21. QUINTA-FEIRA 3 DE JULHO — QUINTA-FEIRA 10 DE JULHO


Lisbeth Salander acordou antes de Mikael, às seis da manhã. Pôs a água do café para esquentar e tomou um banho. Quando Mikael acordou por volta das sete e meia, encontrou-a lendo seu resumo do caso Harriet Vanger no notebook. Foi até a cozinha, com uma toalha de banho em volta da cintura, e esfregou os olhos para espantar o sono.

— O café está pronto — disse Lisbeth. Mikael olhou por cima do ombro dela.

— Esse documento estava protegido por uma senha de acesso — disse. Ela virou a cabeça e olhou para ele.

— Em trinta segundos pode-se baixar um programa na internet que abre as senhas do Word — ela disse.

— Nós dois precisamos ter uma conversinha sobre o que lhe pertence e o que me pertence — disse Mikael, e foi tomar seu banho.

Quando voltou, Lisbeth já havia fechado e recolocado o computador de Mikael na saleta de trabalho, e trabalhava no seu próprio Powerbook. Ele podia jurar que ela já havia transferido todo o conteúdo do seu computador para o dela.

Lisbeth Salander era uma junkie da informática com uma concepção muito liberal a respeito de moral e ética.


* * *

Mikael tinha acabado de se sentar à mesa para tomar o café-da-manhã, quando bateram à porta. Ao abrir, deu com um Martin Vanger tão crispado que, por um instante, acreditou que ele vinha anunciar a morte de Henrik.

— Não, o estado de Henrik continua o mesmo. Venho por outro motivo. Será que posso entrar um momento?

Mikael o fez entrar e o apresentou à sua "colaboradora" Lisbeth Salander. Ela o cumprimentou com um breve aceno de cabeça antes de voltar ao computador. Martin Vanger respondeu com uma saudação automática, mas dava a impressão de estar tão distraído que nem pareceu notá-la. Mikael serviu-lhe uma xícara de café e o convidou a se sentar.

— O que aconteceu?

— Você é assinante do Hedestads-Kuriren?

— Não. Leio o jornal de vez em quando no Café Susanne.

— Então não leu a edição de hoje?

— Pelo jeito, acho que eu deveria ter lido.

Martin Vanger pôs o Hedestads-Kuriren em cima da mesa, na frente de Mikael. Havia duas colunas dedicadas a ele na primeira página, com uma continuação na página 4. Ele leu a manchete.


JORNALISTA CONDENADO POR DIFAMAÇÃO SE ESCONDE ENTRE NÓS


O texto era ilustrado por uma foto de Mikael saindo de casa, tirada da igreja, do outro lado da ponte, com teleobjetiva.

O repórter Conny Torsson traçava um perfil grosseiro e devastador de Mikael. O artigo recapitulava o caso Wennerström, sublinhava que Mikael deixara a Millennium com o rabo entre as pernas e que acabava de amargar uma pena de prisão. O texto terminava informando, segundo a fórmula-padrão, que Mikael se recusara a conceder uma entrevista ao Hedestads-Kuriren. A idéia da matéria era fazer o habitante de Hedestad acreditar que um vagabundo da capital, um indivíduo perigoso, se encontrava nas imediações. Nenhuma das afirmações era abertamente caluniosa, mas todas procuravam jogar uma luz suspeita sobre Mikael; a foto e o texto adotavam a linha "descrição de terroristas políticos". A Millennium era apresentada como uma "revista de agitadores" pouco digna de crédito, e o livro de Mikael sobre jornalismo econômico como um amontoado de afirmações destinadas a denegrir jornalistas respeitados.

— Mikael... não tenho palavras para dizer o que senti quando li esse artigo. É ignóbil.

— É cobra mandada — respondeu Mikael calmamente. Ele perscrutou Martin Vanger com o olhar.

— Espero que não pense que eu tenho algo a ver com isso. Mal consegui engolir meu café hoje de manhã, ao ler o jornal.

— Quem teria sido?

— Dei alguns telefonemas agora há pouco. Conny Torsson está cobrindo férias de verão. Mas ele fez esse trabalho a pedido de Birger.

— Não sabia que Birger tinha influência na redação. Pensei que fosse apenas conselheiro municipal e político.

— Formalmente não tem influência alguma. Mas o redator-chefe do Kuriren é Gunnar Karlman, filho de Ingrid Vanger, do ramo Johan Vanger. Birger e Gunnar são amigos íntimos há muitos anos.

— Entendo.

— Torsson será despedido imediatamente.

— Que idade ele tem?

— Não sei. Para dizer a verdade, nunca o vi.

— Não o demita. Quando ele me telefonou, parecia bastante jovem e um repórter pouco experiente.

— Mas isso não pode ficar assim.

— Se quer saber minha opinião, acho um pouco absurdo o redator-chefe de um jornal que pertence à família Vanger atacar outro periódico que tem Henrik Vanger como sócio e de cujo conselho administrativo você participa. O redator-chefe Karlman está atacando Henrik e você.

Martin Vanger pesou as palavras de Mikael e assentiu lentamente com a cabeça.

— Entendo o que quer dizer. Eu deveria apurar melhor as responsabilidades. Karlman tem participações no grupo e sempre tentou me atacar pelas costas, mas isso está me parecendo mais uma vingança do Birger por você ter batido boca com ele no corredor do hospital. Para ele, você é uma pedra no sapato.

— Sim, e é por isso que acho Torsson o mais inocente de todos. É muito raro um jovem jornalista substituto dizer não quando o redator-chefe lhe ordena que escreva desse ou daquele modo.

— Posso exigir que lhe apresentem desculpas públicas nas páginas de amanhã.

— Não faça isso. O único resultado seria uma luta interminável, o que só pioraria a situação.

— Está querendo me dizer que não devo fazer nada?

— Sim, será melhor. Karlman inventará histórias, e você corre o risco de ser classificado como um proprietário com vontade de influenciar de maneira ilícita a opinião do público.

— Desculpe, Mikael, mas não concordo com você. Também tenho o direito de emitir minha opinião. Acho esse artigo imundo e tenho a intenção de deixar bem claro o que penso. Afinal, sou o suplente de Henrik na direção da Millennium e não posso me calar diante dessas insinuações.

— Tudo bem.

— Vou exigir direito de resposta. E, se eu fizer Karlman parecer um idiota, a culpa é dele.

— Certo, aja de acordo com as suas convicções.

— Para mim também é importante que você saiba que eu nada tive a ver com esse ataque infame.

— Acredito em você — disse Mikael.

— Além do mais, não vou discutir o assunto agora, mas isso remete à nossa conversa de antes. E importante que você volte à redação da Millennium para que possamos montar uma frente unida. Enquanto estiver ausente, os boatos vão continuar. Acredito na Millennium e estou convencido de que podemos vencer essa batalha juntos.

— Entendo seu ponto de vista, mas agora é a minha vez de discordar. Não posso romper meu contrato com Henrik e na verdade também não desejo rompê-lo. Gosto dele, você sabe. E essa história da Harriet...

— Sim?

—— Sei que é uma história penosa para você e sei que Henrik está obcecado há anos por ela.

— Cá entre nós, gosto de Henrik e ele é o meu mentor, mas, no que diz respeito a Harriet, essa obsessão virou uma ocupação de aposentado.

— Quando comecei esse trabalho, achei que seria uma perda de tempo. Mas o fato é que, contra todas as expectativas, encontramos novidades. Acho que estamos perto de uma descoberta e que talvez seja possível explicar o que aconteceu.

— Não quer me dizer o que foi que descobriu?

— De acordo com o contrato, não posso falar disso com ninguém sem o consentimento de Henrik.

Martin Vanger pôs a mão no queixo. Mikael viu dúvida nos olhos dele, mas por fim Martin se decidiu.

— Certo, nesse caso o melhor a fazer é resolver primeiro o mistério de Harriet. Darei todo o apoio que puder para que você termine o trabalho de forma satisfatória, o mais rápido possível, e em seguida retorne à Millennium.

— Que bom. Não tenho vontade de ser obrigado a lutar contra você também.

— Não será necessário. Tem meu inteiro apoio. Pode me procurar quando quiser, se tiver problemas. Pressionarei Birger para que não crie mais obstáculos. E tentarei acalmar Cecilia.

— Obrigado. Preciso fazer umas perguntas a ela, mas há um mês vem evitando minhas tentativas de conversa.

Martin Vanger sorriu.

— Talvez tenha outras coisas a acertar com ela. Mas não é da minha conta.

Despediram-se com um aperto de mão.


Lisbeth Salander havia escutado em silêncio a conversa entre Mikael e Martin Vanger. Assim que o industrial foi embora, ela pegou o Hedestads-Kuriren e leu o artigo. A seguir, largou o jornal sem fazer nenhum comentário.

Mikael não disse nada. Ele refletia. Gunnar Karlman nascera em 1942, portanto tinha vinte e quatro anos em 1966. Também era uma das pessoas presentes na ilha quando Harriet desapareceu.


Depois do café-da-manhã, Mikael incumbiu sua colaboradora de ler o inquérito policial. Fez uma triagem do material e lhe passou os arquivos que enfocavam o desaparecimento de Harriet. Passou-lhe também todas as fotos do acidente na ponte, bem como a longa síntese que escreveu com base nas investigações particulares de Henrik.

Depois Mikael foi à casa de Dirch Frode e o convenceu a redigir um contrato determinando a contratação de Lisbeth como colaboradora por um mês.

Ao voltar à casa dos convidados, encontrou Lisbeth no jardim, mergulhada no inquérito policial. Mikael entrou para esquentar o café e a espiou pela janela da cozinha. Ela parecia percorrer o inquérito superficialmente, não dedicando mais que dez ou quinze segundos a cada página. Folheava o documento de maneira automática. Mikael achou estranha essa negligência, ainda mais considerando a aplicação com que realizara sua própria investigação. Levou duas xícaras de café ao jardim e juntou-se a ela.

— O que você escreveu sobre o desaparecimento de Harriet foi escrito antes de perceber que estamos atrás de um assassino serial.

— Exato. Anotei o que me pareceu importante, perguntas que gostaria de fazer a Henrik Vanger et cetera. Como você deve ter percebido, está bem mal estruturado. Na verdade, até agora andei tateando no escuro, e ao mesmo tempo tentando escrever uma história, um capítulo da biografia de Henrik Vanger.

— E agora?

— No começo, todas as investigações estavam centradas em Hedebyön. Agora estou convencido de que a história começou mais cedo no mesmo dia, não na ilha, mas em Hedestad. Isso muda a perspectiva.

Lisbeth assentiu com a cabeça e refletiu por um momento.

— É fantástico o que descobriu com as fotos — ela disse.

Mikael levantou as sobrancelhas. Lisbeth Salander não parecia ser do tipo pródigo em elogios e Mikael sentiu-se estranhamente lisonjeado. Mas, do ponto de vista jornalístico, tratava-se mesmo de uma proeza bastante in-comum.

— Preciso de mais alguns detalhes. Conte o que descobriu sobre a fotografia que foi buscar em Norsjö.

— Está me dizendo que não viu essa foto no meu computador?

— Não tive tempo. Preferi me concentrar nos resumos, nas conclusões que tirou.

Mikael suspirou, abriu seu notebook e depois a pasta de fotos.

— A viagem a Norsjö foi ao mesmo tempo um avanço e uma decepção total. Encontrei a foto, mas ela não revela grande coisa. A tal Mildred Berggren conservou todas as suas fotos de viagem num álbum, e ali colou com cuidado toda a coleção. A foto que eu procurava estava lá, tirada com um filme colorido barato. Depois de trinta e sete anos, a cópia está bastante apagada e amarelada, mas Mildred também conservou os negativos numa caixa de sapatos. Ela me emprestou os de Hedestad e eu os escaneei. Aqui está o que Harriet viu.

Ele clicou num arquivo chamado harriet/bd-19.eps.

Lisbeth entendeu a decepção dele. Era uma foto em plano geral, bastante mal enquadrada, mostrando os palhaços no desfile da Festa das Crianças. Ao fundo via-se o canto da loja Sundström. Umas dez pessoas apareciam na calçada em frente à loja.

Mikael apontou com o dedo.

— Acho que foi este o sujeito que ela viu. Primeiro, porque tentei calcular o que ela via baseando-me no rosto dela e na direção para a qual ele estava voltado; fiz um desenho exato do local. Depois, porque ele é a única pessoa que parece olhar diretamente para a máquina fotográfica, ou seja, para Harriet.

Lisbeth viu uma figura imprecisa um pouco recuada atrás dos espectadores, na rua transversal. Vestia uma jaqueta escura com um tom diferente nos ombros, vermelho, e uma calça escura, provavelmente um jeans. Mikael ampliou a imagem para que a figura ocupasse toda a tela a partir da cintura. A imagem ficou ainda mais imprecisa.

— É um homem. Mede cerca de um metro e oitenta, corpulência normal. Cabelos castanho-claros, não muito curtos, sem barba. Mas é impossível distinguir as feições ou mesmo calcular a idade. Pode ser tanto um adolescente quanto um quinquagenário.

— Podemos retocar a foto...

— Já retoquei. Inclusive enviei uma cópia a Christer Malm da Millennium, que é um craque em tratamento de imagens. — Mikael clicou em outra foto. — O que vemos aqui é o que se pode obter de melhor. O problema é que a máquina fotográfica é muito ruim e a distância muito grande.

— Mostrou essa foto a alguém? As pessoas podem reconhecer a atitude...

— Mostrei a Dirch Frode. Ele não tem a menor idéia de quem possa ser.

— Dirch Frode não é o cara mais esperto de Hedestad.

— Mas é para ele e para Henrik que eu trabalho. Quero mostrar a foto a Henrik antes de fazê-la circular.

— Talvez seja apenas um simples espectador.

— É possível. Mas nesse caso ele soube provocar uma reação bem estranha em Harriet.


Na semana seguinte, Mikael e Lisbeth trabalharam no caso Harriet praticamente o tempo todo. Lisbeth continuou lendo o inquérito e fez uma série de perguntas às quais Mikael tentou responder. Só podia haver uma verdade e as respostas pouco claras, os dados equívocos os levavam a aprofundar a discussão. Passaram um dia inteiro verificando os horários das pessoas durante o acidente na ponte.

Lisbeth Salander deixava Mikael cada vez mais perplexo. Embora percorresse superficialmente os textos do inquérito, ela parecia deter-se nos detalhes mais obscuros e incompatíveis.

Eles faziam uma pausa à tarde, quando o calor os impedia de continuar no jardim. Várias vezes foram tomar banho no canal ou beber alguma coisa no Café Susanne. Susanne passou a olhar Mikael com uma frieza ostensiva. Ele se deu conta de que Lisbeth parecia mais jovem do que era e estava hospedada em sua casa, o que aos olhos de Susanne o transformava num velho safado que gosta de menininhas. Era desagradável.

Mikael continuava praticando jogging todos os fins de tarde. Lisbeth não fazia nenhum comentário sobre esses exercícios quando ele voltava ofegante para casa. Correr não era bem a idéia que ela fazia de um lazer de verão.

— Passei dos quarenta — disse Mikael. — Sou obrigado a fazer exercício para não engordar.

— Ah!

— Não pratica nenhuma atividade física?

— Um pouco de boxe de vez em quando.

— Boxe?

— Sim, sabe, com luvas.

Mikael foi tomar banho e tentou imaginar Lisbeth num ringue. Ela talvez estivesse zombando dele. Uma pergunta se impunha.

— Você boxeia em que categoria de peso?

— Em nenhuma. Sirvo de sparring para uns rapazes de um clube de boxe de Söder.

Por que será que eu não me surpreendo?, pensou Mikael. Mas ele constatou que, de qualquer modo, ela acabava de contar alguma coisa sobre si. Ele continuava sem nenhuma informação sobre ela; por que começara a trabalhar para Armanskij, qual era a sua formação ou o que faziam seus pais. Assim que Mikael tentava conversar sobre a vida privada dela, Lisbeth se fechava como uma ostra e respondia por monossílabos ou o ignorava totalmente.


Uma tarde, Lisbeth Salander depositou na mesa um arquivo e olhou para Mikael com uma ruga entre as sobrancelhas.

— O que sabe sobre Otto Falk? O pastor.

— Muito pouco. Encontrei o pastor atual, uma mulher, algumas vezes na igreja no começo do ano. Ela disse que Falk ainda está vivo, mas numa casa de saúde em Hedestad. Alzheimer.

— De onde ele é?

— Daqui, de Hedestad. Estudou em Uppsala e aos trinta anos retornou.

— Ele não era casado. E Harriet o via.

— Por que está perguntando isso?

— Apenas notei que o tira, esse Morell, foi bastante indulgente com ele nos interrogatórios.

— Nos anos 1960, os pastores ainda gozavam de um outro status social. Era natural que ele quisesse morar aqui na ilha, mais perto do poder, digamos assim.

— Fico me perguntando se os policiais realmente revistaram o presbitério. As fotos mostram que era uma grande construção de madeira; lá devia haver muitos lugares onde esconder um corpo por algum tempo.

— É verdade. Mas nada indica que ele tenha tido alguma ligação com assassinatos em série ou com o desaparecimento de Harriet.

— Você se engana — disse Lisbeth com um sorriso no canto dos lábios. — Em primeiro lugar, ele era um pastor, e os pastores, mais do que ninguém, possuem uma relação especial com a Bíblia. Em segundo, foi o último a ter visto Harriet e falado com ela.

— Mas ele foi correndo ao local do acidente e permaneceu ali várias horas. É visto em muitas fotos, sobretudo durante o lapso de tempo em que Harriet deve ter desaparecido.

— Pfff, posso desmontar esse álibi num instante! Mas eu estava pensando em outra coisa. Estamos diante de um matador de mulheres sádico.

— E?

— Eu fui... eu tive um tempo livre na primavera passada e pesquisei coisas sobre sádicos num contexto bem diferente. Um dos documentos que li era um manual do FBI americano que afirmava que um número impressionante de assassinos seriais capturados vêm de lares problemáticos e na infância se comprazem em torturar animais. Além disso, muitos serial killers americanos foram presos por incêndios criminosos.

— Sacrifício de animais e sacrifício pelo fogo, é isso que está querendo dizer?

— Sim. Os animais torturados e o fogo constam em vários casos registrados por Harriet. Mas eu pensava mais no presbitério, que foi incendiado no final dos anos 1970.

Mikael refletiu por um momento.

— É muito vago — disse por fim. Lisbeth balançou a cabeça.

— Concordo. Mas vale a pena anotar. Não encontrei nada no inquérito sobre a causa do incêndio e gostaria muito de saber se houve outros incêndios misteriosos nos anos 1960. Seria interessante também descobrirmos sobre se houve casos de crueldade com animais ou amputações de animais nessa época, na região.


Quando Lisbeth foi se deitar na sétima noite em Hedeby, ela estava um pouco irritada com Mikael Blomkvist. Durante uma semana, estivera praticamente todos os minutos do dia com ele, quando em geral sete minutos na companhia de qualquer pessoa bastavam para fazê-la ter dor de cabeça.

Fazia tempo ela constatara que as relações sociais não eram o seu forte e se preparara para uma vida solitária. Sentia-se perfeitamente satisfeita quando as pessoas a deixavam em paz. Mas as pessoas não eram muito perspicazes e compreensivas, o que sempre a obrigava a prevenir-se contra autoridades sociais, autoridades de proteção da infância e da comissão de tutelas, contra o fisco, contra a polícia, curadores, psicólogos, psiquiatras, professores e seguranças que nunca queriam deixá-la entrar nas boates, embora já tivesse vinte e cinco anos (com exceção dos seguranças da Moulin, que a conheciam). Havia todo um exército de gente que parecia não ter mais o que fazer a não ser tentar comandar a sua vida e, se possível, mudar o modo como ela escolhera viver.

Aprendera muito cedo que não adiantava nada chorar. Também aprendera que, sempre que tentou alertar alguém para alguma coisa de sua vida, a situação só piorava. Portanto, ela mesma é que devia resolver seus problemas com os métodos que julgasse necessários. Atitude que o dr. Nils Bjurman pagou caro para descobrir.

Mikael Blomkvist tinha a mesma tendência irritante de todos os outros de fuçar sua vida privada e de fazer perguntas que ela não queria responder. Só que ele não reagia como a maioria dos homens que ela conheceu.

Quando ela ignorava as perguntas, ele se contentava em encolher os ombros, desistia do assunto e a deixava tranquila. Surpreendente.

A prioridade de Lisbeth, quando conseguiu se apoderar do notebook dele em seu primeiro dia na casa, era evidentemente transferir todos os dados para o seu próprio computador. Desse modo, seria menos ruim se ele a despedisse; ela continuaria tendo acesso ao material.

Mas em seguida ela o provocou de propósito, lendo ostensivamente os documentos do notebook dele. Esperava que ele fosse ficar furioso. No entanto ele pareceu resignado, resmungou alguma coisa levemente sarcástica e foi tomar um banho, só voltando a abordar o assunto mais tarde. Cara estranho. Ela quase concluiu que ele confiava nela.

Mas o fato de ele estar a par de seus talentos como hacker era grave. Lisbeth Salander sabia muito bem que o termo jurídico aplicado ao tipo de pirataria que ela praticava, profissionalmente e por conta própria, era intrusão informática ilegal, que lhe podia valer até dois anos de prisão. Era um ponto sensível: ela não queria ser presa porque uma pena de prisão significaria que muito provavelmente lhe confiscariam o computador, única ocupação na qual se distinguia. Nunca pensou em contar a Dragan Armanskij ou a quem quer que fosse como obtinha as informações que eles compravam.

Com exceção de Praga e de algumas poucas pessoas conectadas que, como ela, se dedicavam profissionalmente à pirataria — e quase todas só a conheciam pelo codinome Wasp, ninguém sabia quem ela era nem onde morava —, somente Super-Blomkvist descobrira seu segredo. E a tinha desmascarado porque ela cometeu um erro que mesmo iniciantes com poucos anos no ramo não cometem, o que provava que seu cérebro andava falhando e que merecia ser castigada. Mas ele não ficou furioso nem ameaçou processá-la; em vez disso a contratou.

Assim, ela estava ligeiramente irritada com ele.

Um pouco antes de ela se retirar para o quarto, tinham acabado de comer um sanduíche quando ele perguntou, de repente, se ela era uma boa hacker. E ela respondera com naturalidade:

— Sou provavelmente a melhor da Suécia. Há talvez uns dois ou três do meu nível.

Não hesitou nem um pouco sobre a veracidade de sua resposta. Numa certa época, Praga fora melhor que ela, mas fazia muito tempo que o superara.

No entanto Lisbeth espantou-se consigo mesma por pronunciar essas palavras. Nunca fizera isso. Nem tinha um interlocutor para esse tipo de conversa, e de repente saboreou o fato de ele parecer impressionado com seus conhecimentos. Mas ele estragou tudo ao levantar a questão problemática: como ela aprendera a pirataria.

Ela não sabia o que responder. Eu sempre soube. Preferiu ir se deitar sem dizer boa-noite.

Para irritá-la ainda mais, Mikael não pareceu reagir quando ela virou as costas. De sua cama, ela o escutou mexer-se na cozinha, limpar a mesa e lavar a louça. Ele sempre ficava de pé mais tempo que ela, mas agora estava claramente indo se deitar. Ela o ouviu no banheiro, o ouviu entrar no quarto e fechar a porta.. Um momento depois, ouviu o rangido da cama quando ele se deitou, a cinquenta centímetros dela, do outro lado da parede.

Durante a semana que passou na casa dele, ele não tentou abordá-la sexualmente. Trabalhou com ela, pediu sua opinião, criticou-a quando raciocinava errado e apreciou suas objeções quando ela o corrigia. Tratou-a, nem mais nem menos, como um ser humano.

De repente, ela percebeu que gostava da companhia de Mikael Blomkvist e que até mesmo confiava nele. Nunca confiara em ninguém, com exceção de Holger Palmgren. Mas por razões bem diferentes. Palmgren fora uma boa alma previsível.

Levantou-se, foi até a janela e ficou olhando, nervosa, a escuridão lá fora. O que mais a paralisava era mostrar-se nua diante de alguém pela primeira vez. Estava convencida de que seu corpo raquítico era repulsivo. Os seios, patéticos. Não tinha quadris que merecessem esse nome. A seus próprios olhos, não tinha grande coisa a oferecer. No entanto, era uma mulher perfeitamente normal, com os mesmos desejos e pulsões sexuais que as outras. Refletiu durante cerca de vinte minutos antes de se decidir.


Mikael estava deitado e lia um romance de Sara Paretsky quando ouviu a maçaneta da porta girar e viu Lisbeth Salander aparecer. Estava envolvida num lençol e se mantinha no vão da porta sem dizer nada, como se refletisse.

— Algum problema? — perguntou Mikael. Ela fez que não com a cabeça.

— O que você quer?

Ela se aproximou dele, pegou seu livro e o pôs na mesa-de-cabeceira. Depois se curvou para a frente e o beijou na boca. As intenções dela não podiam ser mais claras. Sentou-se na cama e ficou olhando-o de um jeito perscrutador. Pôs uma mão sobre o lençol acima do ventre dele. Como ele não protestasse, ela se inclinou e mordiscou um de seus mamilos.

Mikael Blomkvist estava totalmente perplexo, mas não indiferente. Depois de alguns segundos, pegou-a pelos ombros e afastou-a um pouco para poder ver seu rosto.

— Lisbeth... não sei se é uma boa idéia. Devemos trabalhar juntos.

— Quero fazer sexo com você. E não vejo problema algum em trabalharmos juntos; ao contrário, terei um problema sério se me mandar embora.

— Mas nem nos conhecemos direito.

Ela riu, um riso abrupto que mais parecia uma tosse.

— Quando fiz minha investigação sobre você, percebi que nunca teve esse tipo de problema. Ao contrário, você é daqueles que têm dificuldade de ficar longe das mulheres. Que está havendo? Não pareço bastante sexy?

Mikael balançou a cabeça e tentou encontrar algo inteligente para dizer. Como ele não respondeu, ela afastou o lençol e sentou-se de pernas abertas sobre ele.

— Não tenho preservativos — disse Mikael.

— Não faz mal.

Quando Mikael despertou, Lisbeth já estava de pé. Ouviu-a mexendo nas louças da cozinha. Eram quase sete da manhã. Ele dormira apenas duas horas e continuou de olhos fechados.

Não conseguia entender Lisbeth Salander. Em nenhum momento ela havia insinuado, nem mesmo através de um olhar, que estivesse interessada nele.

— Bom dia — disse Lisbeth à porta. Ela sorria. Um pouco, é verdade.

— Oi — disse Mikael.

— Não temos mais leite. Vou até o supermercado. Eles abrem às sete. E afastou-se tão depressa que Mikael nem teve tempo de responder. Ele a ouviu calçar-se, pegar a mochila, o capacete da moto e sair pela porta da frente. Ele fechou os olhos. Depois ouviu a porta ser aberta de novo e em alguns segundos ela reapareceu. Desta vez não sorria mais.

— Venha, você precisa ver uma coisa — disse com uma voz estranha. Mikael saltou imediatamente da cama e enfiou a calça. Durante a noite alguém viera lhe trazer um presente indesejado. No terraço da entrada, jazia o cadáver semicarbonizado de um gato esquartejado. As patas e a cabeça haviam sido cortadas, o ventre aberto e as entranhas removidas; os restos do gato estavam ao lado do cadáver, que parecia ter sido posto no fogo. A cabeça estava intacta e fora colocada em cima do assento da moto de Lisbeth. Mikael reconheceu a pelagem ruiva.


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