2. SEXTA-FEIRA 20 DE DEZEMBRO


Dragan Armanskij tinha cinquenta e seis anos e nascera na Croácia. Seu pai era um judeu armênio da Bielo-Rússia. A mãe, uma muçulmana bósnia de ascendência grega. Como ela é que se encarregara de sua educação cultural, na idade adulta ele se viu incluído no grande grupo que a mídia define como muçulmanos. Estranhamente, os serviços de imigração o registraram como sérvio. O passaporte estabelecia que ele era cidadão sueco, e a foto mostrava um rosto quadrado com poderosas mandíbulas, um fundo de barba escuro e cabelos grisalhos nas têmporas. Frequentemente chamavam-no de árabe, embora não houvesse a menor gota de sangue árabe em seu passado. Por outro lado, era um autêntico cruzamento do tipo que os aficionados por biologia racial descreveriam, sem a menor hesitação, como matéria humana inferior.

Seu rosto lembrava vagamente o de um gangster de filme americano. Na realidade, ele não era um traficante de drogas nem um assassino mafioso; era um economista de talento que começara como assistente da Milton Security no início dos anos 1970, e três décadas mais tarde chefiava todas as operações como diretor-executivo.

O interesse por questões de segurança crescera aos poucos até se transformar em fascínio. Era como um jogo de estratégia — identificar situações de ameaça, desenvolver contra-estratégias e sempre se antecipar aos espiões industriais, aos vigaristas e aos fraudadores. Tudo começou quando descobriu a maneira como tinha se dado um engenhoso golpe contra um cliente, com o auxílio de uma contabilidade sutilmente maquiada. Conseguiu apontar, num grupo de umas doze pessoas, quem estava por trás da manipulação, e hoje, decorridos trinta anos, lembra-se de como ficou surpreso ao se dar conta de que o desvio só ocorrera porque a empresa em questão omitira alguns pontos nos processos de segurança. Desde então, passou de simples contador a responsável pelo desenvolvimento da empresa, e mais tarde a especialista em crimes financeiros. Cinco anos depois, já fazia parte da direção e, passados dez anos, tornou-se — não sem alguma relutância — diretor-executivo. Agora a relutância havia muito se acalmara. Durante seus anos de chefia, tinha transformado a Milton Security numa das empresas de segurança mais competentes e mais consultadas da Suécia.

A Milton Security contava com trezentos e oitenta funcionários trabalhando em tempo integral e com mais de trezentos freelancers, remunerados por tarefa. Uma pequena empresa, portanto, se comparada com a Falck ou com a Svensk Bevakningstjänts, o Serviço de Proteção Sueco. Quando Armanskij entrou na empresa, ela ainda se chamava Companhia de Vigilância Geral Johan Fredrik Milton e sua clientela era formada por centros comerciais que tinham necessidade de controladores e seguranças musculosos. Sob sua direção, a empresa passou a se chamar Milton Security, nome mais propício para um ambiente internacional, e investiu em tecnologia de ponta. Houve uma renovação de pessoal; guardas-noturnos em fim de carreira, fetichistas do uniforme e estudantes apenas interessados em bicos foram substituídos por pessoas mais competentes. Armanskij contratou ex-policiais já de uma certa idade como chefes de operações, cientistas políticos especializados em terrorismo internacional, em proteção pessoal e em espionagem industrial e, principalmente, técnicos em telecomunicações e informática. A empresa deixou Solna e a periferia para se instalar em prédios mais prestigiosos do Slussen, no centro de Estocolmo.

No começo dos anos 1990, a Milton Security estava pronta para oferecer um novo tipo de sistema de segurança a um círculo exclusivo de clientes, sobretudo empresas de médio porte com volume de negócios extremamente elevado, e novos-ricos — astros do rock em evidência, investidores da Bolsa e chefes de empresas "pontocom". Grande parte da atividade estava centrada na oferta de proteção pessoal e soluções de segurança para empresas suecas no exterior, sobretudo no Oriente Médio. Essas atividades representavam atualmente cerca de setenta por cento do volume de negócios. Durante o reinado de Armanskij, o volume de negócios passou de quarenta milhões de coroas para cerca de dois bilhões. Vender segurança era um ramo extremamente lucrativo.

A atividade estava distribuída em três áreas principais: consultoria em segurança, que consistia na identificação de perigos possíveis ou imaginados; medidas preventivas, que em geral consistiam na instalação de câmeras de vigilância custosas, alarmes contra roubo ou incêndio, sistemas eletrônicos de bloqueio e equipamentos de informática; e, por fim, a proteção pessoal de indivíduos ou empresas que se julgavam vítimas de ameaças, reais ou imaginárias. Este último mercado mais que quadruplicara na última década, e nos últimos anos surgira um novo tipo de clientela: mulheres ricas querendo proteger-se de um ex-namorado ou marido, ou de molestadores desconhecidos que as teriam visto na televisão e se teriam fixado em sua blusa colante ou no batom de seus lábios. Além disso, a Milton Security trabalhava em parceria com empresas que gozavam da mesma boa reputação que ela em outros países europeus e nos Estados Unidos, encarregando-se da segurança de personalidades internacionais em visita à Suécia, como uma célebre atriz americana em filmagem durante dois meses em Trollhättan, cujo agente achou que seu status exigia que ela estivesse acompanhada de seguranças em seus raríssimos passeios em volta do hotel.

Uma quarta área, bem mais restrita, que ocupava apenas alguns funcionários de tempo em tempo, era constituída pelas chamadas IP, isto é, as investigações pessoais. Armanskij não era um adepto incondicional desse setor de atividade. Além de ser menos lucrativo, era um ramo delicado, que exigia do funcionário mais discernimento e habilidade do que conhecimento em técnica de telecomunicações ou em instalação discreta de aparelhos de vigilância. As investigações pessoais eram aceitáveis quando se tratava de simples informações sobre a solvência de alguém, de verificar o currículo de um futuro colaborador ou a conduta de um empregado suspeito de deixar vazar informações sobre sua empresa ou de se entregar a uma atividade criminosa.

Nesses casos, as IP caíam no âmbito operativo.

Mas a toda hora os clientes vinham lhe apresentar problemas de ordem pessoal que tendiam a trazer consequências indesejadas. Quero saber quem é o vagabundo com quem minha filha está saindo... Acho que minha mulher está me traindo... O rapaz é legal, mas está se envolvendo com más companhias... Estão me chantageando... Na maioria das vezes, Armanskij respondia com um não categórico. Se a filha era maior de idade, ela tinha o direito de sair com o vagabundo que quisesse, e na sua opinião a infidelidade devia ser resolvida entre os cônjuges. Por trás de todas essas demandas, havia armadilhas dissimuladas que podiam potencialmente conduzir a escândalos e causar problemas jurídicos para a Milton Security, razão pela qual Dragan Armanskij exercia um controle rigoroso sobre essas missões, que, além do mais, só geravam rendimentos modestos no volume total de negócios da empresa.


O assunto desta manhã, por azar, era justamente uma investigação pessoal, e Dragan Armanskij arrumou o vinco da calça antes de se inclinar para trás na sua confortável poltrona do escritório. Com ceticismo, contemplou Lisbeth Salander, sua colaboradora trinta e dois anos mais jovem, e pela milésima vez constatou que ninguém parecia mais mal instalada que ela numa prestigiosa empresa de segurança. Seu ceticismo era ao mesmo tempo refletido e irracional. Aos olhos de Armanskij, Lisbeth Salander era indiscutivelmente a researcher mais competente que ele encontrara em todos os seus anos naquele ramo. Durante os quatro anos em que trabalhava para ele, Lisbeth Salander não havia falhado em uma única missão nem produzido um só relatório medíocre.

Ao contrário, o que ela realizava podia ser classificado como fora de série. Armanskij estava convencido de que Lisbeth Salander possuía um dom único. Qualquer um era capaz de obter informações bancárias ou efetuar um controle fiscal, mas Salander tinha imaginação e trazia sempre algo mais do que era esperado. Ele realmente nunca entendeu como ela conseguia; às vezes sua capacidade de obter informações parecia magia pura. Familiarizada ao extremo com os arquivos administrativos, ela sabia desencavar as informações mais obscuras. Tinha sobretudo a capacidade de se infiltrar na pele da pessoa investigada. Se houvesse merda a revelar, atingia o alvo como um míssil programado.

Sem dúvida, ela possuía o dom.

Seus relatórios podiam se revelar uma verdadeira catástrofe para a pessoa detectada por seu radar. Armanskij nunca se esqueceu de uma missão que uma vez lhe dera, uma investigação de rotina sobre um pesquisador da indústria farmacêutica que estava prestes a se associar a uma empresa. O trabalho, que devia durar uma semana, prolongava-se. Depois de quatro semanas de silêncio e de várias chamadas que ela ignorou, Salander apareceu com um relatório especificando que o objeto da pesquisa era a pedofilia. Duas vezes, pelo menos, o sujeito recorrera a uma prostituta de treze anos em Tallinn, e havia indícios de que estava interessado na filha menor de idade da companheira com quem vivia.

Salander tinha qualidades que em alguns momentos levavam Armanskij à beira do desespero. Quando descobriu que o homem era pedófilo, ela não telefonou para avisar Armanskij, não correu até seu escritório para terem uma conversa. Ao contrário: sem indicar por uma palavra sequer que o relatório continha informações explosivas de proporções quase nucleares, colocou-o certa noite sobre a mesa, no momento em que Armanskij se preparava para deixar o escritório e voltar para casa. Ele levou consigo o relatório e só o abriu mais tarde, no momento em que, finalmente descontraído, dividia uma garrafa de vinho com a mulher diante da tevê, na sua casa de campo em Lidingö.

Como sempre, o relatório era de uma minúcia quase científica, com notas de rodapé, citações e indicações exatas das fontes. As primeiras páginas reconstituíam o passado do objeto, sua formação, carreira e situação econômica. Somente na página 24, num parágrafo intermediário, é que Salander soltava a bomba das escapadas a Tallinn, no mesmo tom objetivo utilizado para dizer que ele morava numa casa de campo em Sollentuna e que dirigia um Volvo azul-marinho. Para sustentar suas afirmações, ela remetia a um anexo volumoso, com fotografias da menor de idade em companhia do objeto. A foto fora tirada no corredor de um hotel em Tallinn e a mão dele estava debaixo da blusa da menina. Além disso, Lisbeth Salander conseguira, não se sabe como, encontrar a menina e convencê-la a prestar um depoimento detalhado, gravado em fita cassete.

O relatório desencadeou exatamente o caos que Armanskij queria evitar. Para começar, ele foi obrigado a tomar dois comprimidos que o médico receitara para sua úlcera de estômago. Depois, convocou o pesquisador farmacêutico para uma conversa sinistra e breve. Para terminar — e apesar dos veementes desmentidos deste —, viu-se obrigado a transmitir imediatamente as informações à polícia. O que significava que a Milton Security corria o risco de se envolver num processo de acusações e contra-acusações. Se o dossiê não fosse aceito ou se o homem fosse absolvido, a empresa podia ser processada por difamação. Desastre total!


No entanto, não era a surpreendente falta de emoção em Lisbeth Salander que mais o perturbava. A época exigia investimento na imagem, e a imagem da Milton era a de uma estabilidade conservadora. E Lisbeth Salander correspondia tão pouco a essa imagem quanto uma escavadeira num salão náutico.

Armanskij teve dificuldade de se habituar ao fato de seu melhor cão de caça ser uma jovem pálida, de uma magreza anoréxica, com cabelos quase raspados e piercings no nariz e nas sobrancelhas. Tinha a tatuagem de uma vespa no pescoço e uma faixa tatuada ao redor do bíceps do braço esquerdo. Nas poucas vezes em que Lisbeth usara uma regata, Armanskji constatara que ela também tinha uma tatuagem maior na omoplata, representando um dragão. Originalmente ruiva, tingira os cabelos de preto. Parecia estar sempre chegando de uma semana de farra na companhia de uma banda de heavy-metal.

Ela não sofria de distúrbios alimentares — Armanskij estava convencido disso. Ao contrário, parecia consumir qualquer tipo de comida. Simplesmente nascera magra, com uma ossatura fina que indicava um aspecto frágil e delicado de menina, com mãos pequenas, tornozelos estreitos e seios que mal despontavam sob as roupas. Tinha vinte e quatro anos, mas parecia ter catorze.

A boca era larga, o nariz pequeno e as maçãs do rosto altas, o que lhe dava um vago ar oriental. Tinha movimentos rápidos e aracnídeos, e quando trabalhava no computador seus dedos voavam excitados sobre as teclas. O corpo não se prestava a uma carreira de modelo, mas, com uma maquiagem adequada, um primeiro plano de seu rosto não faria má figura num cartaz publicitário. Embora às vezes passasse nos lábios um repugnante batom preto, e apesar das tatuagens e dos piercings, ela era... digamos... atraente. De um modo totalmente incompreensível.

O fato de Lisbeth Salander trabalhar para Dragan Armanskij era, em si, assombroso. Ela não era o tipo de mulher com quem ele cruzava habitualmente, muito menos a quem pensaria oferecer trabalho.

Ele lhe oferecera um emprego no escritório depois que Holger Palmgren, um advogado semi-aposentado que cuidava dos assuntos pessoais do velho J. F. Milton, os informara que Lisbeth Salander era uma moça perspicaz, apesar do seu comportamento um pouco perturbado. Palmgren pedira que Armanskij desse uma oportunidade à menina, o que ele prometera, a contragosto. Palmgren era desses homens que um não só faz redobrar esforços, de modo que o mais simples era dizer sim imediatamente. Armanskij sabia que Palmgren se encarregava de crianças problemáticas e de outras insignificâncias sociais do gênero, mas que possuía, apesar de tudo, um bom julgamento.

Ele se arrependeu no instante em que viu Lisbeth Salander.

Ela não só parecia perturbada — aos olhos dele, ela era o próprio sinônimo da perturbação — como também abandonara a escola e não tinha nenhum tipo de estudo superior.

Nos primeiros meses, ela trabalhou em tempo integral, ou melhor, quase em tempo integral; só de vez em quando aparecia no trabalho. Preparava o café, cuidava da correspondência e tirava fotocópias. O problema é que não dava a mínima para os horários normais do escritório ou os métodos de trabalho.

Em compensação, tinha uma grande capacidade de irritar os funcionários. Era chamada de a moça de dois neurônios, um para respirar, o outro para se manter de pé. Nunca falava de si mesma. Os colegas que tentavam iniciar uma conversa raramente obtinham uma resposta e logo desistiam. As tentativas de brincar com ela nunca davam certo — ou porque contemplava o gracejador com grandes olhos inexpressivos, ou porque reagia com uma irritação manifesta.

Logo ganhou a reputação de irascível, de mudar drasticamente de humor se enfiasse na cabeça que alguém estava zombando dela, comportamento bastante comum num ambiente de trabalho. Sua atitude não encorajava confidências nem amizade, e ela rapidamente se tornou um fenômeno ocasional que vagava como um gato perdido pelos corredores da Milton. Consideravam-na totalmente irrecuperável.

Depois de um mês de confusões ininterruptas, Armanskij chamou-a à sua sala com a intenção de despedi-la. Ela ouviu passivamente a enumeração de seus erros, sem objeções e sem sequer levantar a sobrancelha. Ele terminou por dizer que ela não tinha a atitude correta, e estava a ponto de lhe sugerir outro emprego, no qual soubessem tirar proveito da sua competência, quando foi interrompido no meio de uma frase. Pela primeira vez, ela não falou apenas com palavras esparsas.

— Olha, se é um criado que o senhor quer, procure alguém na agência de empregos temporários. Quanto a mim, posso descobrir qualquer coisa sobre qualquer pessoa, e se quer me usar apenas para separar a correspondência, então o senhor é um idiota.

Armanskij ainda lembrava o quanto ficou mudo de cólera e de surpresa, enquanto ela continuava, sem prestar atenção nele.

— Há na sua empresa um sujeito que dedicou três semanas a escrever um relatório completamente nulo sobre esse yuppie que estão pensando em recrutar como presidente do conselho administrativo de uma "pontocom", o senhor sabe do que estou falando. Fotocopiei ontem à noite o relatório de merda dele e, se não estou enganada, é esse que está aí na sua mesa.

Armanskij pôs os olhos no relatório e, o que não era de seu feitio, elevou o tom de voz.

— Você não está autorizada a ler relatórios confidenciais.

— Provavelmente não, mas as rotinas de segurança na sua empresa deixam um pouco a desejar. Segundo suas instruções, ele mesmo deve tirar a fotocópia, mas ele me passou o relatório antes de sair para o almoço. Aliás, há algumas semanas o relatório anterior que ele tinha feito ficou esquecido na cantina.

— Como assim, esquecido? — exclamou Armanskij, chocado.

— Não se preocupe. Guardei-o no cofre dele.

— Ele te passou a combinação do seu cofre pessoal? — perguntou Armanskij, sufocado.

— Não exatamente. Mas anotou num papel que deixa sobre sua mesa de trabalho, com a senha do computador. Mas o ponto aonde quero chegar é que o relatório que ele fez, esse seu detetive particular de araque, não tem o menor valor. Ele não descobriu que o cara tem dívidas monumentais, que cheira coca mais que um aspirador, e que sua companheira precisou se refugiar no SOS-Mulheres porque ele a espancou.

Depois, silêncio. Armanskij não disse nada durante alguns minutos, distraído em folhear o relatório. Ele era apresentado com competência, escrito numa prosa compreensível e carregada de referências, fontes e declarações de amigos e conhecidos do objeto. Por fim, levantou os olhos e pronunciou duas palavras:

— Prove isso.

— Quanto tempo me dá?

— Três dias. Se não conseguir provar suas afirmações até sexta-feira ao meio-dia, está despedida.


Três dias depois, ela entregou um relatório com referências de fontes igualmente explícitas, que transformavam o agradável jovem yuppie numa pessoa não confiável. Armanskij leu o relatório várias vezes durante o fim de semana e passou parte da segunda-feira numa contraverificação pouco entusiasmada de algumas daquelas afirmações. Antes mesmo de começar o controle, sabia que as informações se revelariam exatas.

Armanskij estava perplexo e irritado consigo mesmo por tê-la manifestamente julgado mal. Achou-a estúpida, talvez até um pouco retardada. Não esperava que uma menina que falhara nos estudos e que não tinha sequer notas no final do colégio pudesse escrever um relatório não somente correto do ponto de vista linguístico mas que apresentava também observações e informações que o faziam se perguntar como ela as tinha obtido.

Ele sabia que ninguém na Milton Security poderia conseguir um trecho do diário confidencial de um médico do SOS-Mulheres. Quando lhe perguntou como procedera, só obteve uma resposta evasiva. Ela disse que não pretendia queimar suas fontes. Aos poucos, ficou claro para Armanskij que Lisbeth Salander também não tinha a intenção de discutir seus métodos de trabalho, nem com ele nem com qualquer pessoa. Isso o inquietou, mas não o bastante para resistir à tentação de pô-la à prova.

Refletiu sobre esse ponto durante alguns dias.

Lembrou-se das palavras de Holger Palmgren quando a enviou. Todo mundo deve ter sua chance. Pensou em sua própria educação muçulmana, que lhe ensinara que o dever para com Deus era ajudar os excluídos. Embora ele não acreditasse em Deus e nunca tivesse posto os pés numa mesquita desde a adolescência, tinha a impressão de que Lisbeth Salander era alguém que precisava de ajuda e de um apoio sólido. Na verdade, ele não realizara muitas ações desse gênero em sua vida.


* * *

Em vez de despedi-la, convocou Lisbeth Salander para uma conversa particular, na qual tentou entender qual era realmente o problema daquela moça complicada. Sua convicção de que ela sofria de um distúrbio sério se reforçou, mas ele descobriu que por trás de seu perfil problemático escondia-se uma pessoa inteligente. Achava-a frágil e complicada, mas também começava — não sem espanto — a gostar dela.

Nos meses seguintes, Armanskij pôs Lisbeth Salander debaixo de suas asas. Se fosse sincero consigo mesmo, diria que se encarregava dela como de um pequeno projeto social. Dava-lhe tarefas de pesquisa simples e procurava instruí-la sobre a melhor maneira de proceder. Ela escutava com paciência, ia embora e realizava a missão totalmente à sua maneira. Ele pediu ao responsável pelos serviços técnicos da Milton para dar-lhe um curso básico de informática; Salander permaneceu sem protestar em sua cadeira durante toda uma tarde, antes que o responsável, um pouco deslumbrado, viesse relatar que ela parecia ter mais conhecimentos de informática que a maioria dos funcionários da empresa.

Armanskij rapidamente percebeu que, apesar das conversas sobre plano de carreira, ofertas de desenvolvimento interno e outros meios de persuasão, Lisbeth Salander não tinha a intenção de se adaptar às rotinas da Milton. Isso o colocou diante de um dilema complicado.

Ela continuava sendo um elemento de irritação para os colegas. Armanskij tinha consciência de que não aceitaria tais horários aleatórios de outro colaborador, e que numa situação normal lhe teria dado um ultimato, exigindo uma mudança. Imaginava também que, se desse um ultimato a Lisbeth Salander ou ameaçasse despedi-la, ela apenas encolheria os ombros. Portanto, teria ou que se separar dela, ou aceitar que ela não funcionava como as pessoas normais.


O maior problema para Armanskij, porém, é que ele não conseguia definir seus sentimentos em relação à moça. Ela era como uma comichão desconfortável, repulsiva e atraente ao mesmo tempo. Não se tratava de atração sexual — pelo menos não de algum tipo que Armanskij quisesse reconhecer.

As mulheres que ele cobiçava eram geralmente louras e opulentas, com lábios carnudos que atiçavam sua imaginação. Além do mais, estava casado havia vinte anos com uma finlandesa chamada Ritva, que, mesmo tendo passado dos cinquenta, ainda satisfazia essas exigências. Ele nunca fora infiel — digamos que vivera só alguns raros momentos que a mulher poderia interpretar mal se ficasse sabendo —, tinha um casamento feliz e duas filhas da idade de Salander. Seja como for, não se interessava por meninas sem peito que de longe podiam ser confundidas com rapazes magricelas. Não era seu estilo.

Não obstante, começou a pegar-se em flagrante delito tendo sonhos acordados com Lisbeth Salander, e admitiu que não era totalmente indiferente à presença dela. Mas a atração, dizia Armanskij a si mesmo, vinha do fato de Salander ser para ele uma criatura exótica. Ele poderia ter se enamorado também do quadro de uma ninfa grega. Salander representava uma vida irreal que o fascinava mas que ele não podia compartilhar — e que de todo modo ela o impedia de compartilhar.

Um dia, Armanskij estava no terraço de um café na praça Stortorget, na cidade velha, quando Lisbeth Salander chegou e instalou-se numa mesa na outra ponta do terraço. Estava acompanhada de três moças e de um rapaz, todos vestidos de forma semelhante. Armanskij a observou com curiosidade. Parecia tão reservada como no escritório, mesmo assim sorriu quando uma das moças, de cabelo roxo, lhe contou alguma coisa.

Armanskij perguntou-se como Salander reagiria se ele chegasse ao escritório com cabelos verdes, um jeans rasgado e um blusão de couro com rebites e pingentes. Seria aceito como um dos seus? Talvez — ela parecia aceitar tudo ao redor com um ar de tanto faz, não estou nem aí —, mas o mais provável é que zombasse dele.

Ela estava de costas e não olhou uma única vez para o lado dele, parecendo ignorar que ele estivesse ali. Mas Armanskij sentiu-se estranhamente perturbado pela presença dela quando, passado um momento, levantou-se para sair de mansinho e ela virou a cabeça, o mirou bem nos olhos, como se soubesse o tempo todo que ele estava ali e o tivesse sob vigilância. Seu olhar o atingiu tão de repente que ele o sentiu como um ataque; fingiu não vê-la e deixou o terraço com passos rápidos. Ela não o chamou, mas o seguiu com os olhos, e esse olhar não cessou de arder em suas costas até ele dobrar a esquina.

Ela raramente ria. Armanskij, no entanto, tinha a impressão de haver notado um abrandamento nela. Seu humor era seco e eventualmente acompanhado de um leve sorriso irônico.

Às vezes, Armanskij sentia-se tão provocado pela falta de resposta emocional de Lisbeth Salander que tinha vontade de sacudi-la e abrir uma passagem nessa carapaça para conquistar sua amizade ou pelo menos seu respeito.

Numa única ocasião, quando fazia nove meses que ela trabalhava para ele, tentou discutir esses sentimentos com ela. Foi numa noite de dezembro, na festa de Natal da Milton Security, e dessa vez ele bebera bastante. Nada de inconveniente se passou — ele apenas tentou dizer que gostava muito dela. Sobretudo, quis explicar que tinha um instinto de proteção por ela e que, se um dia ela precisasse de alguma coisa, podia procurá-lo com toda a confiança. Tentou mesmo abraçá-la — amigavelmente, é claro.

Ela se desvencilhou desse abraço desajeitado e foi embora da festa. Não apareceu mais no escritório nem atendia o celular. Dragan Armanskij viveu sua ausência como uma tortura — quase como uma punição pessoal. Não tinha ninguém com quem dividir seus sentimentos, e pela primeira vez compreendeu, com uma lucidez aterradora, o poder devastador que Lisbeth Salander tinha sobre ele.


Três semanas depois, numa noite de janeiro, quando Armanskij fazia hora extra para verificar o balancete do ano, Salander voltou. Entrou na sala suavemente como um fantasma e de súbito ele a percebeu junto à porta, observando-o dali da penumbra. Não tinha a menor idéia de quanto tempo fazia que ela estava ali.

— Quer café? — ela perguntou, estendendo-lhe um copinho da máquina de café expresso da cantina.

Sem dizer uma palavra, ele pegou o copinho e sentiu ao mesmo tempo alívio e temor quando ela fechou a porta com a ponta do pé e instalou-se na poltrona dos visitantes, olhando-o bem nos olhos. A seguir, fez a pergunta tabu de tal modo que ele nem pôde despachá-la com um gracejo nem contorná-la.

— Dragan, você sente tesão por mim?

Armanskij ficou como que paralisado, refletindo como um louco sobre que resposta dar. Seu primeiro impulso foi negar, com ar ofendido. Depois, viu o olhar dela e entendeu que, pela primeira vez, ela perguntava alguma coisa. Uma pergunta séria e, se ele tentasse se safar com um gracejo, ela tomaria aquilo como um insulto pessoal. Ela queria falar com ele, e ele se perguntou há quanto tempo ela estava reunindo coragem para fazer essa pergunta. Depositando a caneta bem devagar sobre a mesa, ele se reclinou na poltrona e, por fim, conseguiu relaxar.

— O que a faz supor isso? — perguntou.

— A maneira como me olha e a maneira como não me olha. E às vezes em que esteve a ponto de estender a mão para me tocar e se conteve.

Ele sorriu de repente.

— Eu tinha a impressão de que você morderia a minha mão se eu tocasse um dedo em você.

Ela não sorriu. Esperava.

— Lisbeth, sou seu chefe e, mesmo que estivesse atraído por você, nunca faria um gesto.

Ela continuava esperando.

— Entre nós, sim, houve momentos em que me senti atraído. Não consigo explicar, mas aconteceu. Por uma razão que eu mesmo não entendo, gosto imensamente de você. Mas não é nada físico.

— Melhor assim. Porque nunca haverá nada entre nós.

Armanskij soltou uma risada. Mesmo dando a informação mais negativa que um homem podia receber, Salander acabava de lhe falar, de certa maneira, com intimidade. Ele buscou as palavras apropriadas.

— Lisbeth, entendo que não esteja interessada em um velho com mais de cinquenta anos.

— Não estou interessada num velho com mais de cinquenta anos que é meu chefe. — Ela ergueu a mão. — Espere, deixe-me falar. Às vezes você é tacanho e insuportável com esse seu jeito de burocrata, mas o fato é que também é um homem atraente e... eu também posso me sentir... Só que você é meu chefe, eu conheci sua mulher, quero conservar esse emprego na firma, e a pior coisa que eu poderia fazer seria ter um caso com você.

Amanskij ficou em silêncio, ele mal ousava respirar.

— Estou perfeitamente consciente do que fez por mim, e não sou uma ingrata. Aprecio de verdade que tenha passado por cima dos preconceitos e tenha me dado uma chance aqui. Mas não o quero como amante e você não é meu pai.

Ela se calou. Depois de um momento, Armanskij suspirou, desamparado.

— O que quer de mim então?

— Quero continuar trabalhando para você. Se acha isso conveniente. Ele assentiu com a cabeça e em seguida respondeu com a maior franqueza possível.

— Realmente, tenho muita vontade que trabalhe para mim. Mas também quero que sinta alguma forma de amizade e de confiança por mim.

Ela concordou com a cabeça.

— Você não é uma pessoa que incite à amizade — ele disparou de repente. Ela se contraiu um pouco, porém ele prosseguiu, inexorável. — Entendi que não quer que se envolvam com a sua vida e tentarei não fazer isso. Mas tudo bem se continuo a gostar de você?

Salander refletiu por um bom tempo. Sua resposta, então, foi se levantar, contornar a mesa e abraçá-lo. Ele ficou paralisado. Somente quando ela o soltou, ele pegou sua mão.

— Podemos ser amigos? — ele perguntou. Ela concordou com a cabeça mais uma vez.

Foi a única ocasião em que ela lhe mostrara ternura e a única em que o tocara. Um momento de que Armanskij se lembrava sempre com emoção.

Quatro anos haviam transcorrido agora, e ela quase nada revelara a Armanskij sobre sua vida pessoal ou sobre seu passado. Uma vez, ele direcionou a ela sua própria competência na arte da investigação. Teve também uma longa conversa com Holger Palmgren — que não pareceu surpreso de ouvi-lo —, e o que acabou por saber em nada contribuiu para aumentar sua confiança. Nunca discutiu esse assunto com ela, nunca fez a menor alusão nem lhe deu a entender que vasculhara sua vida privada. Em vez disso, ocultou sua inquietação e reforçou a vigilância.


Antes que essa memorável noitada terminasse, Salander e Armanskij chegaram a um acordo. Ela passaria a trabalhar para ele como freelancer. Receberia um pequeno pagamento mensal fixo, quer realizasse ou não missões; os verdadeiros rendimentos viriam das faturas que apresentasse em cada missão. Trabalharia como bem entendesse; em contrapartida, ela se comprometeria a nunca fazer nada que prejudicasse ou criasse problemas para a Milton Security.

De acordo com Armanskji, era uma solução vantajosa para a empresa, para ele mesmo e para Salander. Ele restringiu o penoso serviço das IP a um único funcionário fixo, um colaborador muito jovem que desempenhava corretamente as tarefas rotineiras e cuidava das informações sobre solvência. Todas as missões complicadas e duvidosas, ele reservou a Salander e a outros freelancers que — se as coisas saíssem mal — eram seus próprios patrões e pelos quais a Milton Security não precisava responder. Como ele lhe passava missões com frequência, ela obtinha rendimentos confortáveis. Rendimentos que até poderiam ser bem mais elevados, porém ela trabalhava somente quando tinha vontade, segundo o princípio de que, se Armanskij não gostasse, bastava dispensá-la.

Armanskij a aceitou tal como era, com a condição de que não devia se encontrar com os clientes. Quase nunca havia exceções a essa regra, mas o caso que hoje se apresentava era, infelizmente, uma delas.


Naquele dia, Lisbeth Salander vestia uma camiseta preta com uma imagem do E. T. exibindo dentes ferozes e as palavras I am also an alien. Usava saia preta com a bainha desfeita, uma jaqueta curta de couro também preta e ralada, cinto com rebites, botas Doc. Martens e meias com listas transversais vermelhas e verdes, subindo até os joelhos. A maquiagem indicava que talvez fosse daltônica. Ou seja, apresentava-se com o maior esmero.

Armanskij suspirou e dirigiu o olhar à terceira pessoa presente na sala — um visitante de aspecto antiquado e óculos com lentes espessas. O advogado Dirch Frode tinha sessenta e oito anos e insistira para se encontrar com o autor do relatório, a fim de lhe fazer algumas perguntas. Armanskij tentou evitar o encontro recorrendo a falsos expedientes, dizendo que Salander estava gripada, que estava viajando e às voltas com outros trabalhos. Frode respondera despreocupadamente que não tinha pressa — o caso não era urgente e ele podia esperar mais alguns dias sem problema. Armanskij praguejou em voz baixa e não achou outra saída senão reuni-los. Agora Frode observava Lisbeth Salander com evidente fascínio. Salander respondeu com um olhar furioso, sua expressão indicando claramente que não nutria a menor simpatia por ele.

Armanskij suspirou mais uma vez e olhou para o dossiê que ela depositara em cima da mesa, com o título Carl Mikael Blomkvist. O nome era acompanhado de um número de registro, meticulosamente escrito na capa. Ele pronunciou o nome em voz alta. Frode saiu de seu estado de enfeitiçamento e voltou os olhos para Armanskij.

— Bem, o que pode me dizer sobre Mikael Blomkvist? — perguntou.

— Esta é a senhorita Salander, que redigiu o relatório. — Armanskji hesitou um segundo e prosseguiu com um sorriso destinado a transmitir confiança a Frode, mas que sobretudo pedia desculpas desamparadas. — Não se surpreenda com a juventude dela. É sem dúvida nossa melhor investigadora.

— Estou certo disso — respondeu Frode com uma voz seca que indicava o contrário. — Conte-me o que ela descobriu.

Evidentemente o advogado não fazia a menor idéia de que comportamento adotar com Lisbeth Salander e procurava pisar um terreno mais seguro dirigindo a pergunta a Armanskij, como se ela não estivesse na sala. Salander aproveitou a ocasião para fazer uma grande bola com seu chiclete. Antes que Armanskij tivesse tempo de responder, ela falou ao chefe como se Frode não existisse.

— Pode ver com o seu cliente se ele deseja a versão longa ou a resumida?

Na mesma hora Frode percebeu a gafe que cometera. Seguiu-se um breve e penoso silêncio, então ele se virou para Lisbeth Salander e tentou corrigir o erro adotando um tom gentilmente paternal.

— Eu ficaria muito grato, senhorita, se pudesse me fazer um resumo do que descobriu.

Salander parecia uma fera cruel das savanas espreitando Dirch Frode para devorá-lo. Havia em seu olhar um ódio tão intenso e inesperado que Frode sentiu um arrepio nas costas. Rapidamente o rosto dela suavizou-se. Frode se perguntou se o que vira naquele olhar fora imaginação. Quando ela começou a falar, seu tom de voz era o de um funcionário de Estado.

— Antes de mais nada, permita-me dizer que essa missão não foi especialmente complicada, a não ser pelo fato de que a descrição das tarefas a cumprir era bastante vaga. O senhor queria que bisbilhotássemos por toda parte para descobrir tudo a respeito dele, mas esqueceu de indicar se buscava algo em particular. Razão pela qual chegamos a uma espécie de amostra de sua vida. O relatório contém cento e noventa e três páginas, mas cento e vinte são, na verdade, cópias de artigos que ele escreveu ou recortes de imprensa nos quais aparece. Blomkvist é uma figura pública com poucos segredos e não tem muito a esconder.

— Mas então ele tem segredos? — perguntou Frode.

— Todo mundo tem segredos — ela respondeu, imperturbável. — Trata-se apenas de descobrir quais.

— Sou todo ouvidos.

— Mikael Blomkvist nasceu em 18 de janeiro de 1960, portanto logo completará quarenta e três anos. Nasceu em Borlänge, mas nunca morou lá. Seus pais, Kurt e Anita Blomkvist, tinham cerca de trinta e cinco anos quando ele nasceu; atualmente os dois são falecidos. O pai era instalador de máquinas e devia se deslocar bastante; a mãe nunca foi senão dona de casa, pelo que entendi. A família mudou-se para Estocolmo quando Mikael começou a escola. Ele tem uma irmã três anos mais nova, ela se chama Annika e é advogada. Tem também tios e primos... E esse café, vem ou não vem?

A última frase era dirigida a Armanskij, que sem demora abriu a garrafa térmica que ele pedira para a reunião. Com um gesto, convidou Salander a continuar.

— Em 1966, portanto, a família se mudou para Estocolmo. Moravam em Lilla Essingen. Blomkvist cursou a escola primária e secundária em Bromma, depois fez o colegial em Kungsholmen. Suas notas de final de curso foram excelentes, encontrará cópias delas no dossiê. Quando estava no colégio, fazia música, tocava baixo num grupo de rock, os Bootstrap, que teve até um compacto tocado no rádio, no verão de 1979. Depois do colégio, trabalhou como vigia no metrô, juntou dinheiro para viajar ao exterior. Esteve fora um ano, passeando principalmente pela Ásia — Índia, Tailândia e uma breve estadia na Austrália. Começou a estudar jornalismo em Estocolmo quando tinha vinte e um anos, mas interrompeu o curso ao cabo de um ano para prestar o serviço militar no regimento de caçadores, em Kiruna. Uma espécie de unidade de machos, da qual saiu com notas 10-9-9, o que é um bom resultado. Depois do serviço militar, formou-se jornalista e começou a trabalhar. Até onde devo ir com os detalhes?

— Conte tudo que lhe pareça essencial.

— Certo. Ele é sobretudo o tipo primeiro da classe. Até hoje tem sido um jornalista talentoso. Nos anos 1980, fez uma série de serviços temporários, primeiro na imprensa do interior, depois em Estocolmo. A lista está no dossiê.

Mas se tornou realmente conhecido com a história dos Irmãos Metralha — o bando de assaltantes que ele ajudou a prender.

— Super-Blomkvist.

— Ele detesta esse apelido, o que é compreensível. Eu deixaria alguém de olho roxo se me chamassem de Píppi Meialonga numa manchete de jornal.

Ela lançou um olhar sombrio para Armanskij, que engoliu em seco. Mais de uma vez, ele pensara em Lisbeth Salander justamente como Píppi Meialonga, e felicitou-se por nunca haver soltado esse gracejo. Fez sinal para que ela prosseguisse, agitando o indicador no ar.

— Uma fonte diz que até então ele queria ser repórter criminal, chegou mesmo a fazer um trabalho temporário nessa seção num jornal vespertino, mas o que o tornou famoso foi sua atuação como investigador político e econômico. Trabalhou principalmente como freelancer e teve um único emprego fixo num jornal vespertino, no final dos anos 1980. Pediu demissão em 1990, quando participou da criação da revista mensal Millennium. Ela começou como zebra, sem um editor de peso que a bancasse. A tiragem aumentou, hoje está em torno de vinte e um mil exemplares. A redação está instalada na Götgatan, a poucas ruas daqui.

— Uma publicação de esquerda.

— Tudo depende de como se define esquerda. A Millennium é tida como uma revista de crítica à sociedade, mas algo me diz que os anarquistas a vêem como uma publicação pequeno-burguesa do mesmo filão da Arena ou da Ordfront, enquanto a União dos Estudantes Moderados provavelmente pensa que a redação é composta de bolchevistas. Nada indica que Blomkvist tenha exercido uma atividade política, mesmo durante a onda esquerdista do seu tempo de colégio. Quando estava na faculdade de jornalismo, viveu com uma militante sindicalista que hoje ocupa uma cadeira no Parlamento pelo partido da esquerda. O rótulo de esquerdista se deve sobretudo ao fato de ele ter se especializado, como jornalista econômico, em reportagens que revelaram a corrupção e negócios suspeitos no mundo empresarial. Ele fez algumas descrições devastadoras de empresários e políticos, sem dúvida nenhuma bem merecidas, e está na origem de um bom número de demissões e processos jurídicos. O mais conhecido é o caso Arboga, que resultou na demissão forçada de um político conservador e na sentença de um ano de prisão dada a um ex-tesoureiro municipal, por desvio de verba. Denunciar delitos dificilmente pode ser considerado uma atitude de esquerda.

— Entendo o que quer dizer. E o que mais?

— Ele escreveu dois livros. Um sobre o caso Arboga e outro sobre jornalismo econômico, intitulado Os templários e publicado há três anos. Não li, mas, a julgar pelas críticas, o livro é bastante controvertido e suscitou muitos debates na mídia.

— E quanto a dinheiro?

— Ele não é rico, mas não tem do que se queixar. Suas declarações de renda estão anexadas ao dossiê. Tem pouco mais de duzentas e cinquenta mil coroas no banco, aplicadas num plano de aposentadoria e num fundo de poupança. Dispõe de cerca de cem mil coroas na conta corrente, que usa para as despesas normais, viagens et cetera. Possui um apartamento que comprou financiado e já terminou de pagar. Sessenta e cinco metros quadrados na Bellmansgatan. Não fez empréstimos nem dívidas.

Salander levantou um dedo.

— Ele possui ainda um outro bem: uma propriedade rural em Sandhamn. É uma cabana de vinte e cinco metros quadrados, que funciona como casa de férias, situada à beira-mar, na parte mais atraente da aldeia. Ao que parece foi comprada por um dos tios nos anos 1940, quando os simples mortais ainda podiam se oferecer esse tipo de coisa, e foi por causa da herança que a cabana passou a pertencer a Blomkvist. Ele e a irmã dividiram os bens, ela ficou com o apartamento dos pais em Lilla Essingen e Mikael Blomkvist com a cabana. Não sei quanto ela vale hoje, com certeza alguns milhões, mas ele não parece querer vendê-la e vai para lá com bastante frequência.

— Seus rendimentos?

— É co-proprietário da Millennium, mas retira apenas doze mil coroas de salário mensal. Compensa com atividades de freelancer; no final, a soma é variável. Atingiu um pico há três anos, quando recebeu muitas solicitações da mídia, o que lhe rendeu cerca de quatrocentas e cinquenta mil coroas no ano. No ano passado, seus honorários não foram além de cento e vinte mil.

— Ele vai ter que pagar cento e cinquenta mil por perdas e danos, mais as custas do advogado e coisas desse tipo — constatou Frode. — Pode-se dizer que a soma será elevada, sem esquecer que ele não terá rendimentos enquanto estiver cumprindo a pena de prisão.

— O que significa que sairá sem nada no bolso — observou Salander.

— Ele é honesto? — perguntou Dirch Frode.

— E o seu capital de confiança, por assim dizer. Ele insiste em se apresentar como um sólido guardião da moral no mundo das empresas, e seguidamente é convidado a ir à televisão para comentar diversos casos.

— Certamente não restará muita coisa desse capital após o julgamento de hoje — disse Frode com ar pensativo.

— Não estou muito por dentro do que se exige de um jornalista, mas depois dessa bofetada certamente vai demorar muito até o Super-Blomkvist receber o Grande Prêmio de Jornalismo. Ele se queimou magistralmente — constatou Salander com lucidez. — Mas se me permite uma reflexão pessoal...

Armanskij abriu bem os olhos. Nos anos em que Lisbeth Salander vinha trabalhando para ele, nunca emitira a menor reflexão pessoal numa investigação sobre um indivíduo. Para ela, contavam apenas os fatos brutos, mas hoje abria uma exceção.

— Não competia à minha missão examinar o caso Wennerström, mas acompanhei o processo e confesso que fiquei perplexa. Todo o caso parece muito mal contado, e é totalmente... totalmente improvável que Mikael Blomkvist publicasse algo a tal ponto sem fundamento.

Salander coçou o queixo. Frode parecia aguardar com paciência. Armanskij se perguntou se estava enganado ou se Salander não sabia realmente como prosseguir. A Salander que ele conhecia nunca se mostrava indecisa nem hesitante. Por fim ela se decidiu.

— Isto ficará fora do relatório... realmente não mergulhei no caso Wennerström, mas acho que o Super-Blomkvist... perdão, Mikael Blomkvist, caiu numa armadilha. Acho que há nessa história algo bem diferente daquilo que a sentença indica.

Dessa vez, foi Dirch Frode que se ergueu de repente na poltrona. O advogado examinou Salander com atenção e Armanskij notou que, pela primeira vez desde o início da exposição, ele mostrava um interesse que ia além da simples polidez. De início, Armanskij achou que o caso Wennerström representava aparentemente algo bem preciso para Frode. Mas logo se corrigiu. Na verdade, o caso Wennerström não interessa a Frodefoi somente quando Salander insinuou que Blomkvist se deixou pegar que Frode reagiu.

— O que está querendo dizer exatamente?

— Simples especulação, mas estou convencida de que alguém o enganou.

— E o que a faz supor isso?

— Tudo no passado de Blomkvist indica que ele é um jornalista muito prudente. Todas as revelações passíveis de controvérsia que ele fez sempre foram muito bem documentadas. Assisti a uma sessão do julgamento. Ele não forneceu argumentos contraditórios; pareceu ter abandonado a luta, o que não combina com seu caráter. A acreditar no tribunal, ele fabricou uma história sobre Wennerström sem nenhuma prova e a publicou como se fosse um jornalista camicase, e esse não é de modo algum o estilo de Blomkvist.

— O que aconteceu, na sua opinião?

— Posso apenas especular. Blomkvist acreditou na sua história, mas algo aconteceu no caminho e a informação se revelou falsa. Isso significa que a fonte era alguém em quem ele confiava, ou então que alguém deliberadamente lhe passou informações erradas, o que me parece complicado e inverossímil. A alternativa pode ser ele ter sido exposto a uma ameaça tão grave que preferiu jogar a toalha e passar por um imbecil incompetente em vez de entrar na luta. Mas, como eu disse, são só especulações.


Salander se preparava para prosseguir seu relato, quando Dirch Frode a interrompeu com um gesto. Ficou um momento silencioso tamborilando com a ponta dos dedos no braço da cadeira, antes de se voltar novamente para ela com alguma hesitação.

— Se quiséssemos contratá-la para desvendar o caso Wennerström... quais seriam suas chances de descobrir alguma coisa?

— Não sei dizer. Talvez não haja nada para descobrir.

— Mas aceitaria tentar? Ela encolheu os ombros.

— Não cabe a mim decidir. Trabalho para Dragan Armanskij e é ele quem decide que tarefas deseja me atribuir. Depois, depende do tipo de informação que o senhor quer descobrir.

— Deixe-me pôr as coisas assim... Presumo que esta conversa seja confidencial, não? — Armanskij assentiu com a cabeça. — Nada sei sobre esse caso, mas sei, de forma incontestável, que Wennerström foi desonesto em outros contextos. Esse caso teve um impacto enorme na vida de Mikael Blomkvist e eu gostaria de saber se suas especulações poderiam conduzir a algum lugar.

A conversa tomara um rumo inesperado e Armanskij imediatamente ficou alerta. O que Dirch Frode pedia era que a Milton Security aceitasse investigar um caso judiciário já julgado, no qual talvez tivesse ocorrido alguma forma de ameaça ilícita contra Mikael Blomkvist e no qual a Milton potencialmente se arriscava a entrar em colisão com o exército de advogados de Wennerström. Armanskij não estava nem um pouco tentado pela idéia de lançar Lisbeth Salander em tal situação, como um míssil descontrolado.

Não se tratava apenas de preocupação com a tarefa. Salander já dissera claramente que não queria ver Armanskij desempenhando o papel de pai adotivo angustiado, e depois do acordo que fizeram ele evitava comportar-se como tal, mas interiormente nunca deixaria de se preocupar com ela. Às vezes, surpreendia-se comparando Salander com as próprias filhas. Considerava-se um bom pai que não interferia inutilmente na vida das filhas, mas sabia que jamais aceitaria que elas se comportassem ou vivessem como Lisbeth Salander.

No fundo do seu coração croata — ou bósnio, talvez, ou armênio —, ele nunca conseguira se libertar de uma convicção de que a vida de Salander era uma corrida rumo ao desastre. A seus olhos, ela se oferecia como vítima ideal para alguém com más intenções, e ele temia ser despertado uma manhã com a notícia de que alguém lhe fizera mal.

— O custo de uma investigação como essa pode ser muito alto — disse Armanskij com prudência, para sondar a seriedade da proposta de Frode.

— Precisamos apenas fixar um teto — replicou Frode, perspicaz. — Não estou pedindo o impossível, mas é evidente que sua colaboradora, como você afirmou, é competente.

— Salander? — disse Armanskij, erguendo uma sobrancelha em direção a ela.

— Não tenho nenhum outro trabalho em andamento.

— Certo. Mas eu gostaria que chegássemos a um acordo sobre algumas formalidades. Vamos ouvir o resto do relatório.

— Não há muita coisa mais, exceto detalhes sobre a vida privada dele. Em 1986 casou-se com uma tal Monica Abrahamsson, e no mesmo ano tiveram uma filha chamada Pernilla, hoje com dezesseis anos. O casamento não durou muito, em 1991 eles se divorciaram. Abrahamsson voltou a se casar, mas parece que os dois continuam tendo boas relações. A filha mora com a mãe e não vê Blomkvist com muita frequência.


* * *

Frode pediu uma segunda xícara de café e voltou-se outra vez para Salander.

— Há pouco você deu a entender que todo mundo tem segredos. Descobriu algum?

— Eu quis dizer que as pessoas têm coisas que consideram privadas e que não costumam expor. Blomkvist parece apreciar o convívio com as mulheres. Teve várias histórias de amor e muitas ligações ocasionais. Em suma, tem uma vida sexual intensa. No entanto, existe uma pessoa em sua vida já há muitos anos e o relacionamento deles é bastante incomum.

— Em que sentido?

— Ele tem um relacionamento sexual com Erika Berger, diretora da Millennium; filha da alta sociedade, de mãe sueca e pai belga radicado na Suécia. Berger e Blomkvist se conheceram na faculdade de jornalismo e desde então têm uma ligação mais ou menos constante.

— Não parece tão incomum — observou Frode.

— Certamente não. Mas Erika Berger é casada com o artista plástico Lars Beckman, um sujeito ligeiramente famoso, que espalhou uma porção de instalações horrorosas em lugares públicos.

— Ou seja, ela é infiel.

— Não. Beckman sabe do relacionamento deles. É um ménage à trois, aparentemente aceito pelas partes. Às vezes ela dorme na casa de Blomkvist, às vezes na casa do marido. Não sei bem como a coisa funciona, mas sem dúvida foi o que fez acabar o casamento de Blomkvist e de Monica Abrahamsson.


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