25. QUARTA-FEIRA 13 DE JULHO – QUINTA-FEIRA 14 DE JULHO
Mikael Blomkvist sempre se perguntara por que os alto-falantes dos tribunais de instância emitiam um som tão baixo e discreto. Teve dificuldade em distinguir as palavras anunciando que o julgamento de Lisbeth Salander teria início às dez horas da manhã na sala 5. No entanto, chegara cedo e postara-se diante das portas da sala de audiência. Foi um dos primeiros a entrar. Instalou-se na fileira do público, do lado esquerdo da sala, de onde teria a melhor visão da mesa da defesa. Os lugares reservados ao público foram ocupados rapidamente. O interesse da mídia aumentara à medida que o julgamento se aproximava, e na última semana o procurador Richard Ekstrõm concedera entrevistas todos os dias.
Ekstrõm não parará quieto.
Lisbeth Salander era acusada de violência e violência agravada contra Carl-Magnus Lundin; de ameaça, tentativa de assassinato e violência agravada contra o falecido Karl Axel Bodin, aliás Alexander Zalachenko; de dois arrombamentos — da casa de campo do Dr. Nils Bjurman e de seu apartamento em Odenplan; de roubo de veículo motorizado — uma Harley Davidson pertencente a um certo Benny Nieminen, membro do MC Svavelsjõ; de porte ilegal de três armas — uma bomba de gás lacrimogêneo, um cassetete elétrico e uma pistola Wanad P-83 polonesa, encontrados em Gosseberga; e de roubo e ocultação de provas — formulação vaga, relacionada com a documentação que ela encontrara na casa de campo de Bjurman e com uma série de delitos menores. No total, Lisbeth Salander tinha contra si dezesseis acusações.
Ekstrõm também deixara vazar insinuações sobre o estado mental de Lisbeth Salander, o qual deixaria a desejar. Fundamentava-se, por um lado, na avaliação psiquiátrica médico-legal do dr. Jesper H. Lõderman, realizada quando ela atingira a maioridade, e, por outro, numa avaliação feita pelo Dr. Peter Teleborian na época de uma audiência preparatória, a pedido do Tribunal de Instâncias. Visto que a doente mental, como era seu costume, recusara-se categoricamente a falar com os psiquiatras, a análise baseara-se em "observações" feitas após sua prisão na casa de detenção de Kronoberg, em Estocolmo, no mês anterior ao julgamento. Teleborian, que tinha vários anos de experiência com a paciente, declarava que Lisbeth Salander sofria de um grave distúrbio psíquico; ele se apoiava em termos como psicopatia, narcisismo patológico e esquizofrenia paranóica.
A imprensa relatara que ela fora interrogada sete vezes pela polícia. Em todas as ocasiões, a acusada se recusara a dar sequer bom-dia às pessoas que estavam ali para interrogá-la. As primeiras sessões foram conduzidas pela polícia de Gõteborg e as demais ocorreram no Palácio da Polícia de Estocolmo. Os autos registravam simpáticas tentativas de estabelecer contato, persuasões cuidadosas e repetidas perguntas, sem que se obtivesse uma única resposta.
Nem mesmo uma tossidinha.
Em diversas oportunidades, ouvia-se a voz de Annika Giannini nas gravações, intercedendo quando percebia que sua cliente obviamente não tinha a intenção de responder. Assim, a acusação contra Lisbeth Salander baseava-se apenas em provas técnicas e nas informações que a polícia conseguira levantar.
Em alguns momentos, o silêncio de Lisbeth deixara sua advogada numa situação difícil, já que a obrigava a permanecer quase tão calada quanto sua cliente. O que Annika Giannini e Lisbeth Salander conversavam em particular permanecia, é claro, confidencial.
Ekstrõm não fez nenhum segredo de sua intenção de pedir, em primeiro lugar, o internamente psiquiátrico de Lisbeth Salander e, em segundo, uma respectiva pena de prisão. Em situações normais, esses pedidos eram feitos na ordem inversa, mas ele considerava que no caso de Lisbeth Salander os distúrbios psíquicos eram tão evidentes que o tinham deixado sem escolha. Era mesmo muito raro um tribunal se opor a uma avaliação médico-legal.
Ele considerava, além disso, que a tutela de Salander não devia ser anulada. Numa entrevista, declarara com ar preocupado que na Suécia havia um certo número de sociopatas portadores de distúrbios psíquicos tão graves que constituíam um perigo para si mesmos e para os outros, e que cientificamente ele não tinha outra opção senão manter essas pessoas internadas. Citara o caso de Anette, uma jovem violenta cuja vida, durante os anos 1970, fora tema de novela e que, trinta anos depois, ainda estava sendo tratada numa instituição fechada. A cada tentativa de abrandar as restrições ela atacara violenta e insanamente seus pais e a equipe médica, ou então tentara se automutilar. Segundo Ekstrõm, Lisbeth Salander sofria de uma forma semelhante de distúrbio psíquico.
O interesse da mídia também aumentara porque a advogada de Lisbeth Salander não havia se pronunciado. Recusara sistematicamente as entrevistas que lhe ofereciam a oportunidade de expor os pontos de vista da outra parte. A mídia via-se, portanto, diante de uma situação complicada: a acusação a sufocava com informações, ao passo que a defesa, de modo atípico, não oferecia o menor indício sobre a atitude de Salander ou a estratégia para o caso.
Toda essa situação fora analisada por um especialista jurídico contratado por um jornal vespertino para cobrir o caso. Numa crônica, o articulista observara que Annika Giannini era uma advogada respeitada na área de direitos da mulher, mas que era terrivelmente inexperiente em casos fora da sua alçada, concluindo que ela não tinha cacife para defender Lisbeth Salander. Através de sua irmã, Mikael Blomkvist ficou sabendo que vários advogados famosos tinham entrado em contato com ela para oferecer ajuda. Annika Giannini recusara gentilmente todas as propostas.
Enquanto aguardava o início do julgamento, Mikael observou o público. De repente, avistou Dragan Armanskij num lugar próximo à saída.
Seus olhares se cruzaram por um instante.
Ekstrõm tinha uma pilha considerável de papéis sobre sua mesa. Acenava com a cabeça ao reconhecer alguns jornalistas.
Annika Giannini estava sentada à mesa em frente a Ekstrõm. Separava uns papéis e não olhava para ninguém. Mikael teve a impressão de que sua irmã estava um pouco nervosa. Uma ligeira apreensão, pensou.
Então o presidente do tribunal, o assessor e os jurados entraram na sala. O presidente se chamava Jõrgen Iversen, era um homem de cinqüenta e sete anos de cabelos brancos, rosto magro e andar atlético. Mikael pesquisara o passado de Iversen e constatara que ele era tido como um juiz muito experiente e correto, e que já presidira vários julgamentos de repercussão na mídia.
Por último, Lisbeth Salander foi trazida para a sala.
Por mais que Mikael já estivesse acostumado com a capacidade que Lisbeth Salander tinha de se vestir de maneira chocante, ficou estupefato ao ver que Annika Giannini permitira que ela se apresentasse na sala do tribunal vestida com uma saia curta de couro preto, bainha desfeita, e uma regata com os dizeres I am irritated que mal escondia suas tatuagens. Usava coturnos, um cinto com tachas e meias americanas listradas de preto e lilás. Estava com uma dúzia de piercings nas orelhas e argolas no lábio e nas sobrancelhas. Depois da cirurgia seu cabelo crescera como uma espécie de palha preta desgrenhada. Além disso, estava exageradamente maquiada. Usava um batom cinzento, sobrancelhas acentuadas e uma quantidade inédita de rimei preto. Na época em que os dois conviveram, Lisbeth não se interessava particularmente por maquiagem.
Ela parecia um tanto vulgar. Gótica. Lembrava um vampiro de um filme B dos anos 1960. Mikael reparou que vários jornalistas engasgaram de surpresa e exibiram um sorriso divertido ao vê-la surgir. Quando, enfim, tinham a oportunidade de conhecer aquela garota cercada de escândalos, sobre a qual eles tanto haviam escrito, ela correspondia amplamente a suas expectativas.
Então Mikael se deu conta de que Lisbeth Salander estava fantasiada. Em tempos normais, ela se vestia de qualquer maneira, e obviamente sem nenhum bom gosto. Mikael sempre achara que ela não se vestia daquele jeito para seguir uma moda, e sim para marcar sua identidade. Lisbeth Salander demarcava seu território para que ele parecesse hostil. Ele sempre associara as tachas da jaqueta de couro de Lisbeth aos espinhos de um porco-espinho. Era o mesmo mecanismo de defesa. Era um sinal para os que a cercavam. Não tente me afagar. Vai doer.
Mas para sua entrada no tribunal ela acentuara de tal modo o estilo de sua roupa que ele parecia quase paródico de tão exagerado.
Mikael percebeu de repente que não se tratava de acaso, e sim de parte da estratégia de defesa de Annika.
Se Lisbeth Salander chegasse bem penteada, com uma blusa comportada e sapatos sem salto, iria lembrar um bandido querendo vender uma imagem de bonzinho ao tribunal. Era uma questão de credibilidade. Ela estava vindo tal como era, e não como outra pessoa. E num estado ligeiramente exagerado, para deixar as coisas bem claras. Não pretendia ser o que não era. Sua mensagem ao tribunal era que não tinha nenhum motivo para se envergonhar ou fazer de conta. Se para o tribunal sua aparência física era um problema, não era problema de Lisbeth. A sociedade a acusava de uma série de coisas e o procurador a tinha levado a julgamento. Com sua simples aparição, ela já mostrava como o raciocínio do procurador lhe parecia uma bobagem.
Caminhou com segurança e sentou-se no lugar indicado, ao lado de sua advogada. Seu olhar percorreu o público. Não havia a menor curiosidade em seus olhos. Antes de mais nada, eles pareciam captar e registrar, furiosos, as pessoas que já a tinham condenado nas páginas dos jornais.
Era a primeira vez que Mikael a via desde que a encontrara, como uma boneca de pano ensangüentada, no banco da cozinha de Gosseberga, e mais de um ano e meio se passara desde que a vira em circunstâncias normais. Se é que a expressão "circunstâncias normais" era apropriada tratando-se de Lisbeth Salander. Seus olhares se cruzaram por alguns segundos. O dela passou por ele brevemente, sem dar nenhum sinal de reconhecimento. No entanto, ela observou os hematomas que cobriam a face e a têmpora de Mikael, e o curativo cirúrgico sobre seu supercílio direito. Por um instante, Mikael teve a impressão de vislumbrar um esboço de sorriso nos olhos dela. Não soube dizer se ele apenas havia fantasiado aquilo. Então o juiz Iversen bateu o martelo e a sessão começou.
O público permaneceu na sala do tribunal apenas por meia hora. Ouviu o procurador Ekstrõm apresentar os fatos e expor os tópicos da acusação.
Com exceção de Mikael Blomkvist, todos os repórteres tomaram nota assiduamente, mesmo que já estivessem cansados de saber que acusações Ekstrõm pretendia fazer contra Lisbeth Salander. Quanto a Mikael ele já escrevera seu artigo e só viera ao tribunal para marcar presença e cruzar o olhar com Lisbeth.
A introdução de Ekstrõm durou vinte e dois minutos. Então chegou a vez de Annika Giannini. Sua réplica durou trinta segundos. Sua voz estava firme.
— A defesa refuta todos os tópicos da acusação, menos um. Minha cliente se reconhece culpada de porte ilegal de armas, no caso uma bomba de gás lacrimogêneo. Quanto aos outros tópicos, minha cliente nega toda e qualquer responsabilidade ou intenção criminosa. Vamos demonstrar que as acusações do procurador são falsas e que Lisbeth Salander foi vítima de abuso agravado do Poder Judiciário. Vou solicitar que minha cliente seja declarada inocente, que sua tutela seja anulada e que ela seja posta em liberdade.
Ouviam-se as canetas riscando os blocos de anotação dos repórteres. A estratégia da Dra. Giannini era por fim revelada, e mostrava-se bem diferente daquela que muitos repórteres esperavam. A maioria julgara que Annika Giannini iria apelar para a doença mental de sua cliente e explorá-la a seu favor. Mikael não conseguiu disfarçar um sorriso.
— Humm — disse o juiz Iversen, anotando alguma coisa. Ele olhou para Annika Giannini. — Já concluiu?
— Minha solicitação já está feita.
— O procurador tem algo a acrescentar? — perguntou Iversen.
Foi então que o procurador Ekstrõm pediu que as deliberações se dessem a portas fechadas, alegando que se tratava do estado psíquico e do bem--estar de uma pessoa sofrida, além de haver detalhes que podiam implicar a segurança da nação.
— Imagino que esteja falando do suposto caso Zalachenko? — perguntou Iversen.
— Exato. Alexander Zalachenko chegou à Suécia como refugiado político, tentando escapar de uma terrível ditadura. Alguns aspectos do caso, vínculos entre algumas pessoas e outros elementos desse tipo, ainda se encontram sob sigilo, embora o senhor Zalachenko esteja morto. Por esse motivo, solicito que a audiência se dê a portas fechadas e que seja imposto o sigilo profissional no momento em que as deliberações se mostrarem especialmente delicadas.
— Entendo — disse Iversen, e em sua testa desenharam-se sulcos profundos.
— Além disso, boa parte das deliberações estará relacionada com a tutela da acusada, o que automaticamente remete a questões quase sempre confidenciais. De modo que é por solidariedade à acusada que eu peço a audiência a portas fechadas.
— Qual a posição da doutora Giannini quanto ao pedido do procurador?
— No que nos diz respeito, é indiferente.
O juiz Iversen refletiu por alguns instantes. Consultou seu assessor e em seguida declarou, para grande irritação dos presentes, que iria atender à solicitação do procurador. Assim, Mikael Blomkvist foi obrigado a deixar a sala.
Dragan Armanskij aguardava Mikael Blomkvist embaixo da escadaria do Palácio da Justiça. Fazia um calor terrível naquele dia de julho e Mikael sentiu duas manchas de suor começando a se formar em suas axilas. Seus dois guarda-costas o seguiram lá fora. Cumprimentaram Dragan Armanskij com um gesto de cabeça e passaram a examinar os arredores.
— É esquisito andar com guarda-costas — disse Mikael. — E quanto está custando essa brincadeira?
— Presente da empresa — disse Armanskij. — Tenho um interesse pessoal em manter você vivo. E também faturamos o equivalente a duzentas e cinqüenta mil coroas nos últimos meses.
Mikael assentiu com a cabeça.
— Que tal um café? — sugeriu Mikael, apontando para o café italiano da Bergsgatan.
Armanskij concordou. Mikael pediu um caffè latte, enquanto Armanskij optou por um expresso duplo com um pingo de leite. Sentaram-se no terraço, à sombra. Os guarda-costas sentaram-se a uma mesa vizinha diante de um copo de Coca-Cola.
— Portas fechadas — observou Armanskij.
— Era de se esperar. E é até bom, assim a gente domina melhor o fluxo de informações.
— É, tudo bem, mas estou gostando cada vez menos desse Richard Ekstrõm.
Mikael concordou. Tomaram o café contemplando o Palácio da Justiça, onde o futuro de Lisbeth Salander iria ser decidido.
— O contra-ataque foi lançado — disse Mikael.
— E está muito bem preparado — disse Armanskij. — Preciso admitir que sua irmã me impressionou. Quando ela começou a apresentar sua estratégia, pensei que ela estivesse brincando, mas quanto mais penso sobre isso mais me parece o certo a fazer.
— Esse processo não vai se resolver lá dentro — disse Mikael.
Fazia vários meses que ele repetia essas palavras como se fosse um mantra.
— Você vai ser chamado para testemunhar — disse Armanskij.
— Eu sei. Estou preparado. Mas isso será só depois de amanhã. Pelo menos é com o que estamos contando.
O procurador Richard Ekstrõm tinha esquecido seus óculos bifocais em casa e teve de erguer os olhos de leitura sobre a testa e estreitar os olhos para conseguir ler suas anotações escritas em letra miúda. Esfregou rapidamente o cavanhaque loiro antes de recolocar os óculos e observar a sala.
Lisbeth Salander estava sentada com as costas eretas e contemplava o procurador com um olhar insondável. Sua fisionomia e olhos estavam imóveis. Não parecia estar totalmente presente. Chegara a hora de o procurador iniciar seu interrogatório.
— Gostaria de lembrar, senhorita Salander, que está sob juramento — disse Ekstrõm por fim.
Lisbeth Salander não reagiu. O procurador Ekstrõm parecia esperar algum tipo de reação e aguardou alguns segundos. Ele ergueu os olhos.
— A senhorita está sob juramento — repetiu.
Lisbeth Salander inclinou levemente a cabeça. Annika Giannini estava ocupada lendo alguma coisa no relatório do inquérito preliminar e não parecia interessada no que o procurador Ekstrõm dizia. Ele juntou seus papéis. Depois de alguns minutos de um silêncio desconfortável, ele pigarreou.
— Muito bem — disse Ekstrõm num tom brando. — Vamos diretamente aos fatos ocorridos na casa de campo do falecido doutor Bjurman em Stallarholmen, em 6 de abril deste ano, fatos que são o ponto de partida da apresentação dos acontecimentos que fiz nesta manhã. Vamos tentar esclarecer os motivos pelos quais a senhorita foi até Stallarholmen e disparou uma bala em Carl-Magnus Lundin.
Ekstrõm exortou Lisbeth Salander com o olhar. Ela continuava não reagindo. De repente, o procurador pareceu exasperado. Afastou as mãos e voltou o olhar para o presidente do tribunal. O juiz Jõrgen Iversen parecia hesitar. Deu uma espiada na direção de Annika Giannini, ainda envolvida com um documento, totalmente alheia ao mundo à sua volta.
O juiz Iversen deu uma tossidinha. Olhou para Lisbeth Salander.
— Devemos entender seu silêncio como uma recusa a responder às perguntas? — perguntou.
Lisbeth Salander virou a cabeça e cruzou o olhar com o do juiz Iversen.
— Estou disposta a responder às perguntas — retrucou. O juiz Iversen meneou a cabeça.
— Então talvez possa responder à pergunta — sugeriu o procurador Ekstrõm.
Lisbeth Salander voltou a olhar para Ekstrõm. Permaneceu calada.
— A senhorita poderia fazer a gentileza de responder à pergunta? — pediu o juiz Iversen.
Lisbeth mais uma vez dirigiu o olhar para o presidente do tribunal e levantou as sobrancelhas. Sua voz era nítida e clara.
— Que pergunta? Por enquanto, esse senhor — ela inclinou a cabeça na direção de Ekstrõm — fez algumas afirmações sem apresentar nenhuma prova. Não ouvi nenhuma pergunta.
Annika Giannini ergueu os olhos. Pôs os cotovelos na mesa e apoiou o queixo na palma da mão com um súbito interesse no olhar.
O procurador Ekstrõm perdeu o fio da meada por alguns segundos.
— Pode repetir a pergunta? — pediu o juiz Iversen.
— Eu perguntei... a senhorita foi até a casa de campo do doutor Bjurman em Stallarholmen com a intenção de atirar em Carl-Magnus Lundin?
— Não, o que o senhor disse foi: "Vamos tentar esclarecer os motivos pelos quais a senhorita foi até Stallarholmen atirar em Carl-Magnus Lundin". Não era uma pergunta. Era uma afirmação antecipando uma resposta. Eu não sou responsável pelas suas afirmações.
— Não seja impertinente. Responda à pergunta.
— Não.
Silêncio.
— Como assim, não?
— Essa é a resposta à pergunta.
O procurador Ekstrõm suspirou. Ia ser um dia longo. Lisbeth Salander o fitou, esperando o resto.
— Talvez seja melhor retomar do início — disse ele. — A senhorita esteve na casa de campo do doutor Bjurman, em Stallarholmen, na tarde de 6 de abril deste ano?
— Sim.
— Como foi até lá?
— Peguei o trem de subúrbio até Sõdertalje e depois o ônibus para Strángnãs.
— Por que a senhorita foi até Stallarholmen? Tinha marcado algum encontro com Carl-Magnus Lundin e seu amigo Benny Nieminen?
— Não.
— Como se explica eles terem aparecido?
— Isso o senhor tem de perguntar para eles.
— Nesse momento, estou perguntando para a senhorita. Lisbeth Salander não respondeu.
O juiz Iversen pigarreou.
— Suponho que a senhorita Salander não está respondendo porque, semanticamente, o senhor está outra vez fazendo uma afirmação — disse Iversen cheio de boa vontade.
Annika Giannini não conteve uma risada, alta o bastante para ser ouvida. Silenciou imediatamente e tornou a mergulhar em sua papelada. Ekstrõm lançou-lhe um olhar irritado.
— Na sua opinião, por que Lundin e Nieminen teriam ido à casa de campo de Bjurman?
— Não sei. Imagino que tenha sido para incendiar a casa. O Lundin estava com um litro de gasolina numa garrafa plástica, na sacola da sua Harley Davidson.
Ekstrõm fez um muxoxo.
— Por que a senhorita foi até a casa de campo do doutor Bjurman?
— Eu estava atrás de informações.
— Que tipo de informação?
— As mesmas informações que, imagino, o Lundin e o Nieminen que. riam destruir e que, portanto, podiam ajudar a descobrir quem tinha matado aquele outro excremento.
— A senhora considera que o doutor Bjurman era um "excremento"? Eu ouvi bem?
— Sim.
— E qual o motivo dessa sua opinião?
— Esse homem era um porco sádico, um canalha estuprador, portanto não passava de um excremento.
Ela citou, palavra por palavra, a frase tatuada na barriga do falecido Dr. Bjurman, reconhecendo assim, indiretamente, que ela era a autora do texto. Essa, porém, não era uma das acusações contra Lisbeth Salander. Bjurman jamais mencionara essa violência à polícia, sendo impossível determinar se ele consentira em se deixar tatuar ou se a tatuagem tinha sido feita à força.
— A afirmação, então, é de que seu tutor teria abusado da senhorita. Poderia nos dizer quando tais abusos ocorreram?
— Na terça-feira 18 de fevereiro de 2003 e, depois, na sexta-feira 7 de março do mesmo ano.
— A senhorita negou-se a responder todas as perguntas dos policiais que tentaram se comunicar consigo durante os interrogatórios. Por quê?
— Eu não tinha nada a dizer para eles.
— Eu li a sua suposta autobiografia, que sua advogada nos apresentou repentinamente alguns dias atrás. Devo dizer que se trata de um documento estranho, voltaremos a ele depois. Mas nele a senhorita afirma que, na primeira vez, o doutor Bjurman a teria obrigado a praticar uma felação e, na segunda vez, a teria estuprado repetidas vezes, torturando-a durante uma noite inteira.
Lisbeth não respondeu.
— É verdade?
— Sim.
— A senhorita denunciou esses estupros à polícia?
— Não.
— Por que não?
— A polícia nunca me escutou nas vezes em que tentei contar alguma coisa. Logo, não fazia nenhum sentido ir denunciar o que quer que fosse.
— A senhorita comentou esses abusos com alguém? Com alguma amiga?
— Não.
— Por que não?
— Porque não dizia respeito a mais ninguém.
— Certo. A senhorita consultou um advogado?
— Não.
— A senhorita foi a algum médico tratar dos ferimentos que lhe teriam sido infligidos?
— Não.
— E não recorreu ao sos-Mulheres.
— Mais uma vez o senhor está fazendo uma afirmação.
— Me desculpe. A senhorita procurou alguma unidade do sos-Mulheres?
— Não.
Ekstrõm voltou-se para o presidente do tribunal.
— Eu gostaria de chamar a atenção do tribunal para o fato de que a ré declarou ter sido vítima de dois abusos sexuais, o segundo extremamente grave. Ela afirma que o autor dos estupros era seu tutor, o já falecido doutor Nils Bjurman. Paralelamente, deve-se levar em conta os seguintes fatos...
Ekstrõm remexeu seus papéis.
— A investigação da Brigada Criminal não encontrou, no passado do doutor Bjurman, nada que confirme a veracidade do relato de Lisbeth Salan-der. Bjurman nunca foi condenado. Jamais foi objeto de uma denúncia ou de uma investigação policial. Já foi tutor ou administrador legal de vários jovens e nenhum deles revela ter sido vítima de qualquer tipo de abuso. Pelo contrário, insistem que Bjurman sempre se comportou correta e gentilmente com eles.
Ekstrõm virou a página.
— Também devo lembrar que Lisbeth Salander foi diagnosticada como esquizofrênica paranóica. Estão aí vários documentos atestando as tendências violentas dessa jovem e que ela teve, desde o início da adolescência, problemas de convívio social. Passou vários anos numa instituição de psiquiatria infantil e está sob tutela desde os dezoito anos. Mesmo que seja lamentável, existem razões para tanto. Minha convicção é de que ela não deve ser presa, e sim tratada.
Ele fez uma pausa eloqüente.
— Debater sobre o estado mental de uma jovem é um exercício repugnante. Tantas coisas atingem uma vida, e depois o estado mental da pessoa se transforma em objeto de interpretações. No presente caso, porém, podemos nos basear na confusa imagem de mundo da própria Lisbeth Salander. Uma imagem que se manifesta, de um modo que não poderia ser mais claro, em sua suposta autobiografia. Em nenhum lugar sua falta de contato com a realidade aparece de maneira tão evidente. Não há necessidade de testemunhas ou de interpretações que joguem com as palavras. Temos suas próprias palavras. Podemos avaliar nós mesmos a credibilidade de suas afirmações.
Seus olhos pousaram em Lisbeth Salander. Seus olhares se encontraram. Ela sorriu. Ela tinha um ar de poucos amigos. A testa de Ekstrõm se contraiu.
— Doutora Giannini, não tem nada a dizer? — perguntou o juiz Iversen.
— Não — respondeu Annika Giannini. — A não ser que as conclusões do procurador Ekstrõm são fantasiosas.
A tarde, a audiência começou com o interrogatório de uma testemunha, Ulrika von Liebenstaalil, da Comissão de Tutelas, que Ekstrõm convocara na tentativa de esclarecer se já houvera alguma queixa contra o dr. Bjurman. A idéia foi rejeitada com veemência por Liebenstaahl. Esta julgava tal afirmação ofensiva.
— Existe um controle rigoroso nas questões de tutela. O doutor Bjurman já trabalhava para a Comissão de Tutelas havia quase vinte anos quando foi assassinado de forma tão vergonhosa.
Lançou um olhar maldoso para Lisbeth Salander, embora Lisbeth não fosse acusada desse homicídio e já estivesse definido que Bjurman fora morto por Ronald Niedermann.
— Nesses anos todos, nunca houve uma queixa sequer contra o doutor Bjurman. Ele era um homem consciencioso que muitas vezes revelou um profundo envolvimento com seus clientes.
— Então a senhora não acha provável que ele tenha submetido Lisbeth Salander a uma violência sexual?
— Acho essa afirmação absurda. Temos os relatórios mensais enviados pelo doutor Bjurman e estive pessoalmente com ele em várias ocasiões para conversarmos sobre esse caso.
— A doutora Giannini apresentou uma solicitação para que a tutela de Lisbeth Salander seja anulada imediatamente.
— Ninguém mais do que nós, da Comissão de Tutelas, fica feliz quando uma tutela pode ser anulada. Mas infelizmente é nossa responsabilidade seguir as regras em vigor. A comissão, seguindo os procedimentos normais, estabeleceu a exigência de que uma avaliação psiquiátrica declare Lisbeth Salander curada antes que se cogite a possibilidade de anular sua tutela.
— Entendo.
— Isso significa que ela deve se submeter a exames psiquiátricos. E, como se sabe, ela se recusa.
O interrogatório de Ulrika von Liebenstaahl se estendeu por quarenta minutos, durante os quais foram examinados os relatórios mensais de Bjurman.
Annika Giannini fez apenas uma pergunta, pouco antes de o interrogatório terminar.
— A senhora se encontrava no quarto do doutor Bjurman na noite de 7 para 8 de março de 2003?
— É claro que não.
— Em outras palavras, a senhora ignora por completo se as afirmações de minha cliente são verdadeiras ou falsas?
— Essa acusação contra o doutor Bjurman é um disparate.
— Isso é a sua opinião. A senhora tem como oferecer um álibi ou provar de alguma maneira que ele não abusou da minha cliente?
— Isso é obviamente impossível. Mas a probabilidade...
— Obrigada. Era só isso — interrompeu Annika Giannini.
Mikael Blomkvist encontrou-se com a irmã por volta das sete da noite na sede da Milton Security, perto de Slussen, para fazer o balanço daquele dia.
— Tudo transcorreu mais ou menos como previsto — disse Annika. — O Ekstrõrn engoliu a autobiografia da Salander.
— Ótimo. Como ela está se saindo? Annika começou a rir.
— Às mil maravilhas, parece uma perfeita psicopata. Só está se comportando com naturalidade.
— Humm.
— Hoje o assunto foi principalmente Stallarholmen. Amanhã vai ser Gosseberga, o pessoal da Brigada Técnica vai ser interrogado, coisas assim. O Ekstrõm vai tentar provar que a Salander foi até lá para assassinar o pai.
— Certo.
— Mas a gente talvez tenha um problema técnico. Hoje à tarde, o Ekstrõm convocou uma tal de Ulrika von Liebenstaahl, da Comissão de Tutelas. Ela ficou insistindo que eu não tenho o direito de representar a Lisbeth Salander.
— Como assim?
— Ela diz que como a Lisbeth está sob tutela não tem o direito de escolher seu próprio advogado.
— Ah, é?
— Ou seja, tecnicamente falando, não posso ser a advogada dela se eu não for aprovada pela Comissão de Tutelas.
— E aí?
— O juiz Iversen vai se pronunciar a respeito amanhã de manhã. Falei com ele rapidamente depois das deliberações. Mas acho que ele vai decidir que eu continue a representá-la. Aleguei que a Comissão de Tutelas teve três meses para protestar e que é muita cara de pau apresentar uma solicitação dessas agora que o julgamento já começou.
— O Teleborian vai testemunhar na sexta-feira. E tem que ser interrogado por você.
Depois de passar a quinta-feira estudando mapas e fotografias e ouvindo conclusões técnicas verborrágicas sobre o que se passara em Gosseberga, o procurador Ekstrõm conseguira estabelecer que todas as provas indicavam que Lisbeth Salander fora até a casa do pai com a intenção de matá-lo. O elo mais forte na cadeia de provas era ela ter levado consigo uma arma de fogo, uma Wanad P-83 polonesa.
O fato de Alexander Zalachenko (de acordo com o relato de Lisbeth Salander), ou, a rigor, Ronald Niedermann, que assassinara um policial (de acordo com o depoimento dado por Zalachenko antes de ser assassinado no hospital de Sahlgrenska), ter tentado matar Lisbeth Salander e ela ter sido enterrada num buraco dentro da mata não atenuava em nada o fato de que ela seguira a pista do pai até Gosseberga com a intenção de matá-lo. Aliás por pouco não conseguira, ao golpeá-lo no rosto com um machado. Ekstrõm exigiu que Lisbeth Salander fosse condenada por tentativa de homicídio, homicídio premeditado e, de qualquer forma, por violências agravadas.
Segundo a versão de Lisbeth Salander, ela fora a Gosseberga para se confrontar com o pai e fazê-lo confessar o assassinato de Dag Svensson e Mia Bergman. Esse dado era de fundamental importância no tocante à pre-meditação.
Assim que Ekstrõm havia acabado de interrogar a testemunha Melker Hansson, da Brigada Técnica de Gõteborg, a Dra. Annika Giannini fizera algumas perguntas rápidas.
— Senhor Hansson, existe alguma coisa na sua investigação e em toda a documentação técnica reunida pelo senhor que permita afirmar que Lisbeth Salander está mentindo sobre a premeditação de sua visita a Gosseberga? Tem como provar que ela foi até lá com a intenção de matar o pai?
Melker Hansson refletiu por um instante.
— Não — respondeu afinal.
— A conclusão do procurador Ekstrõm, portanto, embora eloqüente e loquaz, não passa de especulação?
— Suponho que sim.
— Existe algum elemento entre as provas técnicas que contradiga Lisbeth Salander quando ela diz ter levado a pistola polonesa, uma Wanad P-83, por acaso, simplesmente porque a arma estava em sua bolsa e ela não sabia o que fazer com ela depois que a tirou de Benny Nieminen em Stallarholmen, no dia anterior?
— Não.
— Obrigada — disse Annika Giannini, tornando a se sentar. Foram suas únicas palavras no interrogatório de Hansson, que se estendera por uma hora.
Por volta das seis da tarde da quinta-feira, Birger Wandensjõõ deixou o prédio da Seção da Artillerigatan com a sensação de estar cercado por nuvens ameaçadoras e de estar caminhando para um naufrágio iminente. Havia várias semanas percebera que seu título de diretor, e, portanto, de chefe, da Seção de Análise Especial não passava de um rótulo sem sentido. Suas opiniões protestos e súplicas não tinham o menor peso. Fredrik Clinton reassumira o comando. Se a Seção fosse uma instituição aberta e oficial, isso não teria tido importância — ele simplesmente teria se dirigido ao seu superior direto e exposto suas queixas.
Na atual situação, porém, não havia a quem se queixar. Estava sozinho e dependente da boa vontade de um homem que ele considerava um doente mental. E o pior era que a autoridade de Clinton mostrava-se absoluta. Fedelhos do tipo de Jonas Sandberg ou seguidores fiéis como Georg Nystrõm pareciam entrar de imediato no esquema e obedecer religiosamente ao velho moribundo.
Reconhecia que Clinton era uma autoridade discreta que não trabalhava para enriquecimento próprio. Admitia que Clinton trabalhava apenas tendo em mente o bem da Seção. Mas era como se toda a organização estivesse em queda livre, num estado de sugestão coletiva em que profissionais tarimbados se recusavam a perceber que cada movimento, cada decisão tomada e posta em prática só os aproximava cada vez mais do abismo.
Wadensjõõ sentia um peso no peito quando entrou na Linnegatan. Achou um lugar para estacionar, desligou o alarme, pegou as chaves e estava prestes a abrir a porta do carro quando escutou uma movimentação atrás de si. Ele se virou. A contraluz o atrapalhou. Precisou de alguns segundos para reconhecer o homem alto parado na calçada.
— Boa noite, senhor Wadensjõõ — disse Torsten Edklinth, diretor da Proteção à Constituição. — Faz anos que eu não ponho os pés em campo, mas hoje senti que minha presença era necessária.
Wadensjõõ fitou, perturbado, os dois policiais à paisana que acompanhavam Edklinth. Eram Jan Bublanski e Marcus Ackerman. De repente se deu conta do que estava para acontecer.
— Tenho o triste dever de lhe comunicar que, por decisão do Ministério Público, você está sendo detido por uma série tão extensa de delitos e infrações que decerto levará semanas para que se defina a relação completa deles.
— O que significa isso? — disse Wadensjõõ fora de si.
— Significa que você está preso, acusado, e de maneira bem fundamentada, de cumplicidade num homicídio. Também está sendo acusado de chantagem, corrupção, escuta ilegal, de diversos casos de falsificação de documentos agravada e prevaricação agravada, cumplicidade em arrombamento abuso de autoridade, espionagem e outras coisinhas mais. No momento, nós dois vamos até Kungsholmen para ter uma conversa tranqüila e séria já esta noite.
— Eu não matei ninguém — disse Wadensjõõ num sopro.
— Isso quem vai dizer é a investigação.
— Foi o Clinton. Foi o Clinton o tempo todo — disse Wadensjõõ. Torsten Edklinth assentiu com a cabeça, satisfeito.
Qualquer policial sabe perfeitamente que existem duas formas clássicas de conduzir o interrogatório de um suspeito. A do policial malvado e a do policial bonzinho. O policial malvado ameaça, xinga, dá socos na mesa e, de modo geral, se comporta de maneira brutal com o intuito de assustar o acusado, de submetê-lo e induzi-lo a confessar. O policial bonzinho, de preferência um velhinho grisalho, oferece cigarros e café, balança a cabeça com simpatia e adota um tom razoável.
A maioria dos policiais — mas não todos — também sabe que a técnica de interrogatório do policial bonzinho é a mais eficiente. O criminoso veterano, duro na queda, não se impressiona nem um pouco com o policial malvado. E o criminoso amador, inseguro, que se assusta com o policial malvado e acaba confessando, provavelmente acabaria confessando qualquer que fosse a técnica utilizada.
Mikael Blomkvist assistiu ao interrogatório de Birger Wadensjõõ de uma sala contígua. Sua presença fora objeto de algumas discussões internas, até Edklinth decidir que talvez pudesse tirar vantagem das observações de Mikael.
Mikael observou que Torsten Edklinth recorria a uma terceira variante de interrogatório, a do policial indiferente, que nesse caso específico parecia funcionar ainda melhor. Edklinth entrou na sala, serviu café em canecas de porcelana, ligou o gravador e recostou-se na poltrona.
— Já temos contra você todas as provas técnicas que se possa imaginar. De modo geral, não temos nenhum interesse em escutar sua versão, a não ser para confirmar o que já sabemos. Mas gostaríamos de ter a resposta a uma pergunta: por quê? Como vocês podem ter sido loucos a ponto de resolverem eliminar pessoas, aqui na Suécia, como se estivessem no Chile do Pinochet? O gravador está ligado. Se quiser dizer alguma coisa, este é o momento. Se não quiser falar, desligo o gravador, tiramos sua gravata e seus cadarços e te hospedamos na casa de detenção enquanto você espera por seu advogado, pelo julgamento e pela sentença.
Edklinth tomou um gole de café e não disse mais nada. Depois que dois minutos se passaram sem que nenhuma palavra fosse dita, ele estendeu a mão e desligou o gravador. Levantou-se.
— Vou pedir que venham buscá-lo daqui a alguns minutos. Boa noite.
— Eu não matei ninguém — disse Wadensjõõ, quando Edklinth já havia aberto a porta. Edklinth estacou.
— Não estou interessado em conversar amenidades com você. Se quiser se explicar, eu me sento e ligo o gravador. Todas as autoridades suecas — em especial o primeiro-ministro — estão impacientes para ouvir o que você tem a dizer. Se você falar, posso ir até o primeiro-ministro ainda esta noite e contar a ele a sua versão sobre o que aconteceu. Se não falar, será processado e condenado da mesma forma.
— Sente-se — disse Wadensjõõ.
Sua resignação não passou despercebida. Mikael suspirou aliviado. Com ele estavam Rosa Figuerola, a procuradora Ragnhild Gustavsson, Stefan, um colaborador anônimo da Sapo, e mais duas pessoas desconhecidas. Mikael desconfiava que pelo menos uma delas representava o ministro da Justiça.
— Não tenho nada a ver com esses assassinatos — disse Wadensjõõ assim que Edklinth tornou a ligar o gravador.
— Esses assassinatos — disse Mikael Blomkvist para Rosa Figuerola.
— Shhh — ela respondeu.
— Foram o Clinton e o Gullberg. Eu ignorava totalmente o que eles iam fazer. Juro. Fiquei chocado quando soube que o Gullberg tinha matado o Za-lachenko. Custei a acreditar que era verdade... custei a acreditar. E, quando soube o que tinha acontecido com o Bjõrck, por pouco não tive um infarto.
— Me fale sobre o assassinato de Bjõrck — disse Edklinth sem alterar o tom de voz. — Como foi?
— O Clinton contratou uma pessoa. Não sei como foi, mas sei que foram dois iugoslavos. Sérvios, acho. Foi o Georg Nystrõm quem instruiu e pagou os dois. Quando soube, me dei conta de que estávamos caminhando para a catástrofe.
— Que tal a gente voltar ao início de tudo? — propôs Edklinth.
- Quando você começou a trabalhar para a Seção?
- Uma vez que Wadensjõõ se pôs a falar, foi impossível contê-lo. O interrogatório se estendeu por quase cinco horas.