zalachenko com um coquetel Molotov. Por isso é que ela foi internada na psiquiatria infantil.
— Não estou entendendo. Se ela tentou matar o pai, talvez houvesse motivo para interná-la para um tratamento psiquiátrico.
— A minha teoria, que pretendo publicar, é que a Sapo sabia o que tinha acontecido, mas optou por proteger o Zalachenko porque ele era uma fonte importante de informações. Eles bolaram um diagnóstico fajuto e deram um jeito de a Lisbeth ser internada.
Anders Jonasson exibiu tamanho ar de dúvida que Mikael teve de sorrir.
— Tenho provas de tudo o que estou dizendo. E vou publicar um texto detalhado antes do julgamento da Lisbeth. Acredite, vai fazer um barulho e tanto.
— Entendo.
- Vou denunciar e bater feio em dois médicos que serviram de paus-mandados da Sapo e contribuíram para que a Lisbeth fosse enviada para o hospício. Vou acabar com eles sem dó nem piedade. Um deles é uma autoridade pública respeitada. E, insisto, disponho de todas as provas.
— Entendo. Se houve um médico envolvido nessa tramóia, é uma vergonha para a classe médica.
— Não, não acredito em culpa coletiva. É uma vergonha para todos os envolvidos. Isso também vale para a Sapo. Há certamente gente honesta trabalhando lá. Mas nesse caso temos um grupo paralelo. Quando a Lisbeth completou dezoito anos, eles mais uma vez fizeram o possível para ela ser internada. Não deu certo, mas ela foi posta sob tutela. No julgamento, vão acusá-la ao máximo. Eu e minha irmã vamos lutar pela inocência da Lisbeth e para que seja posto um fim à tutela.
— Certo.
— Mas ela precisa de munição. São as condições deste jogo. É bom que o senhor saiba que alguns policiais estão apoiando a Lisbeth nesta batalha. Ao contrário da pessoa que dirige o inquérito preliminar e que a indiciou.
— Ahã.
— A Lisbeth vai precisar de ajuda para o julgamento.
— Ahã. Mas eu não sou advogado.
— Não. Mas é médico, e tem acesso à Lisbeth. Os olhos de Anders Jonasson se estreitaram.
— O que eu vou lhe pedir não é ético, e talvez até possa ser considerado infração à lei.
— Ai.
— Mas, moralmente, é a coisa certa a fazer. Os direitos dela estão sendo ultrajados por pessoas que deveriam protegê-la.
— Ah, é?
— Vou dar um exemplo. Como o senhor sabe, a Lisbeth está proibida de receber visitas e não tem o direito de ler jornais ou de se comunicar com ninguém. Além disso, o procurador impôs silêncio à sua advogada. Annika tem cumprido estoicamente as normas. Em compensação, o procurador é a principal fonte de informações dos jornalistas, que continuam escrevendo bobagens sobre a Lisbeth Salander.
— É mesmo?
— Veja este artigo, por exemplo. — Mikael brandiu um tabloide da semana anterior. — Uma fonte interna da investigação afirma que a Lisbeth é irresponsável. Resultado: o jornal faz um monte de especulações sobre o estado mental dela.
— Eu li o artigo. É pura bobagem.
— Então o senhor não considera a Salander uma louca?
— Não posso me pronunciar a respeito. Agora, o que sei é que não foi feita nenhuma avaliação psiquiátrica.
— Certo. Mas tenho provas de que essas informações foram divulgadas por um policial chamado Hans Faste e que ele trabalha para o procurador Ekstrõm.
— Puta merda!
— O Ekstrõm vai exigir que o julgamento se dê a portas fechadas, o que significa que nenhum estranho ao caso vai poder conferir e avaliar as provas contra ela. Mas, o que é pior... a partir do momento em que o procurador mandou isolar a Lisbeth, ela não tem como fazer as pesquisas necessárias para preparar sua defesa.
— Eu achava que a advogada era quem estava tratando disso.
— Como o senhor a esta altura já deve ter percebido, a Lisbeth é uma pessoa muito especial. Ela tem alguns segredos que eu conheço mas não posso revelar para a minha irmã. Em compensação, cabe à Lisbeth avaliar se vai querer usá-los para se defender no julgamento.
— Ahã.
— E, para isso, ela precisa disto aqui.
Mikael colocou entre eles, sobre a mesa, um Palm Tungsten T3, o computador de mão de Lisbeth Salander, além de um carregador.
— Essa é a arma mais importante do arsenal da Lisbeth. Ela precisa dela.
Anders Jonasson olhou para ele, desconfiado.
— Por que não o entrega à advogada dela?
— Porque só a Lisbeth sabe o que fazer para ter acesso às provas de sua defesa.
Anders Jonasson permaneceu um longo tempo em silêncio, sem tocar no computador de bolso.
_— Deixe eu lhe falar sobre o doutor Peter Teleborian — disse Mikael, pando a pasta em que reunira todo o material essencial, passaram duas horas conversando em voz baixa.
Eram oito e pouco da noite de sábado quando Dragan Armanskij deixou sua sala na Milton Security e foi a pé até a sinagoga do Sbder, na Sankt Paulsgatan. Bateu à porta, apresentou-se e foi recebido pelo rabino.
— Marquei um encontro aqui com uma pessoa — disse Armanskij.
— Primeiro andar. Vou lhe mostrar o caminho.
O rabino ofereceu um quipá, que Armanskij vestiu após alguma hesitação. Tinha sido criado numa família muçulmana, em que o uso do quipá e visitas à sinagoga não faziam exatamente parte da rotina. Sentia-se pouco à vontade com o barrete judeu na cabeça.
Jan Bublanski também estava usando um quipá.
— Olá, Dragan. Obrigado por ter vindo. Pedi uma sala emprestada ao rabino para podermos conversar sem sermos interrompidos.
Armanskij sentou-se na frente de Bublanski.
— Imagino que você tenha bons motivos para esses segredinhos.
— Não vou ficar dando voltas. Sei que você é amigo da Lisbeth Salander. Armanskij fez que sim com a cabeça.
— Quero saber o que você e o Blomkvist combinaram para ajudar a Salander.
— O que o faz pensar que combinamos alguma coisa?
— O procurador Richard Ekstrõm já me perguntou no mínimo uma dúzia de vezes qual o verdadeiro acesso da Milton Security à investigação Salander. Ele não me perguntou à toa, e sim porque tem medo que você tente fazer alguma coisa que venha a repercutir na imprensa.
— Humm.
— E se o Ekstrõm está preocupado é porque ele sabe que você está com alguma coisa articulada, ou tem receio disso. Ou, como eu estou achando, ele pelo menos conversou com alguém que tem esse receio.
— Alguém?
— Dragan, não se trata de um jogo de esconde-esconde. Você sabe que a Salander foi vítima de abuso de poder em 1991, e temo que ela seja vítima de mais um quando o julgamento começar.
— Você é policial de uma democracia. Se tem alguma informação, cabe a você agir.
Bublanski meneou a cabeça.
— Eu pretendo agir. O problema é saber como.
— Vá direto aos fatos.
— Quero saber o que você e o Blomkvist combinaram. Imagino que vocês não estejam aí parados, de braços cruzados.
— E complicado. Como é que eu vou saber se posso confiar em você?
— Tem aquele relatório de 1991, que o Mikael Blomkvist tinha encontrado...
— Estou sabendo.
— Eu não tenho mais acesso a esse relatório.
— Nem eu. Os dois exemplares, o do Blomkvist e o da irmã dele, se perderam.
— Se perderam? — Bublanski surpreendeu-se.
— O exemplar do Blomkvist foi roubado depois de invadirem a casa dele, e a cópia de Annika Giannini sumiu quando ela sofreu uma agressão em Gõteborg. Os dois roubos ocorreram no mesmo dia em que o Zalachenko foi assassinado.
Bublanski ficou um longo tempo em silêncio.
— Por que a gente não ouviu falar disso?
— Como diz o Mikael Blomkvist: só existe um momento certo para publicar, e um número incalculável de momentos inadequados.
— Quer dizer que vocês... que ele pretende publicar? Armanskij assentiu rapidamente com a cabeça.
— Uma agressão em Gõteborg e uma invasão de domicílio aqui em Estocolmo. No mesmo dia. Bublanski, isso significa que os nossos adversários são bem organizados. Posso também te dizer que temos provas de que o telefone da Giannini estava grampeado.
— Alguém anda cometendo um bocado de infrações por aqui.
— A questão, então, é descobrir quem são nossos adversários — disse Dragan Armanskij.
- É verdade, eu também acho. À primeira vista, a Sapo é quem teria interesse em abafar o relatório do Bjõrck. Mas, Dragan... estamos falando na polícia de Segurança sueca. Trata-se de uma autoridade de Estado. Custo a acreditar que este caso conte com o aval da Sapo. Nem sequer acredito que e]a tenha competência para orquestrar uma coisa assim.
— Eu sei. Também custei a acreditar. Sem falar no fato de um homem entrar no Sahlgrenska e enfiar uma bala na cabeça do Zalachenko.
Bublanskí calou-se. Armanskij deu a última cartada.
— E no meio disso tudo o Bjõrck resolve se enforcar.
— Quer dizer que você acha que foram assassinatos organizados. Eu conheço o Marcus Ackerman, que era responsável pela investigação em Gõteborg. Ele não descobriu nada indicando que aquele assassinato pudesse ser mais que o gesto impulsivo de um indivíduo insano. E a gente investigou minuciosamente a morte de Bjõrck. Tudo leva a crer que foi suicídio.
Armanskij balançou a cabeça.
— Evert Gullberg, setenta e oito anos, com câncer e condenado à morte, tratado de uma depressão poucos meses antes do assassinato. Pedi que o Fráklund revirasse os documentos oficiais atrás de tudo o que se relaciona com o Gullberg.
— E?
— Ele fez o serviço militar em Karlskrona nos anos 1940, depois cursou direito e virou consultor fiscal no mercado privado. Teve um escritório aqui em Estocolmo por mais de trinta anos, discreto, clientes particulares... não se sabe quem eram. Aposentou-se em 1991. Voltou para a sua cidade natal, Laholm, em 1994... Nada que chame muita atenção.
— Mas?
— A não ser por uns detalhes intrigantes. O Frãklund não consegue encontrar uma única referência a Gullberg em nenhum tipo de contexto. Ele nunca foi mencionado na imprensa e ninguém sabe quem eram seus clientes. É como se ele nunca tivesse existido na vida profissional.
— O que você está tentando dizer?
— A Sapo é a ligação óbvia. O Zalachenko era um dissidente russo, e quem teria lidado com ele se não a Sapo? Há também essa capacidade para Orquestrar o internamento psiquiátrico da Lisbeth Salander em 1991. Sem talar em roubo a domicílio, agressão e escutas telefônicas quinze anos depois... Mas também não acho que a Sapo é que esteja por trás disso tudo. O Mikael Blomkvist o chama de Clube Zalachenko... um grupinho de sectários formado por combatentes da guerra fria saídos da hibernação e escondidos em algum lugar num corredor escuro da Sapo.
Bublanski meneou a cabeça.
— Então, o que a gente pode fazer?