17. QUARTA-FEIRA 1º. DE JUNHO


Nada fizera Mikael Blomkvist desconfiar de que havia alguém na escadaria quando ele dobrou o último patamar em frente ao seu soft no número 1 da Bellmansgatan. Eram sete da noite. Ele estacou ao ver uma mulher loira, de cabelos curtos e cacheados, sentada no último degrau. Identificou-a imediatamente como sendo Rosa Figuerola, da Sapo, lembrava-se muito bem da foto que Lottie Karim conseguira.

— Olá, Blomkvist — disse ela com um jeito alegre, fechando o livro que estivera lendo.

Mikael deu uma olhada no título e viu que era um livro em inglês sobre os deuses na Antigüidade. Afastou os olhos do livro para examinar sua inesperada visitante. Ela se levantou. Usava um vestido branco de verão de mangas curtas e pendurara uma jaqueta de couro vermelho-tijolo no corrimão da escada.

— A gente precisava falar com você — disse ela.

Mikael Blomkvist observou-a. Era alta, mais alta que ele, e essa impressão era reforçada pelo fato de ela estar dois degraus acima dele. Observou seus braços, baixou o olhar para as pernas e percebeu que ela era muito mais musculosa que ele.

- Você deve passar várias horas por semana na academia — disse ele.

Ela sorriu e mostrou suas credenciais.

- Eu me chamo...

- Você se chama Rosa Figuerola, nasceu em 1969 e mora na Pontojárcatan, em Kungsholmen. Originária de Borlãnge, trabalhou como policial em Uppsala. Está há três anos na Sapo, na Proteção à Constituição. Obcecada por musculação, houve um tempo em que era atleta de alto nível e por pouco não integrou a equipe sueca nos Jogos Olímpicos. O que quer de mim?

Ela ficou surpresa, mas meneou a cabeça e se recompôs rapidamente.

— Melhor assim — disse ela com um tom casual. — Você já sabe quem eu sou, portanto sabe também que não tem nada a temer da minha parte.

— Não tenho?

— Algumas pessoas estão precisando conversar calmamente com você. Como o seu apartamento e o seu celular parecem estar sob escuta, e há motivos para permanecermos discretos, me mandaram aqui para lhe fazer o convite.

— E por que eu iria a algum lugar com uma pessoa da Sapo? Ela refletiu por um instante.

— Bem... você pode me acompanhar, atendendo a esse convite pessoal e amigável, ou, se preferir, posso lhe passar as pulseiras e levá-lo.

Ela exibiu um sorriso encantador. Mikael retribuiu.

— Escute, Blomkvist... entendo que você não tenha motivo para confiar em ninguém da Sapo. Mas acontece que nem todos que trabalham lá são seus inimigos, e há muitos bons motivos para você aceitar bater um papo com meus chefes.

Ele esperou.

— Então, o que você escolhe? As pulseiras ou a boa vontade?

— Já fui detido uma vez pela polícia este ano. Já tive a minha cota. Aonde vamos?

Ela tinha um Saab 9-5 novo, que estava estacionado na esquina da Pryssgránd. Ao subir no carro, pegou o celular e ligou para um número pré--gravado.

— Estaremos lá em quinze minutos — disse.

Pediu que Mikael Blomkvist pusesse o cinto de segurança e então pegou por Slussen, foi até Õstermalm e estacionou numa rua lateral da Artillerigatan. Ficou um instante parada olhando para ele.

— Blomkvist... é uma reunião amistosa. Você não corre nenhum perig0 Mikael Blomkvist não respondeu. Preferia aguardar o que ia acontecer

antes de fazer um julgamento. Ela digitou o código de entrada. Subiram ao terceiro andar pelo elevador, até um apartamento em que havia uma placa com o nome Wahlõf.

— É vim apartamento que pegamos emprestado para a reunião desta noite — disse Rosa Figuerola, abrindo a porta. — A sala fica à direita.

Mikael avistou primeiro Torsten Edklinth, o que não era nenhuma surpresa já que a Sapo estava envolvida no caso e Edklinth era o chefe de Rosa Figuerola. O fato de o diretor da Proteção à Constituição ter se dado ao trabalho de procurá-lo mostrava que havia alguém preocupado.

Em seguida avistou, diante de uma janela, uma figura que se virou para ele. O ministro da Justiça. Isso, sim, era surpreendente.

Então ouviu um ruído à direita e viu uma pessoa extremamente familiar levantar-se de uma poltrona. Nunca teria imaginado que Rosa Figuerola o levaria a uma reunião noturna de conspiradores. O primeiro-ministro!

— Boa noite, senhor Blomkvist — cumprimentou o primeiro-ministro. Peço desculpas por trazê-lo a esta reunião de forma tão precipitada, mas andamos discutindo sobre a situação e todos concordamos que era necessário falar com o senhor. Posso lhe oferecer um café ou algo para beber?

Mikael olhou em volta. Viu uma mesa grande de madeira escura repleta de copos, xícaras de café vazias e restos de uma torta salgada. Já deviam estar ali havia várias horas.

— Uma Ramlõsa — disse.

Rosa Figuerola serviu-lhe a água mineral. Acomodaram-se nos sofás em volta de uma mesinha de centro, enquanto ela permaneceu à parte.

— Ele me reconheceu. Sabia meu nome, onde moro, onde trabalho e que sou viciada em musculação — disse Rosa Figuerola.

O primeiro-ministro olhou rapidamente para Torsten Edklinth, depois para Mikael Blomkvist. De súbito, Mikael sentiu-se fortalecido, numa posição favorável para falar. O primeiro-ministro precisava dele para alguma coisa e talvez ignorasse até que ponto Mikael Blomkvist estava informado.

— Estou tentando me situar em meio às personagens dessa confusão - disse Mikael em tom casual.

Experimente blefar com o primeiro-ministro.

- E como conseguiu descobrir o nome da senhorita Figuerola? — perguntou Edklinth.

Mikael olhou de lado para o diretor da Proteção à Constituição. Não fazia a menor idéia do motivo que levara o primeiro-ministro a organizar uma reunião secreta com ele num apartamento emprestado de Ostermalm, mas sentia-se inspirado. Na verdade, não havia mil maneiras de as coisas acontecerem. Tudo começara com Dragan Armanskij passando informações para alguém de sua confiança. Que fora necessariamente Edklinth ou alguém próximo a ele. Mikael arriscou.

— Um conhecido em comum lhe contou — disse ele a Edklinth. — O senhor pediu à senhorita Figuerola que investigasse o que estava sendo tramado e ela descobriu que alguns membros da Sapo mantêm escutas telefônicas ilegais e invadiram meu apartamento, esse tipo de coisa. Isso significa que o senhor teve a confirmação da existência do clube Zalachenko. E isso o deixou tão perturbado que sentiu necessidade de levar as coisas adiante, mas ficou algum tempo em seu escritório sem saber a quem se dirigir. Então foi falar com o ministro da Justiça, que por sua vez dirigiu-se ao primeiro-ministro. E aqui estamos nós. O que espera de mim?

Mikael falava de um jeito que dava a entender que ele dispunha de uma fonte bem situada e acompanhara cada passo de Edklinth. Pelos olhos arregalados dele, percebeu que seu blefe tinha dado certo. Prosseguiu.

— O clube Zalachenko está me vigiando, eu o vigio, vocês vigiam o clube Zalachenko e, a esta altura, o primeiro-ministro está furioso e preocupado porque sabe que no fim desta conversa restará um escândalo ao qual o governo talvez não sobreviva.

Rosa Figuerola sorriu de repente, mas disfarçou erguendo seu copo. Percebera o blefe de Blomkvist e sabia como ele tinha feito para surpreendê-la, sabendo seu nome e que número ela calçava.

Ele me viu dentro do carro na Bellmansgatan. Ele é tremendamente atento. Anotou a placa do carro e me identificou. O resto não passa de suposição.

Ela não disse nada.

O primeiro-ministro pareceu preocupado.

— É isso que nos espera? — perguntou. — Um escândalo que irá derrubar o governo?

— O governo não é problema meu — disse Mikael. — Minha missão consiste em revelar merdas como o clube Zalachenko.

O primeiro-ministro balançou a cabeça.

— E a minha consiste em dirigir o país de acordo com a Constituição

— Isso significa que o meu problema é um problema específico do governo. Enquanto a recíproca não é verdadeira.

— Será que poderíamos parar de falar e não dizer nada? Por que acha que eu organizei esta reunião?

— Para descobrir o que eu sei e o que pretendo fazer.

— Em parte, é isso mesmo. Mas seria mais certo dizer que estamos diante de uma crise constitucional. Permita que eu lhe diga, em primeiro lugar, que o governo não tem nada a ver com isso. Fomos pegos totalmente de surpresa. Eu nunca tinha ouvido falar nesse... nisso que o senhor chama de clube Zalachenko. O ministro da Justiça nunca tinha ouvido falar. Torsten Edklinth, que tem um alto cargo na Sapo há vários anos, nunca tinha ouvido falar.

— Continua não sendo problema meu.

— Eu sei. O que nós queremos saber é quando você pretende publicar o seu texto, e também gostaríamos de saber o que pretende publicar. Estou apenas fazendo uma pergunta. Não tem nada a ver com algum tipo de controle sobre possíveis prejuízos.

— Não?

— Blomkvist, a pior coisa que eu poderia fazer nesta situação seria tentar interferir no conteúdo da sua matéria. Em compensação, pretendo lhe propor uma colaboração.

— Explique.

— Agora que confirmamos que existe uma conspiração dentro de uma ramificação excepcionalmente delicada da administração do Estado, dei ordem para que seja feita uma investigação. — O primeiro-ministro voltou-se para o ministro da Justiça. Poderia nos explicar no que consiste exatamente essa ordem do governo?

— É muito simples. Torsten Edklinth foi incumbido de verificar se e possível provar isso tudo. A tarefa dele consiste em reunir provas, que serão encaminhadas ao procurador-geral da nação, o qual, por sua vez, ficará incumbido de avaliar a necessidade de se entrar com uma ação judicial. Trata-se, portanto, de uma instrução bastante precisa.

Mikael assentiu com a cabeça.

- Esta noite, Edklinth nos relatou como a investigação tem avançado.

Tivemos uma longa conversa sobre aspectos constitucionais. Fazemos questão evidentemente, que tudo corra dentro da legalidade.

__Naturalmente — disse Mikael, com um tom que dava a entender que ele não confiava nem um pouco nas promessas do primeiro-ministro.

__ No momento, a investigação se encontra numa fase delicada. Ainda não identificamos exatamente os envolvidos. Para isso, precisamos de tempo. Por isso pedimos que a senhorita Rosa Figuerola o convidasse para esta reunião.

— Ela foi bastante direta. Não tive muita escolha.

O primeiro-ministro franziu o cenho e olhou de esguelha para Rosa Figuerola.

— Esqueça o que eu disse — disse Mikael. — Ela teve um comportamento exemplar. O que vocês querem?

— Queremos saber quando você pretende publicar. No momento, a investigação está sendo conduzida dentro do maior sigilo, e se você agir antes que o Edklinth conclua, poderá pôr tudo a perder.

— Humm. E quando querem que eu publique? Depois das eleições?

— O senhor é quem decide. Não posso influenciar em nada. O que lhe peço é que nos diga quando vai publicar, para que possamos saber qual o deadline da investigação.

— Compreendo. O senhor mencionou uma colaboração... O primeiro-ministro fez que sim com a cabeça.

— Antes de mais nada eu queria dizer que em tempos normais eu jamais pensaria em trazer um jornalista para uma reunião desse tipo.

— Em tempos normais, o senhor provavelmente faria de tudo para manter os jornalistas à distância de uma reunião desse tipo.

— Sim. Mas, pelo que entendi, o senhor tem diversos motivos. E um jornalista com fama de pegar pesado quando se trata de corrupção. Quanto a isso, não há divergência entre nós.

— Não?

— Não. Nenhuma. Ou melhor... as possíveis divergências são decerto de caráter jurídico, porém não há nenhuma no que diz respeito a objetivos. E esse clube Zalachenko existe, trata-se não só de um grupo criminoso, mas de uma ameaça à segurança da nação. Eles precisam ser detidos e os responsáveis devem responder por seus atos. Suponho que estamos de acordo sobre esse ponto, certo?

Mikael fez que sim com a cabeça.

— Pelo que entendi, não há quem saiba mais sobre este caso do que o senhor. Nossa proposta é que divida conosco as suas informações. Caso se tratasse de uma investigação policial regular sobre um crime comum, o responsável pelo inquérito preliminar poderia convocá-lo para um interrogatório. Mas estamos numa situação extrema, como sabe.

Mikael permaneceu calado por um breve momento, avaliando a situação.

— E o que eu ganho em troca, se cooperar?

— Nada. Não estou negociando. Se quiser publicar tudo amanhã, publique. Não posso enveredar por uma negociação questionável do ponto de vista constitucional. Estou lhe pedindo para cooperar pelo bem do país.

— O bem pode assumir inúmeras facetas — disse Mikael Blomkvist. — Deixe eu lhe explicar uma coisa... estou furioso. Furioso com o Estado, com o governo, com a Sapo e com esses idiotas que internaram sem motivo uma menina de doze anos num hospital psiquiátrico, e depois deram um jeito de declará-la incapaz.

— Lisbeth Salander se tornou um assunto de Estado — disse o primeiro-ministro, chegando a sorrir. — Mikael, estou pessoalmente revoltado com o que aconteceu com ela. E acredite em mim quando digo que os responsáveis terão de se explicar. Mas antes precisamos descobrir quem são os responsáveis.

— O senhor tem seus próprios problemas. O meu é que quero que a Lisbeth Salander seja absolvida e recupere seus direitos civis.

— Não posso ajudá-lo nesse aspecto. Não estou acima da lei e não posso dirigir as decisões do procurador e dos tribunais. A absolvição dela precisa vir de um tribunal.

— Perfeito — disse Mikael Blomkvist. — Vocês querem colaboração. Me dêem acesso à investigação do Edklinth e eu digo quando e o que pretendo publicar.

— Não posso lhe conceder esse acesso. Isso eqüivaleria a me colocar, em relação ao senhor, na mesma posição em que o antecessor do ministro da Justiça se colocou diante de um certo Ebbe Carlsson antes de irromper o escândalo das revelações sobre o assassinato de Palme.

-— Eu não sou Ebbe Carlsson — disse Mikael calmamente.

— Isso eu entendi. No entanto, o próprio Torsten Edklintb pode decidir se está disposto a partilhar com o senhor informações de sua missão.

— Está bem, está bem — disse Mikael Blomkvist. — Quero saber quem era Evert Gullberg.

Fez-se um silêncio em torno dos sofás.

— Evert Gullberg foi, provavelmente por vários anos, o chefe da seção da Sapo que o senhor chama de clube Zalachenko — disse Edklinth.

O primeiro-ministro lançou um olhar severo para Edklinth.

— Acho que isso ele já sabe — desculpou-se Edklinth.

— É verdade — disse Mikael. — Ele começou a trabalhar na Sapo nos anos 1950 e se tornou diretor de uma coisa chamada Seção de Análise Especial. Foi ele que administrou todo o caso Zalachenko.

O primeiro-ministro meneou a cabeça suspirando.

— O senhor sabe mais do que deveria. Eu gostaria de saber como descobriu. Mas não vou perguntar.

— Estou com várias lacunas na minha matéria — disse Mikael. — Gostaria de preenchê-las. Me dêem as informações, não vou aprontar com vocês.

— Na condição de primeiro-ministro, não posso passar essas informações. E o Torsten Edklinth ficaria numa situação delicada se o fizesse.

— Isso é bobagem. Eu sei o que vocês querem. Vocês sabem o que eu quero. Se me derem essa informação, vou tratá-los como fontes, com todo o anonimato que isso requer. Não me entendam mal, na minha reportagem vou contar a verdade tal como a vejo. Se estiverem envolvidos, vou acusados e dar um jeito para que nunca mais sejam eleitos. Mas no momento não tenho motivos para pensar assim.

O primeiro-ministro lançou um olhar de esguelha para Edklinth. Depois de um momento, balançou a cabeça. Mikael interpretou isso como um sinal de que o primeiro-ministro acabava de infringir a lei — por mais teórica que ela fosse — e dar seu silencioso consentimento para que Mikael fosse inteirado de informações confidenciais.

— Podemos resolver tudo isso de maneira bem simples — disse Edkhnth. — Eu sou o único investigador e eu mesmo decido que colaboradores contrato para a investigação. O senhor não pode ser formalmente contratado como investigador, pois seria obrigado a assinar um compromisso de sigilo. Mas posso contratá-lo como um consultor externo.

Desde que Erika Berger assumira a chefia de redação no lugar de Hâkan Morander, sua vida andava lotada de reuniões e de uma pilha de trabalho tanto de dia como de noite. Sentia-se o tempo todo despreparada, inadequada e uma não iniciada.

Somente na quarta-feira à noite, quase duas semanas depois de Mikael Blomkvist ter lhe passado o dossiê de Henry Cortez sobre o presidente do conselho administrativo, Magnus Borgsjõ, é que Erika teve tempo de encarar o problema. Ao abrir o dossiê, percebeu que aquele adiamento vinha também do fato de que não tinha vontade de enfrentá-lo. Sabia de antemão que, qualquer que fosse sua atitude, a situação terminaria em catástrofe.

Voltou para sua casa, em Saltsjõbaden, um pouco cedo, por volta das sete da noite, desligou o alarme da entrada e constatou, surpresa, que seu marido, Lars Beckman, não estava. Depois de alguns instantes, lembrou que o beijara com especial carinho de manhã porque ele estava indo para Paris, onde daria algumas palestras, e não voltaria antes do fim de semana. Deu-se conta de que ignorava por completo para quem eram as palestras, sobre o que ele iria falar e quando fora decidida a conferência.

Oh, meu Deus, me perdoe, mas me afastei do meu marido! Sentiu-se como uma personagem de um livro do dr. Richard Schwarts e se perguntou se não estaria necessitada de uma terapia de casal.

Foi para o andar de cima, preparou um banho e se despiu. Levou o dossiê para a banheira e passou a meia hora seguinte lendo toda a matéria. Terminada a leitura, não pôde deixar de sorrir. Henry Cortez ainda seria um jornalista formidável. Tinha vinte e seis anos e trabalhava na Millennium desde que se formara na faculdade de jornalismo, quatro anos antes. Ela sentiu um certo orgulho. A matéria sobre os vasos sanitários e o Borgsjõ trazia do início ao fim a marca da Millennium, e cada linha escrita estava documentada.

Contudo, sentiu-se também muito triste. Magnus Borgsjõ era um homem decente e ela gostava dele. Não fazia muito alarde, sabia escutar, tinha charme e parecia ser uma pessoa simples. Além disso, era seu chefe e empregador. Borgsjõ, seu puto. Como você pôde ser tão burro?

Refletiu por um instante, tentando achar outras ligações ou circunstâncias atenuantes, mas já sabia que seria impossível negar as evidências.

Pôs o dossiê na beirada da janela e se esticou dentro da banheira para pensar.

Era inevitável, a Millennium ia publicar a matéria. Se ela ainda fosse diretora da revista, não hesitaria um segundo sequer, e o fato de a Millennium ter lhe passado discretamente a informação nada mais era que uma tentativa de amenizar um pouco os estragos para o seu lado. Se a situação fosse inversa, se o SMP tivesse desencavado bandalheiras parecidas sobre o presidente do conselho administrativo da Millennium (que vinha a ser ela própria, Erika Berger!), ela tampouco teria hesitado em publicar.

A publicação iria prejudicar seriamente Magnus Borgsjõ. No fundo, o mais grave não era a sua empresa Vitavara S.A. ter encomendado vasos sanitários a uma empresa do Vietnã que constava na lista negra da ONU como empresa exploradora do trabalho infantil e, no caso, de prisioneiros usados como escravos. Sem esquecer também que, com toda a certeza, alguns desses prisioneiros poderiam ser considerados prisioneiros políticos. O mais grave era Magnus Borgsjõ estar a par dessa situação e ainda assim ter optado por continuar encomendando vasos sanitários da Fong Soo Industries. Era uma atitude gananciosa que, a exemplo da de outros gângsteres capitalistas como o ex-presidente da Skandia, o povo sueco não aceitava com facilidade.

Magnus Borgsjõ iria naturalmente afirmar que não fora informado sobre a situação da Fong Soo, mas Henry Cortez tinha provas consistentes do contrário, e no momento em que Borgsjõ tentasse se justificar com essas bobagens estaria se revelando um mentiroso. Pois em junho de 1997 Magnus Borgsjõ estivera no Vietnã para assinar os primeiros contratos. Passara dez dias no país e, entre outras coisas, visitara as fábricas da empresa. Se afirmasse não ter percebido que diversos operários da fábrica não tinham mais que doze ou treze anos, passaria por um rematado estúpido.

Além disso, a questão de Borgsjõ querer alegar uma eventual ignorância ficava definitivamente esclarecida pelas provas que Henry Cortez tinha de que a comissão da ONU contra o trabalho infantil incluíra a Fong Soo em sua lista de empresas exploradoras de crianças em 1999. Isso resultará em alguns artigos nos jornais, além de duas ONGS — independentes uma da outra e que atuavam contra o trabalho infantil, sendo uma delas a prestigiosa International Joint Effort Against Child Labour de Londres — terem escrito cartas às empresas que tinham negócios com a Fong Soo. Nada menos que sete cartas haviam sido enviadas à Vitavara S.A., duas pessoalmente endereçadas a Magnus Borgsjó. A organização de Londres tivera o maior prazer em repassar a documentação para Henry Cortez, frisando que em momento algum tivera uma resposta da Vitavara S.A.

Em compensação, Magnus Borgsjó estivera no Vietnã em duas outras ocasiões, em 2001 e 2004, para renovar os contratos. Era o golpe de misericórdia. Acabava aí qualquer possibilidade de Borgsjó tentar fingir que desconhecia a situação.

A atenção que a mídia daria ao assunto só poderia ter uma conseqüência. Se Borgsjó tivesse algum bom-senso, reconheceria seu erro e pediria demissão de seus cargos nos conselhos administrativos. Caso se mostrasse recalcitrante, acabaria sendo engolido no processo.

Que Borgsjó fosse ou não presidente do conselho administrativo da empresa Vitavara era a menor das preocupações de Erika Berger. O grave, para ela, era ele ser também presidente do SMP. A revelação o forçaria a pedir demissão. Num momento em que o jornal vinha se equilibrando à beira do abismo e estava se iniciando um trabalho de renovação, o SMP não podia se permitir ter um presidente com práticas duvidosas. O jornal sofreria com isso. Ele precisava, portanto, deixar o SMP.

Para Erika Berger, configuravam-se duas linhas de conduta.

Ela poderia ir falar com Borgsjó, pôr as cartas na mesa e mostrar a documentação, para que ele próprio concluísse que era preciso se demitir antes que a matéria fosse publicada.

Ou, caso ele resistisse, ela teria de convocar uma reunião extraordinária e urgente do conselho administrativo, pôr os membros a par da situação e exigir que o conselho administrativo o demitisse. Caso o conselho não quisesse seguir esse caminho, ela própria se veria obrigada a pedir imediatamente demissão do cargo de redatora-chefe do SMP.

Quando Erika chegou a esse ponto de suas reflexões, a água do banho ja tinha esfriado. Ela tomou uma ducha, enxugou-se e foi até o quarto vestir um roupão. Em seguida, pegou o celular e ligou para Mikael Blomkvist. Como não obtivesse resposta, desceu ao andar de baixo, preparou um café e, pela primeira vez desde que começara a trabalhar no SMP, foi olhar se, por acaso, não havia um filme decente na tevê que ela pudesse assistir para relaxar.

Ao passar diante da janela da sala, sentiu uma dor forte no pé, baixou os olhos e descobriu que estava sangrando abundantemente. Deu mais um passo e a dor transpassou-lhe o pé inteiro. Pulando num pé só, alcançou uma cadeira e se sentou. Ergueu o pé e viu, horrorizada, um estilhaço de vidro cravado em seu calcanhar. De início, sentiu que fraquejava. Então se recompôs, segurou o estilhaço e o extraiu. Doeu à beca e o sangue jorrou através do corte.

Ela abriu às pressas a gaveta da cômoda do hall de entrada, onde guardava seus lenços, luvas e gorros. Achou um lenço de seda e usou-o para enrolar o pé, apertando com força. Não foi suficiente, e ela reforçou com outra bandagem improvisada. A hemorragia conteve-se um pouco.

Olhou, estarrecida, para o caco de vidro ensangüentado. Como é que isso veio parar aqui? Então encontrou outros fragmentos de vidro no piso do hall. Que porra de... Levantou-se, deu uma olhada na sala e percebeu que a ampla janela panorâmica com vista para a bacia de Saltsjõn estava quebrada, e o chão repleto de estilhaços de vidro.

Recuou até a porta de entrada e calçou os sapatos que havia tirado ao entrar. Ou melhor, calçou um dos sapatos e enfiou os dedos do pé ferido no outro, e foi meio que saltitando até a sala para conferir o desastre.

Então viu o tijolo no meio da mesa.

Foi mancando até a porta do terraço e saiu para o pátio dos fundos.

Tinham pichado duas palavras na fachada, com letras de um metro de altura.

PUTA NOJENTA

Eram pouco mais de nove da noite quando Rosa Figuerola abriu a porta de seu carro para Mikael Blomkvist. Deu a volta no veículo e sentou-se no banco do motorista.

— Quer que eu o leve em casa ou prefere que eu o deixe em algum outro lugar?

O olhar de Mikael Blomkvist estava sem expressão.

— Para ser bem sincero... nem sei direito onde estou. Essa foi a primeira vez que chantageei um primeiro-ministro.

Rosa Figuerola riu muito.

— Você até que administrou muito bem suas cartadas — disse ela. — Eu não sabia que você tinha talento para o pôquer de blefe.

— Cada palavra minha foi sincera.

— Sim, o que eu quis dizer é que você fingiu saber muito mais do que na verdade sabe. Percebi isso no momento em que entendi como você me identificou.

Mikael voltou a cabeça e olhou para o perfil dela.

— Você anotou o número da placa do meu carro quando eu estava estacionada na ladeira em frente à sua casa.

— Por que não disse nada?

Ela lhe lançou um breve olhar e virou na Grev Turegatan.

— São as regras do jogo. Eu não devia ter ficado ali. Mas foi o único lugar onde consegui estacionar.

— Você anda superatento a tudo que se passa à sua volta, ou estou enganada?

— Você estava com um mapa no banco da frente e falava ao telefone. Anotei o número da placa e apenas verifiquei por desencargo de consciência. Verifico todos os carros que me chamam a atenção. Em geral não dá em nada. No seu caso, descobri que trabalhava na Sapo.

— Eu estava vigiando o Mârtensson. Depois descobri que você também o vigiava através da Susanne Linder, da Milton Security.

— O Armanskij a encarregou de ficar de olho em tudo o que acontece em torno do meu apartamento.

— E como a vi entrando no seu prédio, imagino que o Armanskij tenha instalado algum tipo de vigilância oculta na sua casa.

— Exato. Temos um vídeo excelente de quando eles entram lá e revistam a minha papelada. O Mârtensson tinha com ele uma fotocopiadora portátil. Vocês identificaram o ajudante do Mârtensson?

— Ele não tem a menor importância. É um chaveiro com passado criminoso, que provavelmente foi pago para arrombar a sua porta.

— O nome dele?

— Fonte protegida?

— É evidente.

— Lars Faulsson. Quarenta e sete anos. Conhecido como Falun. Foi condenado por arrombamento de cofre-forte nos anos 1980, mais outras coi-sinhas. Tem uma loja em Norrtull.

— Obrigado.

— Mas vamos deixar os segredos para amanhã.

A reunião terminara com um acordo firmado entre eles, estabelecendo que Mikael Blomkvist iria no dia seguinte à Proteção à Constituição para dar início a um intercâmbio de informações. Mikael refletiu. Estavam passando pela praça de Sergelstorg.

— Sabe o que mais? Estou com uma fome e tanto. Almocei lá pelas duas horas e estava pretendendo cozinhar um macarrão ao chegar em casa, quando você me deteve. E você, já comeu?

— Já faz um tempinho.

— Você não nos levaria a um restaurantezinho que sirva algo comível?

— Toda comida é comível. Ele olhou de lado para ela.

— Achei que você fosse viciada em dietas.

— Não, sou viciada em musculação. Quem se exercita pode comer o que quiser. Nos limites do razoável, claro.

Ela entrou no viaduto de Klaraberg e considerou as opções. Em vez de ir na direção de Sõdermalm, seguiu reto rumo a Kungsholmen.

— Não sei como são os restaurantes do Sõder, mas conheço um, bósnio, na Fridhemsplan. Serve uns bórek fabulosos.

— Para mim está ótimo — disse Mikael Blomkvist.

Lisbeth Salander digitava seu relato letra por letra. Trabalhava em média cinco horas por dia. Expressava-se com muita precisão. Também tomava o cuidado de omitir qualquer detalhe que pudesse ser usado contra ela.

O fato de estar trancada a chave se transformara numa vantagem. Podia trabalhar assim que ficava sozinha no quarto, e o tilintar do molho de chaves ou a chave sendo introduzida na fechadura sempre a alertava quando tinha de dar sumiço no computador de mão.

[Eu já estava quase trancando a casa de Bjurman, em Stallarholmen, quando Carl-Magnus Lundin e Benny Nieminen chegaram nas suas motos. Corno fazia algum tempo que vinham me procurando e não me encontravam, p0r ordem de Zalachenko/Niedermann, ficaram surpresos de me ver ali. Maggi Lundin desceu da moto dizendo que "não seria nada mau essa sapatão dar urna provada num pinto". Lundin e Nieminen estavam tão ameaçadores que fuj obrigada a me defender. Deixei o local na moto de Lundin, que abandonei mais tarde junto ao Parque de Exposições de Alvsjõ.]

Ela releu o trecho e meneou a cabeça em sinal de aprovação. Não havia motivo para contar que Magge Lundin também a chamara de puta nojenta e que então ela se abaixara para apanhar a Wanad P-83 de Benny Nieminen e castigara Lundin baleando-o no pé. Os tiras decerto poderiam imaginar essa parte, sozinhos, mas cabia a eles provar como ela tinha feito. Não pretendia facilitar a tarefa deles confessando algo que a levaria à prisão por violências agravadas.

O texto já tinha trinta e três páginas e estava chegando ao fim. Em certos trechos ela era especialmente parcimoniosa nos detalhes, e tomava o maior cuidado para nunca tentar introduzir provas com o objetivo apenas de confirmar várias de suas afirmações. Chegou inclusive a ocultar certas provas evidentes, preferindo deixar que os fatos se encadeassem naturalmente no texto.

Refletiu um instante, então rolou a tela para cima e releu os trechos em que relatava o estupro violento e sádico que sofrerá do Dr. Nils Bjurman. Era o trecho em que ela mais tinha se demorado e um dos poucos que ela refizera várias vezes antes de se dar por satisfeita. Contava de maneira objetiva como ele a espancara, jogara de bruços na cama, algemara e amordaçara sua boca com fita adesiva. Relatou então que durante a noite toda ele a sujeitara a diversos atos sexuais violentos, incluindo penetrações anais e orais. Contava que em dado momento do estupro ele envolvera seu pescoço com a própria camiseta dela e a estrangulara por um período tão longo que ela chegou a perder momentaneamente os sentidos. Em seguida, descrevia em poucas linhas os apetrechos que ele utilizara no estupro, um chicote pequeno, uma bijuteria anal, um pênis artificial enorme e pinças, que ele aplicara em seus mamilos.

Lisbeth franziu a testa e examinou o texto. Por fim, pegou a canetinha digital e acrescentou-lhe mais algumas linhas.

[Em dado momento, quando eu ainda estava amordaçada, Bjurman comentou o fato de eu ter algumas tatuagens e piercings, inclusive uma argola no mamilo esquerdo. Perguntou se eu gostaria de fazer outro piercing e saiu do quarto por alguns instantes. Retornou com um alfinete, que ele espetou no meu mamilo direito.]

Depois de reler o novo parágrafo, ela balançou a cabeça. O tom burocrático dava ao texto um caráter tão surrealista que ele mais parecia uma absurda fabulação.

A história simplesmente não era crível.

E era exatamente essa a intenção de Lisbeth Salander.

Nisso, escutou o tilintar do molho de chaves do vigia da Securitas. Desligou o computador no ato e enfiou-o no buraco atrás do painel da cabeceira. Era Annika Giannini. Franziu o cenho. Eram mais de nove da noite e Giannini não costumava aparecer assim tão tarde.

— Olá, Lisbeth.

— Olá.

— Como você está?

— Ainda não estou pronta. Annika Giannini suspirou.

— Lisbeth... marcaram o julgamento para 13 de julho.

— Está bem.

— Não, não está bem. O tempo está voando e você se recusa a confiar em mim. Estou começando a achar que cometi um erro enorme ao aceitar ser sua advogada. Se a gente quiser ter alguma chance, você tem de confiar em mim. Nós precisamos trabalhar juntas.

Lisbeth observou Annika Giannini por um bom tempo. Por fim, inclinou a cabeça para trás e fitou o teto.

— Agora sei o que a gente vai fazer — disse. — Entendi o plano de Mikael. E ele está certo.

— Não tenho tanta certeza disso — disse Annika.

— Mas eu tenho.

— A polícia quer te interrogar mais uma vez. Um tal de Hans Faste, de Estocolmo.

— Ele pode me interrogar. Não vou dizer uma só palavra.

— Você precisa dar alguma explicação.

Lisbeth lançou um olhar duro para Annika Giannini.

— Repito. Não vamos dizer uma só palavra à polícia. Quando chegarmos ao tribunal, o procurador não pode ter uma sílaba sequer de interrogatório nenhum para se apoiar. Eles só vão ter o relato que eu estou escrevendo e que em boa parte vai parecer exagerado. E só o terão poucos dias antes do julgamento.

— E quando é que você vai se sentar, de caneta na mão, para redigir esse relato?

— Você vai receber daqui a alguns dias. Mas só vai ser entregue ao procurador poucos dias antes do julgamento.

Annika Giannini mostrou um ar cético. Lisbeth dirigiu-lhe de repente um cauteloso sorriso enviesado.

— Você fala em confiança... Será que você pode confiar em mim?

— Claro.

— Certo, você pode me trazer ilegalmente um computador de mão, para eu poder contatar umas pessoas pela internet?

— Não. E claro que não. Se descobrissem, eu seria processada e perderia minha licença de advogada.

— Mas se outra pessoa me fornecesse um computador, você avisaria a polícia?

Annika ergueu as sobrancelhas.

— Se eu não estiver sabendo...

— Mas se você estivesse sabendo, o que faria? Annika refletiu demoradamente.

— Eu fecharia os olhos. Por quê?

— Esse computador hipotético vai lhe enviar em breve um e-mail hipotético. Depois que você tiver lido, quero que venha me ver.

— Lisbeth...

— Espere. Veja bem o que está acontecendo. O procurador está jogando com cartas marcadas. O que quer que eu faça, estou em posição de inferioridade, e o objetivo desse processo é me internar na psiquiatria.

— Eu sei.

— Se eu quiser sobreviver, também preciso usar métodos ilícitos.

Annika Giannini acabou concordando com a cabeça.

— Quando você veio me ver pela primeira vez, trouxe um recado do Mikael Blomkvist. Ele dizia que tinha te contado praticamente tudo, tirando alguns detalhes. Um desses detalhes são uns talentos que eu tenho, que ele descobriu quando estávamos em Hedestad.

— Sei.

— Ele estava se referindo ao fato de eu ter habilidades incríveis em computação. Sou tão boa nisso que posso ler e copiar o conteúdo do computador do procurador Ekstrõm.

Annika Giannini empalideceu.

— Você não pode se envolver com isso. Portanto, você não pode usar esse material no julgamento — disse Lisbeth.

— De fato.

— Portanto, você nem sabe que ele existe.

— Certo.

— Em compensação, outra pessoa, digamos o seu irmão, pode publicar trechos desse material. Você precisa levar isso em conta ao montar nossa estratégia para o julgamento.

— Entendo.

— Annika, vai ganhar esse julgamento quem melhor souber utilizar a força.

— Sei disso.

— Estou feliz por você ser minha advogada. Confio em você e preciso da sua ajuda.

— Humm.

— Mas se você se opuser a que eu também lance mão de métodos pouco éticos, nós vamos perder o processo.

— Sim.

— Por isso, preciso saber agora de você. Senão vou ter que lhe agradecer I procurar outro advogado.

— Lisbeth, eu não posso infringir a lei.

— Não se trata de infringir a lei. Mas de fechar os olhos por eu estar infringindo. Você seria capaz disso?

Lisbeth Salander esperou pacientemente por quase um minuto até que Annika Giannini assentisse com a cabeça.

— Muito bem. Deixe eu lhe contar, em linhas gerais, o meu relato. Conversaram por duas horas.

Rosa Figuerola estava certa. Os bõrek do restaurante bósnio eram sensacionais. Mikael Blomkvist lançou-lhe um olhar de esguelha quando ela voltou do toalete. Ela se movia com a graça de uma bailarina clássica, mas tinha um corpo que... Mikael não conseguia evitar, estava fascinado. Refreou o impulso de estender a mão para apalpar os músculos de suas pernas.

— Há quanto tempo você faz musculação? — ele perguntou.

— Desde a adolescência.

— E você malha quantas horas por semana?

— Duas horas por dia. Às vezes três.

— Por quê? Quero dizer, eu sei por que as pessoas malham, mas...

— Você acha um exagero.

— Não sei direito o que eu acho.

Ela sorriu, aparentemente nem um pouco irritada com suas perguntas.

— Talvez você se incomode de ver uma mulher musculosa e acha que isso não é muito feminino nem erótico.

— Não. Nada disso. Eu diria que fica bem em você. Você é tremendamente sexy.

Ela riu de novo.

— Ando diminuindo o ritmo. Há dez anos, eu praticava um bodyhuüding puro e pesado. Era legal. Mas agora só preciso cuidar para que meus músculos não se transformem em gordura e eu fique toda flácida. Assim, só puxo um pouco de ferro uma vez por semana, e o resto do tempo eu como, nado, jogo peteca, esse tipo de coisa. É mais exercício do que treino enlouquecido.

— Já não é pouca coisa!

— Faço isso porque acho gostoso. É um fenômeno bem comum em quem se dedica a fundo. O corpo produz uma substância relaxante que deixa a gente dependente. Depois de certo tempo, a gente tem sintomas de abstinência se não corre todo dia. Quando a gente dá tudo de si, é como uma injeção de bem-estar. Quase tão bacana como fazer amor.

Mikael riu.

— Você também deveria fazer — disse ela. — A sua cintura está um pouco fora de forma.

— Eu sei — disse ele. — Minha consciência me cutuca o tempo todo. Às vezes eu recomeço a correr. Me livro de alguns quilos, mas logo me envolvo em alguma outra coisa e não encontro mais tempo durante um mês ou dois.

.— De fato você andou bem ocupado nos últimos meses. Ele ficou sério de repente. Então meneou a cabeça.

— Li muitas coisas à seu respeito nas duas últimas semanas. Você deu de dez a zero na polícia ao encontrar o Zalachenko e identificar o Niedermann.

— A Lisbeth Salander foi ainda mais rápida.

— Como foi que você chegou a Gosseberga? Mikael deu de ombros.

— Trabalho rotineiro de pesquisa, tudo direitinho. Não fui eu que localizei os dois, foi nossa assistente de redação, a Malu Eriksson, que agora é nossa redatora-chefe. Ela conseguiu encontrá-los pelo cadastro de empresas. Ele constava do conselho administrativo da empresa de Zalachenko, a K. A. B.

— Entendo.

— Por que você entrou na Sapo? — ele perguntou.

— Você pode não acreditar, mas sou tão antiquada quanto democrata. Considero a polícia necessária e que uma democracia precisa de segurança política. Por isso me orgulho de trabalhar na Proteção à Constituição.

— Humm — fez Mikael Blomkvist.

— Você não gosta muito da Segurança.

— Não gosto muito de instituições que estão acima do controle parlamentar. São um convite a abusos de poder, mesmo que essas instituições sejam boas. Por que você se interessa por mitologia antiga?

Ela ergueu as sobrancelhas.

— Você estava lendo um livro sobre isso na escadaria do meu prédio.

— Ah, é verdade. Sou fascinada pelo assunto.

— Ahã.

— Eu me interesso por um bocado de coisas. Fiz direito e ciências políticas nos meus anos de policial. Antes, eu tinha estudado história das mentalidades e filosofia.

— Você não tem nenhum ponto fraco?

— Não leio ficção, nunca vou ao cinema e na televisão só vejo o noticiário. E você? Por que se tornou jornalista?

— Porque existem instituições como a Sapo, às quais o Parlamento não tem acesso e que precisam ser constantemente denunciadas.

Mikael sorriu e então prosseguiu.

— Francamente, não sei direito. Na verdade, a resposta é a mesma que a sua. Acredito numa democracia constitucional e de vez em quando é preciso defendê-la.

— Como foi o caso com o financista Hans-Erik Wennerstrõm?

— Por aí.

— Você é solteiro. Você namora a Erika Bergman?

— A Erika Bergman é casada.

— Está certo. Quer dizer que todos os boatos sobre vocês são pura besteira. Você tem namorada?

— Nenhuma permanente.

— Quer dizer que esses boatos também são verdadeiros. Mikael deu de ombros e sorriu outra vez.

A redatora-chefe Malu Eriksson ficou até o amanhecer à mesa da cozinha de sua casa em Ârsta. Estava debruçada sobre umas cópias do orçamento da Millennium e tão envolvida que seu amigo Anton acabou desistindo de tentar conversar com ela. Lavou a louça, preparou um sanduíche e café para mais tarde da noite. Depois, deixou-a tranqüila e se acomodou na frente de uma reprise de C.S.I. na televisão.

Até então, Malu Eriksson nunca administrara algo mais sofisticado que um orçamento doméstico, mas havia trabalhado com Erika Berger nos orçamentos mensais e entendia os princípios da coisa. Tornara-se redatora-chefe e isso a fazia responsável também pela parte financeira da revista. Em dado momento, depois da meia-noite, concluiu que, acontecesse o que acontecesse, iria precisar de um assistente para ajudá-la naquele malabarismo. Ingela Oscarsson, que cuidava da contabilidade uma vez por semana, não tinha competência em matéria de orçamento e não ajudava em nada quando ela tinha de decidir quanto poderiam pagar para um frila ou se tinham condições de comprar uma impressora a laser nova usando uma verba extra e não aquela reservada para investimento tecnológico. Na prática, era uma situação ridícula. A Millennium tinha claramente uma boa folga, mas isso graças a Erika, que sempre conseguira se equilibrar mesmo com um orçamento zero. Algo tão elementar como uma impressora colorida de quarenta e cinco mil coroas ficava reduzido a uma impressora em preto e branco de oito mil coroas.

Por um momento, invejou Erika Berger. No SMP, ela dispunha de um orçamento em que uma despesa dessas equivalia a uns trocados para o café.

A situação financeira da Millennium fora declarada boa na última assembléia, mas talvez o excedente no orçamento se explicasse pelas vendas do livro de Mikael Blomkvist sobre o caso Wennerstrõm. Investido em aplicações, esse excedente vinha diminuindo a uma velocidade preocupante. Um dos motivos eram os gastos de Mikael no caso Salander. A Millennium não dispunha dos recursos necessários para manter os gastos correntes de um colaborador, muito menos quando ele incluía aluguel de carro, quartos de hotel, táxis, compra de material tecnológico de ponta, celulares e tudo mais!

Malu registrou uma nota do freelancer Daniel Olofsson em Góteborg. Ela suspirou. Mikael Blomkvist aprovara a quantia de catorze mil coroas para uma semana de pesquisa sobre um assunto que nem sequer ia ser publicado. A remuneração de um tal Idris Ghidi, de Góteborg, seria lançada na conta de honorários para fontes anônimas, que por definição não dava mais detalhes sobre sua identidade, o que significava que o revisor da contabilidade iria criticar a falta de nota e o caso iria virar assunto da próxima reunião do conselho administrativo. A Millennium também pagava honorários para Annika Giannini, que evidentemente também receberia dinheiro dos cofres públicos, mas que, afinal, de imediato, precisava de algum para pagar suas viagens de trem etc.

Ela largou a caneta e contemplou o total obtido. Mikael Blomkvist usara sem nenhum prurido cento e cinqüenta mil coroas para o caso Salander, totalmente fora do orçamento. Aquilo não podia continuar.

Percebeu que precisaria ter uma conversa com ele.

Erika Berger passou o final do dia no pronto-socorro do hospital de Nacka, e não relaxando no sofá, em frente à tevê, como pretendia. O caco de vidro penetrara tão fundo que a hemorragia não parava, e durante o exame perceberam que ainda havia um estilhaço pontiagudo alojado no calcanhar que precisava ser extraído. De modo que ela foi brindada com uma anestesia local e três pontos.

Durante toda a sua permanência no hospital, Erika Berger ficou reclamando intimamente e tentando ligar ora para Lars Beckman, ora para Mikael Blomkvist. Porém nem seu marido nem seu amante se dignaram a responder. Por volta das dez da noite, seu pé estava empacotado numa enorme bandagem. Emprestaram-lhe muletas e ela pegou um táxi para voltar para casa.

Mancando sobre um pé e a ponta dos artelhos do outro, passou algum tempo varrendo a sala e encomendando uma vidraça nova à SOS Vidros. Teve sorte. A noite estava calma no centro da cidade e o vidraceiro chegou em vinte minutos. Então a sorte virou. A janela da sala era tão grande que não tinham vidro adequado em estoque. O vidraceiro sugeriu que a tapassem provisoriamente com uma chapa de compensado, o que ela aceitou agradecida.

Enquanto o homem instalava o compensado, ela ligou para o plantão da empresa de segurança NIP, Nacka Integrated Protection, e perguntou por quê, porra, o sofisticado alarme não tinha disparado quando jogaram um tijolo na maior janela da sua casa de duzentos e cinqüenta metros quadrados.

Um carro da NIP foi despachado para verificar e constatou-se que o técnico que fizera a instalação vários anos antes esquecera de ligar os fios da janela da sala.

Erika Berger ficou sem voz.

A NIP se ofereceu para remediar a situação na manhã seguinte. Erika retrucou que não precisava. Ligou para a emergência da Milton Security, explicou a situação e pediu um sistema completo de alarme para o mais breve possível. Sim, eu sei que tenho que assinar um contrato, mas diga ao Dragan Armanskij que a Erika Berger ligou, e dê um jeito para que o alarme seja instalado já de manhã.

Por fim, ligou para a polícia. Disseram-lhe que não havia nenhuma viatura disponível para ir colher seu depoimento. Aconselharam-na a procurar a delegacia mais próxima no dia seguinte. Obrigada! Vão se catar!

Depois disso, ficou um bom tempo fervendo por dentro até que a adrenalina começou a baixar e ela se deu conta de que ia dormir sozinha numa casa sem alarme enquanto alguém que a chamava de puta nojenta e mostrava inclinações à violência rondava as proximidades.

Por um breve momento, perguntou-se se não seria melhor ir para o centro e passar a noite num hotel, mas Erika Berger era dessas pessoas que não gostam nem um pouco de se sentir vítimas de ameaças, e menos ainda de ceder a elas. Nem pensar num canalha de merda me expulsar da minha própria casa.

Para compensar, tomou algumas medidas extras de segurança.

Mikael Blomkvist lhe contara como Lisbeth Salander enfrentara o matador em série Martin Vanger com um taco de golfe. Então ela foi até a garagem e passou dez minutos revirando tudo até encontrar sua sacola de golfe, que ela não usava havia uns quinze anos. Escolheu um ferro 7 e colocou-o a uma confortável distância da cama. Deixou um putter no hall de entrada e outro taco de ferro na cozinha. Pegou um martelo na caixa de ferramentas do porão e o pôs no banheiro da sua suíte.

Tirou da bolsa a bomba de gás lacrimogêneo e deixou-a na mesa de cabeceira. Por fim, achou um calço de borracha, trancou a porta do quarto e travou-a com ele. Estava quase desejando que o merdinha que a chamava de puta e estourava sua janela fosse idiota o bastante para voltar durante a noite.

Já era uma da manhã quando se julgou suficientemente protegida. Precisava estar no SMP às oito. Consultou a agenda e viu que tinha quatro reuniões marcadas a partir das dez horas. Seu pé estava muito dolorido e ela não conseguia caminhar normalmente. Despiu-se e enfiou-se na cama. Não tinha camisola e se perguntou se não seria melhor vestir uma camiseta ou outra coisa qualquer, mas como dormia nua desde a adolescência, concluiu que não era um tijolo pela janela da sala que iria mudar seus hábitos.

Evidentemente, não conseguiu pegar no sono e ficou ruminando.

Puta nojenta.

Recebera nove e-mails contendo essas palavras e que pareciam ter vindo de diferentes redações. O primeiro, inclusive, era da redação que ela dirigia, mas com um remetente falso.

Saiu da cama e foi buscar o novo laptop Dell que ganhara ao assumir o cargo no SMP.

O primeiro e-mail — o mais vulgar e ameaçador, que propunha currá-la com uma chave de fenda — chegara no dia 16 de maio, ou seja, dez dias antes.

O segundo chegara dois dias mais tarde, em 18 de maio.


Depois tivera uma semana de trégua, até que os e-mails voltaram, com intervalos regulares de cerca de vinte e quatro horas. E agora o ataque à sua residência. Puta nojenta.

Nesse meio-tempo, Eva Carlsson, da Cultura, recebera aqueles e-mails esquisitos com sua assinatura, ou melhor, assinados Erika Berger. E se Eva Carlsson recebera e-mails esquisitos, era bem possível que o verdadeiro autor das mensagens tivesse se divertido com mais alguém — que outras pessoas tivessem recebido e-mails "seus" que ela desconhecia por completo.

Era um pensamento desagradável.

O mais preocupante, porém, era o ataque à sua casa.

O ataque significava que alguém havia se dado ao trabalho de ir até Saltsjõbaden, achar sua residência e jogar um tijolo pela janela. O ataque fora planejado — o agressor trouxera tinta spray. Em seguida, sentiu um calafrio percorrê-la quando percebeu que talvez devesse acrescentar outra agressão à lista. Seu carro amanhecera com os quatro pneus furados na noite que ela estivera com Mikael Blomkvist no Hilton de Slussen.

A conclusão era tão desagradável quanto óbvia. Ela estava sendo perseguida por um maníaco perigoso.

Em algum lugar lá fora havia um sujeito que, por alguma razão, gastava seu tempo assediando Erika Berger.

Que sua casa fosse objeto de um ataque, era compreensível — ela não podia ser removida nem escondida. Mas se seu carro sofria um ataque quando estava estacionado casualmente numa Rua de Sõdermalm, isso queria dizer que o tal maníaco rondava o tempo todo as proximidades.


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