26 - QUARTA-FEIRA 6 DE ABRIL
O inspetor criminal Jan Bublanski estava de péssimo humor quando se encontrou com Sonja Modig no estacionamento do hospital de Söder, pouco antes das sete da manhã. Tinha sido acordado pelo telefonema de Mikael Blomkvist. Depois de alguns instantes, compreendera que algo dramático tinha acontecido durante a noite e, por sua vez, tinha ligado e acordado Modig. Encontraram Mikael no hall e foram juntos até o quarto de Paolo Roberto.
Bublanski estava custando a assimilar todos os detalhes, mas acabou por entender que Miriam Wu tinha sido raptada e Paolo Roberto tinha dado uma surra no raptor. Isto posto, ao olhar mais de perto para o ex-boxeador profissional, não ficava claro quem tinha dado uma surra em quem. No que dizia respeito a Bublanski, os acontecimentos da noite tinham alçado a investigação sobre Lisbeth Salander a um novo patamar de complicação. Nada, na porra daquele caso, parecia normal.
Sonja Modig fez a primeira pergunta pertinente, querendo saber como Paolo Roberto tinha entrado na trama.
—Eu sou amigo de Lisbeth Salander. Bublanski e Modig trocaram um olhar cético.
—E o senhor a conhece de onde?
—Salander era minha sparring-partner nos treinos.
Bublanski fixou os olhos num ponto da parede atrás de Paolo Roberto. Sonja Modig caiu numa risada repentina e inconveniente. Ou seja, nada nesse caso parecia normal, simples e descomplicado. Mesmo assim, tinham aos poucos tomado nota de todos os fatos.
—Agora eu gostaria de fazer umas observações - disse Mikael Blomkvist,
seco.
Todos olharam para ele.
—Primeiro. A descrição do homem ao volante da caminhonete corresponde à descrição que eu fiz da pessoa que agrediu Lisbeth Salander, exatamente no mesmo local, na Lundagatan. Um cara alto e loiro, com rabo de cavalo e um barrigão. Certo?
Bublanski meneou a cabeça.
—Segundo. O objetivo desse rapto era obrigar Miriam Wu a revelar o esconderijo de Lisbeth Salander. Logo, os dois bonitões loiros estão atrás da Salander desde pelo menos uma semana antes dos assassinatos. Entendido?
Modig fez que sim com a cabeça.
—Terceiro. Se existem outros personagens nesta história, Lisbeth Salander não é mais a “demente solitária” que quiseram pintar.
Nem Bublanski nem Modig retrucaram.
—Vai ficar difícil argumentar que o cara de rabo de cavalo é membro de um grupo de lésbicas satânicas.
Modig esboçou um sorriso.
—E quarto, para concluir. Acho que esta história tem alguma coisa a ver com um sujeito chamado Zala. O Dag Svensson estava se concentrando nele nas duas últimas semanas. Todas as informações estão no computador dele. O Dag Svensson associava o tal Zala ao assassinato, em Södertálje, de uma prostituta chamada Irina Petrova. A autópsia revelou que ela sofreu violências graves. Tão graves que pelo menos três ferimentos foram mortais. 0 relatório da autópsia é vago no que toca ao instrumento utilizado para matá-la, mas os ferimentos são surpreendentemente parecidos com a violência sofrida pela Miriam Wu e o Paolo. O instrumento, no caso, poderia ser as mãos de um gigante loiro.
—E o Bjurman? - perguntou Bublanski. —Até aceito que alguém pudesse ter um motivo para silenciar o Dag Svensson. Mas quem poderia ter um motivo para eliminar o tutor de Lisbeth Salander?
—Não sei. As peças do quebra-cabeça não estão todas no lugar, mas em algum ponto existe um elo entre o Bjurman e o Zala. É a única explicação plausível. O que vocês acham de começar a desenvolver outro raciocínio? Se a Lisbeth Salander não for culpada, isso significa que outra pessoa cometeu os assassinatos. Acho que esses crimes têm alguma coisa a ver com o comércio do sexo. E a Salander preferiria morrer a se envolver numa coisa desse tipo. Eu já disse, ela é de uma moralidade inabalável.
—Neste caso, qual seria o papel dela?
—Não sei. Testemunha? Adversária? Ela talvez tenha aparecido em Enskede para avisar o Dag e a Mia que a vida deles corria perigo. Não esqueçam que ela é uma investigadora excepcional.
Bublanski pôs a engrenagem para funcionar. Ligou para a polícia de Södertálje e passou o itinerário fornecido por Paolo Roberto, pedindo que achassem um armazém desativado a sudeste do lago Yngern. Depois, ligou para o inspetor Jerker Holmberg - que morava em Flemingsberg e era quem estava mais próximo, portanto, de Södertálje - pedindo que fosse, mais depressa que um raio, se encontrar com a polícia de Södertálje para assisti-los no exame do local.
Jerker Holmberg ligou uma hora mais tarde. Acabava de chegar ao local. A polícia de Södertálje localizara sem dificuldades o armazém. Ele acabava de se incendiar totalmente, com mais dois galpões existentes no mesmo terreno, e os bombeiros estavam apagando o que sobrara do fogo. Não havia dúvida de que fora um incêndio criminoso - dois galões de gasolina tinham sido encontrados nos escombros.
Bublanski sentiu uma frustração muito próxima da fúria.
Que baderna era aquela? Quem era esse gigante loiro? Quem era de fato Lisbeth Salander? E por que era tão impossível encontrá-la?
A situação não ficou nada melhor quando o procurador Richard Ekström veio participar da reunião das nove horas. Bublanski fez um relatório dos trágicos acontecimentos daquela noite. Sugeriu que se dessem outras prioridades à investigação, já que alguns fatos misteriosos tinham vindo complicar o roteiro que servia de base aos trabalhos.
O relato de Paolo Roberto só veio reforçar a história da agressão de Lisbeth Salander na Lundagatan. Com isso, perdia força a hipótese de que os assassinatos eram um ato de loucura cometido por uma mulher sozinha e doente mental. Isso não significava que Lisbeth Salander estivesse livre das suspeitas que pesavam sobre ela - para tanto, precisavam primeiro encontrar uma explicação plausível para as suas digitais na arma do crime -, mas significava que a investigação agora tinha de se concentrar seriamente na possibilidade de um outro culpado. Nesse caso, só existia uma hipótese por enquanto: a teoria de Mikael Blomkvist segundo a qual os homicídios tinham relação com as iminentes revelações de Dag Svensson sobre o comércio sexual. Bublanski apresentou três pontos fundamentais.
A tarefa mais importante no momento consistia em identificar o homem alto e loiro e seu cúmplice de rabo de cavalo, que tinham raptado e torturado Miriam Wu. O homem alto e loiro tinha um aspecto físico tão peculiar que não deveria ser difícil encontrá-lo.
Curt Bolinder observou, com pertinência, que Lisbeth Salander também tinha um aspecto físico peculiar e que depois de três semanas de buscas a polícia ainda ignorava totalmente seu paradeiro.
A segunda tarefa implicava em a direção das investigações ter de destacar um grupo para se concentrar ativamente na suposta lista de clientes sexuais existente no computador de Dag Svensson. Havia nisso um problema logístico. Sem dúvida, o grupo de investigação estava de posse do computador da Millennium utilizado por Dag Svensson, e dos backups em discos ZIP do lap-top desaparecido, mas eles continham pesquisas acumuladas em vários anos, eram literalmente milhares de páginas que eles levariam um tempo enorme para catalogar e entender. O grupo precisava de um reforço, e Bublanski imediatamente designou Sonja Modig para dirigir as operações.
A terceira tarefa consistia em focalizar uma pessoa desconhecida chamada Zala. Para tanto, a equipe pediria ajuda ao grupo especial de investigação sobre o crime organizado, que avisara já ter topado com esse nome em várias oportunidades. A tarefa foi confiada a Hans Faste.
Por fim, Curt Bolinder coordenaria o prosseguimento das buscas a Lisbeth Salander.
O relatório de Bublanski durou apenas seis minutos, mas desencadeou uma discussão de uma hora. Hans Faste estava irredutível em sua resistência a Bublanski, e não procurou disfarçar. Isso muito surpreendeu Bublanski, que decerto nunca gostara de Faste mas sempre o tivera como um policia] competente.
Hans Faste julgava que a investigação devia se concentrar em Lisbeth Salander, pouco importando todas aquelas informações secundárias. Segundo ele, o conjunto de indícios contra Salander era tão claro que no momento seria um absurdo se meter a buscar culpados alternativos.
—Quero dizer, isso tudo é puro blablablá. Temos um caso psiquiátrico que só veio se confirmando ano após ano. Você acha realmente que todos os relatórios do hospital psiquiátrico e do médico legista são pura brincadeira? Ela está ligada ao local do crime. Temos provas de que roda bolsinha e tem uma quantia alta de dinheiro não declarado na conta bancária.
—Estou ciente disso.
—Ela participa de uma espécie de culto lésbico do sexo. E ponho a mão no fogo como essa outra sapatão, a Cilla Norén, sabe mais do que está dizendo.
Bublanski elevou a voz.
—Faste. Pare com isso. Você está completamente obcecado pela perspectiva gay. Não está sendo profissional.
Lamentou imediatamente ter se pronunciado diante do grupo em vez de conversar a sós com Faste. O procurador Ekström interrompeu a discussão. Parecia indeciso sobre o rumo a ser tomado. Por fim, declarou que a linha de Bublanski era válida; passar por cima dele eqüivaleria a afastá-lo do comando da investigação.
—Vamos fazer o que o Bublanski decidiu.
Bublanski deu uma olhada para Steve Bohman e Niklas Eriksson, da Milton Security.
—Pelo que entendi, vocês só estão disponíveis por mais três dias, temos que aproveitar. Bohman, você vai ajudar o Curt Bolinder na busca de Lisbeth Salander. Eriksson, você continua com a Modig.
Ekström refletiu um instante e levantou a mão quando todo mundo estava prestes a sair.
—Outra coisa. Essa história do Paolo Roberto fica entre nós. A mídia vai ficar histérica se entrar outra celebridade na investigação. Portanto, nenhuma palavra sobre isso fora desta sala.
Sonja Modig foi ter com Bublanski logo depois da reunião.
—Perdi a paciência com o Faste. Não foi muito profissional da minha parte - disse Bublanski.
—Eu sei como é - ela sorriu. —Comecei a trabalhar no computador do Svensson na segunda-feira.
—Eu sei. Em que pé estão as coisas?
—Há lá uma dúzia de versões do manuscrito dele, uma quantidade enorme de documentos de pesquisa, e está difícil decidir o que é importante e o que não tem nenhum interesse. Vou precisar de dias e dias só para abrir e percorrer todos os arquivos.
—Niklas Eriksson?
Sonja Modig hesitou. Então se virou e fechou a porta da sala de Bublanski.
—Não quero jogar o cara na lama, mas francamente ele não tem sido muito útil.
Bublanski franziu o cenho.
—Diga lá.
—Não sei. Ele não é um policial de verdade, como o Bohman já foi. Fala um monte de bobagem, demonstra mais ou menos a mesma postura que o Hans Faste em relação a Miriam Wu, e a missão não parece ter grande interesse para ele. Não consigo perceber o que é, mas está na cara que ele tem algum problema com a Lisbeth Salander.
—Ou seja?
—Tenho a sensação de que algo podre está fermentando em algum lugar.
Bublanski meneou a cabeça devagar.
—Sinto muito. O Bohman é legal, mas, para ser sincero, não gosto de ter pessoas de fora na investigação.
Sonja Modig meneou a cabeça.
—Então, o que a gente faz?
—Você vai ter que aguentar até o final da semana. O Armanskij já disse que eles vão parar se não houver nenhum resultado. Vá lá, comece a pesquisar e conforme-se em fazer tudo sozinha.
Sonja Modig interrompeu sua pesquisa quarenta e cinco minutos depois de começar, quando foi afastada da investigação. Foi repentinamente convocada à sala do procurador Ekström, onde Bublanski já se encontrava. Os dois homens estavam vermelhos. O jornalista freelancer Tony Scala acabava de publicar o furo de que Paolo Roberto tinha livrado a sapatona sadomasô Miriam Wu de um sequestrador. O texto continha vários detalhes que nenhuma pessoa alheia à investigação poderia conhecer. Insinuava que a polícia considerava a possibilidade de indiciar Roberto por golpes e ferimentos agravados.
Ekström já havia recebido vários telefonemas de jornalistas pedindo esclarecimentos sobre o papel do boxeador. Estava a ponto de surtar quando acusou Sonja Modig de ser a responsável pelo vazamento. Modig rechaçou prontamente a acusação, mas foi inútil. Ekström fazia questão de afastá-la da investigação. Bublanski estava furioso. Sem nenhuma hesitação, tomou o partido de Modig.
—A Sonja está dizendo que não foi ela que deixou vazar. Para mim é o suficiente. É loucura afastar uma investigadora experiente, que já está perfeitamente por dentro do caso.
Ekström retrucou com escancarada desconfiança em relação à Sonja Modig. Por fim, sentou-se à sua mesa e fechou-se num mutismo irredutível. Não houve como fazê-lo mudar de idéia.
—Modig, não posso provar que você é a responsável pelos vazamentos, mas não tenho a menor confiança em você nesta investigação. A partir deste momento considere-se afastada. Tire uns dias de folga até o final da semana. Na segunda-feira, vai ser encaminhada para outra missão.
Modig não tinha escolha. Meneou a cabeça e dirigiu-se para a porta. Bublanski a deteve.
—Sonja. Quero afirmar alto e bom som: não acredito um segundo sequer nesta acusação, e você tem toda a minha confiança. Mas não sou eu quem decide. Passe na minha sala antes de ir para casa.
Ela assentiu com a cabeça. Ekström parecia furioso. A fisionomia de Bublanski adquirira uma coloração preocupante.
* * *
Sonja Modig voltou para sua sala, onde ela e Niklas Eriksson estavam trabalhando no computador de Dag Svensson. Sentia-se furiosa e prestes a cair no choro. Eriksson olhou-a dissimuladamente, notou que algo não estava bem, mas não disse nada e ela o ignorou. Sentou-se à sua mesa e ficou olhando para a frente. Um silêncio pesado tomou conta da sala.
Por fim, Eriksson se desculpou e disse que precisava ir ao banheiro. Perguntou se queria que ele lhe trouxesse um café. Ela balançou a cabeça.
Depois que ele saiu, ela se levantou, vestiu a jaqueta, pegou a bolsa e foi até a sala de Bublanski. Ele lhe indicou a cadeira dos visitantes.
—Sonja, eu não vou largar essa história de mão, a menos que o Ekström me afaste da investigação também. Não aceito o que está acontecendo e pretendo ir até o fim. Por enquanto você fica, por ordem minha. Entendeu?
Ela meneou a cabeça.
—Não vai ficar o resto da semana em casa como o Ekström mandou. Eu lhe ordeno que vá à redação da Millennium e converse mais uma vez com o Mikael Blomkvist. Depois, peça simplesmente para ele guiar você pelo disco rígido do Dag Svensson. Eles têm uma cópia lá na Millennium. A gente vai ganhar muito tempo se tiver alguém que já conheça o material e possa eliminar os dados desimportantes.
Sonja Modig respirava um pouco melhor.
—Eu não falei nada para o Niklas Eriksson.
—Eu cuido disso. Ele vai ficar com o Curt Bolinder. Você viu o Hans Faste, por acaso?
—Não. Ele saiu de manhã, logo depois da reunião. Bublanski suspirou.
Mikael Blomkvist deixara o hospital de Söder por volta das oito horas e voltara para casa. Percebeu que nem de longe preenchera sua cota de sono e era absolutamente necessário que estivesse em boa forma para a entrevista daquela tarde com Gunnar Björck em Smâdalaro. Despiu-se e pôs o despertador para tocar às dez e meia, o que lhe deu duas horas de um sono bem merecido. Ao acordar, tomou um banho, fez a barba e vestiu uma camisa limpa antes de sair. Acabava de passar pela praça de Gullmarsplan, quando Sonja Modig ligou para o seu celular. Mikael respondeu que tinha um compromisso e não podia vê-la de jeito nenhum. Ela explicou o que queria e ele a encaminhou para Erika Berger.
Sonja Modig foi até a redação da Millennium. Observou Erika Berger e concluiu que gostava daquela mulher assertiva e segura de si, com suas covinhas e sua franja loira curta. Erika lembrava um pouco uma Laura Palmer com mais idade. Perguntou-se, saindo um pouco do assunto, se Berger também era lésbica, já que, segundo Hans Faste, todas as mulheres desta investigação pareciam ter esta orientação sexual, depois lembrou de ter lido em algum lugar que ela era casada com o artista Lars Beckman. Erika escutou seu pedido de ajuda para percorrer o conteúdo do disco rígido de Dag Svensson. Pareceu incomodada.
—Só tem um problema - disse Erika Berger.
—Diga - disse Sonja Modig.
—Não que a gente não queira que os assassinatos sejam esclarecidos, ou não queira colaborar com a polícia. Aliás, vocês já estão com todo o material do computador do Dag Svensson. O problema é um dilema ético. Mídia com polícia não dá um bom casamento.
—Acredite. Pude entender isso muito bem hoje de manhã - Sonja Modig sorriu.
—Como assim?
—Nada. Foi só uma observação.
—Certo. Para manter sua credibilidade, a imprensa deve observar uma distância bem clara em relação às autoridades. Os jornalistas que andam pelas delegacias colaborando nas investigações policiais acabam virando lacaios da polícia.
—Já cruzei com alguns tipos assim - disse Modig. —Se entendi bem, a recíproca também é verdadeira. Policiais que viram lacaios de alguns jornais.
Erika Berger riu.
—É verdade. Infelizmente, devo informar que aqui na Millennium a gente simplesmente não tem recursos para praticar este tipo de jornalismo interesseiro. Não estamos falando de um interrogatório dos colaboradores da Millennium - a gente acataria sem discutir - e sim de um pedido formal para que a Millennium colabore ativamente na investigação colocando à disposição seu material jornalístico. Sonja Modig meneou a cabeça.
—Existem dois aspectos. Primeiro, trata-se do assassinato de um colaborador desta revista. Por esse prisma, é evidente que vamos fornecer toda a ajuda que vocês pedirem. Mas o outro aspecto é que existem coisas que não podemos entregar à polícia. Falo das nossas fontes.
—Eu sei ser flexível. Posso me comprometer a proteger as fontes de vocês. Aliás, elas não me interessam.
—Não se trata das suas boas intenções e nem da confiança que temos em você. Trata-se do fato de que nunca se revela uma fonte, qualquer que seja a circunstância.
—Certo.
—E também existe o fato de que, aqui na Millennium, estamos fazendo nossa própria investigação sobre os assassinatos, o que deve ser encarado como um trabalho jornalístico. Estou pronta a fornecer informações à polícia quando tivermos algo para publicar. Mas não antes.
Erika Berger franziu a testa e refletiu. Por fim, meneou a cabeça, pensativa, e prosseguiu.
—Mas eu também tenho que conseguir me olhar no espelho. Vamos fazer assim... Você vai trabalhar com a nossa colaboradora Malu Eriksson. Ela conhece muito bem o material e tem a competência necessária para definir os limites. Ela fica encarregada de guiar você pelo livro do Dag Svensson, do qual você já tem uma cópia. O objetivo será estabelecer um inventário compreensível das pessoas que podemos considerar suspeitos em potencial.
Irene Nesser desconhecia o drama que se desenrolara naquela noite quando pegou o trem de subúrbio de Sõdra Station para Södertálje. Vestia uma jaqueta de couro semilonga, calças escuras e um pulôver vermelho bem-cuidado. Usava óculos, erguidos sobre a cabeça.
Em Södertálje, achou o ônibus para Strángnãs e comprou uma passagem para Stallarholmen. Desceu ao sul de Stallarholmen pouco depois das onze da manhã. Estava num ponto de ônibus e dali não avistava nenhuma habitação. Visualizou mentalmente o mapa. O lago Mãlaren ficava poucos quilômetros a nordeste, e pelo campo se espalhavam várias casas de veraneio, mas também algumas habitadas o ano inteiro. A propriedade do Dr. Nils Bjurman situava-se numa zona de casas de veraneio, a cerca de três quilômetros do ponto do ônibus. Tomou um gole de água da garrafa plástica e se pôs a caminho. Chegou quarenta e cinco minutos depois.
Primeiro deu uma volta pelo lugar, só para ter uma idéia da vizinhança. À direita, a casa mais próxima ficava a mais de cento e cinquenta metros. Não havia ninguém. À esquerda, estendia-se um fosso comprido. Passou mais duas casas antes de chegar a uma aldeiazinha de veraneio, onde o único sinal de presença humana era uma janela aberta e o som de um rádio. Mas isso era a trezentos metros da casa de Bjurman. Poderia trabalhar com relativa tranqüilidade.
Tinha trazido as chaves encontradas no apartamento de Bjurman e não teve dificuldade para entrar. Sua primeira providência foi abrir uma veneziana nos fundos, o que lhe oferecia uma saída de emergência em caso de problema pela frente. O problema que ela imaginava era algum tira de repente ter a idéia de visitar a casa.
A casa de Bjurman era uma construção antiga e pequena que comportava uma sala, um quarto e uma cozinha integrada com água corrente. A toalete ficava nos fundos do jardim. Lisbeth passou vinte minutos vasculhando armários, roupeiros e cômodas. Não achou nenhum pedaço de papel relacionado com Lisbeth Salander ou Zala.
Por fim, saiu para o jardim e examinou a toalete e um depósito de lenha. Não havia nada interessante e nenhum documento. Tinha feito aquela viagem por nada.
Sentou-se nos degraus da entrada, tomou água e comeu uma maçã.
Quando passou pelo hall para fechar a veneziana, seu olhar topou com uma escada de alumínio. Voltou para a sala e examinou o teto de lambri. O alçapão do sótão, entre duas vigas, era praticamente invisível. Foi buscar a escada, abriu o alçapão e deparou de imediato com cinco arquivos A4.
O gigante loiro estava aborrecido. As coisas tinham dado errado e ocorrera uma sucessão de catástrofes.
Sandström tinha entrado em contato com os irmãos Ranta. Apavorado, contara que Dag Svensson estava preparando uma reportagem revelando as histórias de puta dele e denunciando os irmãos Ranta. Até aí, o problema não era tão grande. A imprensa denunciar Sandström não afetava o gigante loiro, e os irmãos Ranta poderiam ficar na moita por uns tempos. Eles então cruzaram o Mar Báltico a bordo do Baltic Star para tirar umas férias. Havia pouca chance de essas bobagens acabarem no tribunal, mas, se acontecesse o pior, eles saberiam se virar. Estava estipulado no contrato.
Em compensação, Lisbeth Salander tinha conseguido escapar de Magge Lundin. Não dava para entender, já que a Salander era do tamanho de uma boneca se comparada a Lundin, e a missão dele se limitava a enfiá-la num carro e levá-la até o armazém ao sul de Nykvarn.
Depois, Sandström recebera outra visita, e desta vez Dag Svensson estava na pista de Zala. Isso mudava completamente a situação. Entre o pânico de Bjurman e a bisbilhotice de Dag Svensson, criara-se uma situação potencialmente perigosa.
Um amador é um gângster que não está preparado para assumir as conseqüências. Bjurman era um completo amador. O gigante loiro desaconselhara Zala a ter qualquer tipo de negócio com Bjurman. Mas, para Zala, o nome de Lisbeth Salander era irresistível. Ele odiava Salander. Era algo absolutamente irracional. Agira por impulso.
Tinha sido puro acaso o gigante loiro estar na casa de Bjurman na noite em que Dag Svensson ligou. O mesmo jornalista escroto que já tinha criado problema com Sandström e os irmãos Ranta. O gigante tinha ido até lá para acalmar o advogado, ou ameaçá-lo se necessário, por causa do rapto falhado de Lisbeth Salander, e o telefonema de Svensson deixara Bjurman num pânico tremendo. Ele se mostrara tapado e irredutível. E de repente quis cair fora.
Para completar, Bjurman foi buscar aquele revólver de caubói dele para ameaçá-lo. O gigante loiro encarou Bjurman, pasmo, e arrancou-lhe a arma. Estava de luvas e não corria o risco de deixar impressões digitais. Na verdade, não tivera escolha, uma vez que Bjurman começara a amarelar.
Bjurman sabia da existência de Zala. E nesse sentido representava um fardo. O gigante loiro não saberia explicar por que tinha obrigado Bjurman a tirar a roupa, a não ser pelo fato de querer deixar bem claro o quanto o detestava. Quase fraquejou ao ver a tatuagem em sua barriga:
SOU UM PORCO SÁDICO, UM CANALHA ESTUPRADOR.
Por um breve instante, quase sentiu pena de Bjurman. Era um idiota completo. Mas o gigante loiro atuava num ramo em que não podia permitir que tais sentimentos secundários viessem perturbar as atividades práticas. Levara-o, portanto, até o quarto, obrigara-o a se ajoelhar e então usara um travesseiro como silenciador.
Ficara cinco minutos vasculhando o apartamento de Bjurman, vendo se havia algo que pudesse ser um elo com Zala. A única coisa que encontrou foi o número de seu próprio celular. Por precaução, pegara o celular de Bjurman.
Dag Svensson era o problema seguinte. Quando encontrassem Bjurman morto, Dag Svensson obviamente iria ligar para a polícia. Poderia contar que Bjurman fora assassinado poucos minutos depois de eles terem falado ao telefone a respeito de Zala. Não era preciso muita imaginação para ver que aquilo transformaria Zala em objeto de amplas especulações.
O gigante loiro se considerava um cara esperto, mas tinha um respeito enorme pelo temível talento estratégico de Zala.
Eles trabalhavam em colaboração havia quase doze anos. Tinha sido uma década frutífera, e o gigante loiro via Zala com respeito, quase como um mentor. Podia ficar horas escutando Zala discorrer sobre a natureza humana e suas fraquezas, e como tirar vantagem delas.
De repente, porém, os negócios tinham dado para balançar. As coisas estavam começando a sair errado.
Fora direto da casa de Bjurman para Enskede e estacionara o Volvo branco duas quadras adiante. Por sorte, a porta do hall não estava bem fechada. Subira e tocara a campainha da porta identificada como Svensson-Bergman.
Não tivera tempo de vasculhar o apartamento nem de pegar documentos. Dera dois tiros - havia também uma mulher no apartamento. Depois, pegou o computador de Dag Svensson na mesa da sala, deu meia-volta, desceu a escada, foi até o carro e saiu de Enskede. Seu único furo tinha sido deixar cair o revólver na escada enquanto tentava pegar a chave do carro ao mesmo tempo que equilibrava o computador, tudo para ganhar tempo. Detivera-se por um décimo de segundo, mas o revólver tinha rolado pela escada do porão e ele achou que ia demorar muito se tentasse recuperá-lo. Sabia muito bem que as pessoas se lembravam dele depois de vê-lo uma vez, e o mais importante era sumir dali antes que alguém o visse.
O revólver perdido lhe valera uma reprimenda de Zala. Mas ambos tiveram a maior surpresa da vida quando a polícia se lançou atrás de Lisbeth Salander. A arma transformara-se assim num feliz e inacreditável acaso.
Infelizmente, ela criava também mais um problema. Salander era o único elo frágil que restava. Conhecia Bjurman e conhecia Zala. Sabia somar dois mais dois. Zala e ele concordaram quando discutiram o assunto. Precisavam encontrar Salander e enterrá-la em algum lugar. Seria perfeito se nunca a encontrassem. A investigação dos assassinatos iria aos poucos para os arquivos e se cobriria de poeira.
Tinham apostado que Miriam Wu os levaria até Salander. E, de repente, tudo dera errado de novo. Paolo Roberto. Entre tanta gente. Surgido do nada. E, segundo a imprensa, era igualmente amigo de Lisbeth Salander.
O gigante loiro estava atônito.
Depois de Nykvarn, havia buscado refúgio na casa de Magge Lundin em Svavelsjõ, a apenas poucas centenas de metros do quartel-general do MC Svavelsjö. Não era o esconderijo ideal, mas ele não tinha muita alternativa e precisava a todo custo de um lugar para se entocar até que sumissem os hematomas do seu rosto e que ele pudesse deixar discretamente a região de Estocolmo. Mexeu no nariz quebrado e apalpou o galo na nuca. Já não estava tão inchado.
Ele fizera bem em voltar lá e atear fogo naquela droga toda. Era sempre bom fazer uma faxina ao sair.
De repente, ficou paralisado.
Bjurman. Ele se encontrara com Bjurman uma vez, muito rapidamente, na casa de campo dele, perto de Stallarholmen, no início de fevereiro, quando Zala concordara em se encarregar da Salander. Bjurman possuía um arquivo, que ele tinha folheado, com documentos sobre Salander. Droga, como é que ele tinha deixado passar isso? O arquivo poderia levar até Zala.
Ele desceu até a cozinha e explicou a Magge Lundin por que este devia ir com a maior urgência até Stallarholmen e acender mais um braseiro.
O inspetor criminal Bublanski dedicou seu intervalo de almoço tentando colocar ordem naquela investigação que, ele sentia, estava saindo dos trilhos. Passou um bom tempo com Curt Bolinder e Steve Bohman, coordenando a caçada a Lisbeth Salander. Tinham chegado novas pistas de Göteborg e Norrkõping, entre outros. Göteborg foi rapidamente eliminada, mas a pista de Norrkõping tinha um ligeiro potencial. Passaram a informação para os colegas de lá e destacaram uma vigilância discreta num endereço em que fora assinalada a presença de uma garota que lembrava Lisbeth Salander.
Tentou ter uma conversa diplomática com Hans Faste, mas este não estava na casa e não atendia o celular. Depois da reunião tumultuada daquela manhã, Faste tinha sumido, espumando de raiva.
Então Bublanski se confrontou com o chefe das investigações preliminares, Richard Ekström, para tentar resolver o problema Sonja Modig. Gastou um bom tempo expondo as razões objetivas que o levavam a achar uma insensatez afastá-la da investigação. Ekström negou-se a ouvir e Bublanski resolveu deixar passar o fim de semana antes voltar a tocar naquele assunto idiota. A relação entre o chefe das investigações e o chefe do inquérito preliminar estava ficando insustentável.
Pouco depois das três, ele passou no corredor e viu Niklas Eriksson saindo da sala de Sonja Modig, onde ele ainda estava revisando o conteúdo do disco rígido de Dag Svensson. O que, na opinião de Bublanski, tinha se tornado absurdo já que Eriksson não contava mais com um legítimo funcionário da polícia para auxiliá-lo na pesquisa. Resolveu juntar Niklas Eriksson e Curt Bolinder pelo resto da semana.
Mas, antes que eles tivessem tempo de trocar uma palavra, Eriksson desapareceu no banheiro no fim do corredor. Bublanski coçou a orelha e se aproximou da sala de Sonja Modig para aguardar a volta de Eriksson. Em pé diante da porta aberta, contemplou a cadeira vazia de Sonja.
Então seu olhar bateu no celular de Niklas Eriksson, largado na prateleira atrás da mesa de trabalho.
Bublanski hesitou um segundo e deu uma olhada em direção à porta do banheiro, ainda fechada. Depois, cedendo a um impulso, entrou na sala, pegou o celular, voltou a passos rápidos para sua própria sala e fechou a porta atrás de si. Percorreu a lista de chamadas feitas.
Às 9h57, cinco minutos antes de acabar a tumultuada reunião daquela manhã, Niklas Eriksson ligara para um número com prefixo 070. Bublanski pegou o telefone fixo de sua mesa e discou o número. O jornalista Tony Scala atendeu.
Ele desligou e ficou olhando o celular de Eriksson. Depois, se levantou feições alteradas pela raiva. Tinha dado dois passos em direção à porta quando o telefone de sua mesa tocou. Voltou e rugiu o seu nome no aparelho.
—É o Jerker. Continuo aqui no armazém de Nykvarn.
—Ah, é?
—O incêndio acabou. Já faz duas horas que estamos examinando o local. A polícia de Södertálje mandou trazerem um cachorro para farejar a área, para o caso de haver alguém entre os escombros.
—E?
—Não havia ninguém. Mas fizeram um intervalo para o cachorro descansar um pouco o focinho. Diz o adestrador que é necessário, porque no local de um incêndio os cheiros são realmente muito fortes.
—Vá logo ao que interessa.
—Ele foi dar uma volta e soltou o cachorro um pouco mais adiante. 0 bicho se manifestou uns setenta e cinco metros atrás do armazém, já no meio do mato. Cavaram. Faz dez minutos, acharam uma perna humana, com pé e sapato. Tudo indica que é um sapato de homem. Os pedaços não estavam enterrados muito fundo.
—Droga! Jerker, você tem que...
—Já assumi o comando das operações no local da descoberta e interrompi a escavação. Quero um médico legista e técnicos de verdade antes de continuar.
—Excelente trabalho, Jerker.
—Não é só isso. Há uns cinco minutos, o cachorro voltou a se manifestar, a uns cem metros do primeiro ponto.
Lisbeth Salander tinha feito café no fogão de Bjurman, comido outra maçã e passado duas horas lendo, página por página, a investigação que Bjurman fizera sobre ela. Estava impressionada. Ele pusera um bocado de energia na tarefa e sistematizara as informações como se se tratasse de um apaixonante passatempo. Encontrara informações a seu respeito de cuja existência ela própria ignorava.
Leu o diário de Holger Palmgren com sentimentos contraditórios. Eram dois blocos de anotações encadernados. Ele começara a redigir aquelas notas quando ela tinha quinze anos e acabava de fugir de sua segunda família adotiva, um casal idoso de Sigtuna, cujo marido era sociólogo e a mulher, escritora de livros infantis. Lisbeth tinha ficado doze dias com eles, sentira que eles estavam extremamente orgulhosos por cumprirem uma obra social ao se compadecerem dela, e esperavam que ela expressasse uma profunda gratidão. Lisbeth não aguentou quando sua mãe adotiva absolutamente temporária se autoelogiara para uma vizinha, destacando a importância de tomar conta de jovens com problemas manifestos. Não sou uma porcaria de um projeto social, ela queria gritar toda vez que sua mãe adotiva a exibia aos amigos. Passados doze dias, roubara cem coroas do cofrinho do casal e pegara o ônibus para Upplands-Vásby, e em seguida o trem de subúrbio para Estocolmo. A polícia a encontrara seis semanas depois, refugiada na casa de um vovô de sessenta e sete anos em Haninge.
Ele tinha sido correto. Oferecera-lhe teto e comida. Ela não precisou fazer muita coisa em troca. Ele queria olhar para ela pelada. Jamais encostava em Lisbeth. Ela sabia que o velho era considerado um pedófilo, mas nunca sentira nenhuma ameaça da parte dele. Via-o como uma criatura fechada e socialmente deficiente. Posteriormente, chegava até a sentir um estranho sentimento de parentesco quando pensava nele. Os dois viviam completamente à margem.
Um vizinho acabara reconhecendo-a e alertara a polícia. Uma assistente social fizera esforços imensos para convencê-la a dar queixa por abuso sexual. Ela se negara obstinadamente a admitir que acontecera alguma coisa imprópria, e de todo modo tinha quinze anos e já era sexualmente maior de idade. Vão se catar! Em seguida, Holger Palmgren interviera e a tirara de lá. Palmgren começara a escrever um diário sobre ela, no que parecia uma tentativa frustrada de lidar com suas próprias dúvidas. As primeiras frases tinham sido registradas em dezembro de 1993.
L. parece, definitivamente, ser a menina mais difícil que já conheci. A questão é saber se estou agindo certo ao me opor a uma nova internação no Sankt Stefan. Ela já deu cabo de duas famílias adotivas em três meses e corre um risco evidente de sofrer conseqüências por suas fugas. Tenho que decidir se desisto, ou não, desta missão e se peço que ela seja encaminhada a especialistas. Não sei o que seria bom ou mau. Hoje tive uma conversa séria com ela.
Lisbeth recordava cada palavra daquela conversa séria. Era véspera de Natal. Holger Palmgren a levara para sua casa e lhe oferecera o quarto de hóspedes. Preparara um espaguete à bolonhesa para o jantar, depois a convidara a se sentar no sofá da sala, sentando-se ele próprio numa cadeira diante dela. Ela se perguntara vagamente se Palmgren também ia querer vê-la pelada. Em vez disso, ele falara com ela como se ela fosse adulta.
Foi um monólogo de duas horas. Ela mal respondeu a suas perguntas. Ele explicou as coisas da vida real, ou seja, que ela agora podia optar entre ser novamente internada em Sankt Stefan ou ir morar com uma família adotiva. Prometeu que tentaria achar uma família adequada para ela e exigiu que ela aceitasse a escolha dele. Tinha resolvido convidá-la a passar o Natal com ele para lhe dar tempo de pensar em seu futuro. A escolha era toda dela, mas no dia seguinte ao Natal, o mais tardar, ele esperava uma resposta e uma promessa. Ela teria de prometer que, caso tivesse algum problema, recorreria a ele em vez de fugir. Depois disso mandou-a para a cama e sentou-se para escrever as primeiras linhas do seu diário sobre Lisbeth Salander.
A ameaça - a opção de ser mandada de volta para o Sankt Stefan depois do Natal - lhe causava mais medo do que Holger Palmgren seria capaz de imaginar. Ela passou um Natal infeliz, espreitando, desconfiada, os mínimos gestos de Palmgren. No dia seguinte, ele ainda não tinha tentado bulir com ela, nem dera sinal de querer espiá-la disfarçadamente. Pelo contrário, ficara furioso quando ela o provocara, indo nua do quarto de hóspedes até o banheiro. Ele tinha fechado a porta do banheiro com força, num gesto seco. Por fim, ela lhe fizera as promessas que ele exigia. E cumprira com sua palavra. Mais ou menos...
No diário, Palmgren comentava metodicamente cada um de seus encontros. Ora em três linhas, ora com páginas inteiras de reflexões. Alguns trechos deixaram-na estupefata. Palmgren era mais perspicaz do que ela suspeitara e, vez ou outra, acrescentava pequenos comentários sobre situações em que ela tentara enganá-lo e que ele notara perfeitamente.
Em seguida, abriu o relatório policial de 1991.
De repente, as peças do quebra-cabeça se encaixaram. Teve a sensação de que o chão começava a balançar.
Leu o relatório médico-legal escrito por um tal de dr. Jesper H. Lõderman, no qual um certo dr. Peter Teleborian era uma das principais referências.
Lõderman tinha sido o trunfo do procurador quando este tentara mandada internar por ocasião da sua maioridade.
Então achou um envelope contendo uma correspondência entre Peter Teleborian e Gunnar Björck. As cartas datavam de 1991, pouco depois que Todo o Mal acontecera.
Nada nas cartas era dito de modo explícito, mas de repente um alçapão se abriu sob os pés de Lisbeth Salander. Levou alguns minutos para entender todas as implicações. Gunnar Björck referia-se a uma provável conversa particular. A carta era formulada de maneira impecável, mas nas entrelinhas Björck dizia que seria bom para todo mundo se Lisbeth Salander passasse o resto da vida trancada num asilo de loucos.
É importante que a menina tome um recuo em relação à situação atual. Eu não saberia avaliar seu estado psíquico nem os cuidados de que ela necessita, mas quanto mais ela puder ser mantida numa instituição, menores serão os riscos de que ela involuntariamente crie problemas no caso que nos preocupa.
O caso que nos preocupa.
Lisbeth Salander avaliou a expressão por um instante.
Peter Teleborian fora o responsável por seu tratamento em Sankt Stefan. Não tinha sido por acaso. Só pelo tom da correspondência, ela já podia concluir que essas cartas nunca haviam sido escritas para se tornar públicas.
Peter Teleborian conhecia Gunnar Björck.
Lisbeth Salander mordeu o lábio inferior enquanto refletia. Nunca havia investigado Teleborian, mas ele iniciara sua carreira no Instituto Médico-Legal, e a própria Säpo vez ou outra precisava consultar médicos legistas ou psiquiatras em diferentes investigações. Compreendeu, de súbito, que se começasse a fuçar, encontraria algum elo. Em algum momento, no início da carreira de Teleborian, seu caminho se cruzara com o de Björck. Quando Björck precisara de alguém para enterrar Lisbeth Salander, dirigira-se a Teleborian.
Era assim que as coisas tinham acontecido. O que até então parecera puro acaso assumia de repente outra dimensão.
Permaneceu um bom tempo parada, fitando um ponto à frente. Não existem inocentes. Só existem diferentes graus de responsabilidade. E havia alguém responsável por Lisbeth Salander. Ela, sem dúvida nenhuma, precisava dar uma chegada a Smâdalarô. Imaginou que ninguém no irrepreensível sistema judiciário do Estado estaria disposto a discutir o assunto com ela e que, portanto, na falta de opção melhor, uma conversa com Gunnar Björck já serviria.
A perspectiva desse encontro já a deixava satisfeita.
Não precisava levar todos os arquivos. Uma vez lidos, ficavam indelevelmente gravados em sua memória. Pegou os dois diários de Holger Palmgren, o relatório policial de Björck de 1991, a investigação médico-legal de 1996 que servira de base para declará-la incapaz, assim como a correspondência entre Peter Teleborian e Gunnar Björck. Sua mochila ficou abarrotada.
Fechou a porta e ainda não tinha dado a volta na chave quando escutou o barulho de uma moto. Olhou em volta. Era tarde demais para tentar se esconder, e sabia que não tinha a menor chance de escapar daqueles dois motoqueiros em suas Harley Davidson. Na defensiva, desceu os degraus em frente à casa e cruzou com eles no meio do pátio.
Possesso, Bublanski saiu no corredor e verificou que Eriksson ainda não retornara à sala de Sonja Modig. O banheiro, no entanto, estava vazio. Seguiu pelo corredor e o avistou de repente, com um copinho de plástico na mão, na sala de Curt Bolinder e Steve Bohman.
Sem ser visto, Bublanski deu meia-volta e subiu ao andar de cima, até a sala do procurador Ekström. Foi entrando sem bater e interrompeu Ekström em plena conversa telefônica.
—Venha cá - disse ele.
—O quê? - fez Ekström.
—Desligue e venha comigo.
A expressão de Bublanski era tal que Ekström obedeceu. A esta altura, era fácil entender por que os colegas o tinham apelidado de Bubolha. Seu rosto assumira o aspecto de uma enorme bolha de chiclete cor-de-rosa. Desceram e foram juntar-se ao cordial intervalo do café na sala de Curt Bolinder.
Bublanski foi direto para cima de Eriksson, agarrou-o com pulso firme pelos cabelos e virou-o para Ekström.
—Ai! O que é isso? Você tá maluco?
—Bublanski! - exclamou Ekström, apavorado.
Ekström parecia alarmado. Curt Bolinder e Steve Bohman estavam boquiabertos.
—Isto aqui é seu? - perguntou Bublanski, brandindo o celular.
—Me solte!
—ESTE CELULAR É SEU?
—É, sim, porra. Me solte!
—É claro que não. Você está preso.
—O quê?
—Você está preso por violação de sigilo e obstrução de investigação policial. A menos que tenha uma explicação plausível para o telefonema dado às 9h57 da manhã de hoje para um jornalista chamado Tony Scala, logo depois da nossa reunião e pouco antes de o Scala divulgar as informações que tínhamos decidido manter confidenciais. A ligação consta na lista de chamadas do seu celular.
Magge Lundin mal conseguiu acreditar nos próprios olhos quando viu Lisbeth Salander no pátio em frente à casa de campo de Bjurman. Ele tinha consultado o mapa rodoviário e o gigante loiro lhe fornecera uma descrição precisa do trajeto. Assim que recebeu ordem de ir até Stallarholmen e provocar um incêndio, foi até a sede do clube, na gráfica abandonada na periferia de Svavelsjõ, chamar Benny Nieminen para ir com ele. Estava quente, um tempo perfeito para pegar as motos pela primeira vez depois do inverno. Vestiram os macacões de couro e fizeram o trajeto de Svavelsjõ a Stallarholmen a uma velocidade tranqüila.
E eis que Lisbeth Salander estava ali esperando por eles. Podia até estar usando uma peruca loira, ele a reconhecia assim mesmo. A altura, o jeito, só podia ser ela.
Era um legítimo bônus, e ia deixar o gigante loiro estupefato. Avançaram, cada um de um lado, e detiveram-se a dois metros de Lisbeth.
Uma vez desligados os motores, o silêncio na mata era absoluto. De início, Lundin não sabia bem o que dizer, mas acabou recuperando a fala.
—Ora, ora. Faz um tempinho que estamos te procurando, Lisbeth Salander.
Sorriu de repente. Lisbeth Salander contemplava Lundin com olhos inexpressivos. Notou que ele ainda tinha no maxilar uma marca vermelha, recém-cicatrizada, no lugar onde ela o arranhara com o molho de chaves. Ergueu o olhar e fitou o cimo das árvores atrás dele. Então baixou-o novamente. Seus olhos estavam de um preto inquietante.
—Tive uma semana de merda e estou com um humor execrável. E sabe o que é pior? A cada passo que eu dou, deparo com um monte de merda com um barrigão, atravancando o meu caminho e se achando grande coisa. Agora eu estou me mandando. Sai da frente.
Magge Lundin abriu a boca. Primeiro, achou que tinha ouvido mal. Depois, sem querer, começou a rir. A situação era hilária. Uma magricela que ele até poderia enfiar no bolso dando uma de esperta diante de dois homens adultos, que usavam jaquetas com o logotipo do MC Svavelsjõ, ou seja: Malvados dos mais perigosos que em breve seriam membros efetivos dos Hell’s Angels. Eles podiam fazer picadinho dela e guardar numa lata de biscoito. E ela ali se exibindo, que idiota!
Mas mesmo que a garota fosse totalmente doida - o que parecia ser o caso, de acordo com os jornais e com o que ele estava vendo com seus próprios olhos, ali, diante da casa -, as jaquetas deveriam lhe impor algum respeito. O que aparentemente não era o caso. Era uma história de rolar de rir, mas inadmissível. Ele se virou para Benny Nieminen.
—Ai, ai, não seria nada mau essa sapatão dar uma provada num pinto - disse ele, baixando a escora e descendo da Harley.
Deu dois passos lentos na direção de Lisbeth Salander e baixou os olhos para ela. Lisbeth não se moveu um milímetro sequer. Magge Lundin balançou a cabeça e soltou um suspiro sinistro. Então desfechou uma bofetada com aquela força considerável que Mikael Blomkvist experimentara no incidente da Lundagatan.
Bateu no ar. No instante em que a mão ia tocar em seu rosto, Lisbeth deu um passo atrás e parou, fora de alcance.
Apoiado na direção da Harley, Benny Nieminen contemplava o amigo com um sorriso nos lábios. Lundin ficou rubro e deu rapidamente dois passos na direção de Lisbeth. Ela recuou de novo. Lundin acelerou.
Lisbeth Salander estacou de repente e esvaziou metade do conteúdo da bomba lacrimogênea direto na cara dele. Seus olhos começaram a queimar como fogo. Lisbeth Salander lhe enfiou, com toda a força, a ponta da bota no meio das pernas, transformando-a em energia cinética com uma pressão de cerca de cento e vinte newtons por centímetro quadrado. Sem fôlego, Magge Lundin caiu de joelhos, ficando assim a uma altura mais confortável para Lisbeth Salabeth. Ela pegou um impulso e lhe tascou um pontapé no meio da cara, como quem cobra um escanteio. Um estalo desagradável fez-se ouvir antes de Magge Lundin desabar, sem um ruído, feito um saco de batatas.
Benny Nieminen precisou de vários segundos para entender que algo impossível acabava de ocorrer diante de seus olhos. Primeiro pensou em baixar a escora de sua Harley, não a encontrou com o pé, precisou olhar. Depois, pensou em pegar a pistola que estava no bolso interno da jaqueta. Estava prestes a baixar o zíper, quando percebeu um movimento com o canto dos olhos.
Ergueu o olhar e deu com Lisbeth vindo para cima dele feito bala de canhão. Ela pulou de pés juntos e o atingiu em cheio no quadril, o que não bastava para machucá-lo, mas bastou para derrubá-lo, com a moto junto. Por um triz ele evitou que a perna ficasse presa sob a moto e deu uns passos trôpegos para trás antes de recuperar o equilíbrio. Quando tornou a situá-la em seu campo de visão, viu o braço dela se mover e uma pedra do tamanho de um punho voar pelos ares. Abaixou-se instintivamente. A pedra passou a poucos centímetros de sua cabeça.
Conseguiu afinal pegar a pistola e tentou soltar a trava de segurança, mas quando ergueu os olhos pela terceira vez Lisbeth Salander estava diante dele. Viu ódio em seu olhar e, atônito, pela primeira vez sentiu medo de verdade.
— Boa noite — disse Lisbeth Salander.
Ela enfiou-lhe o cacetete elétrico na parte inferior do ventre e descarregou setenta e cinco mil volts, mantendo os eletrodos em contato com o corpo dele por pelo menos vinte segundos. Benny Nieminen se transformou num vegetal sem vontade própria.
Lisbeth escutou um ruído atrás de si, virou-se e contemplou Magge Lundin. A muito custo, ele conseguira ficar de joelhos e estava prestes a se levantar. Ela o fitou. Cego, ele tateava com os braços na névoa ardente do gás lacrimogêneo.
—Eu vou te matar! - ele berrou de repente.
Ainda resmungou qualquer coisa incompreensível, tateando às cegas na tentativa de achar Lisbeth Salander. Ela inclinou a cabeça e o contemplou pensativa. Ele berrou mais uma vez.
—Sua puta!
Lisbeth Salander se abaixou, juntou a pistola de Benny Nieminen e constatou que se tratava de uma Wanad P-83 polonesa.
Abriu o carregador e conferiu se estava com a munição adequada, Makarov nove milímetros. Então puxou a corrediça e enfiou uma bala no cano. Passou por cima de Benny Nieminen, aproximou-se de Magge Lundin, mirou segurando a arma com as duas mãos e disparou-lhe uma bala no pé. Ele berrou com o impacto e tornou a cair.
Ela o contemplou e pensou se valeria a pena perguntar quem era o gigante loiro que ela vira com ele no Café Blomberg e que, de acordo com o jornalista Per-Ake Sandström, assassinara uma pessoa num armazém, junto com Magge Lundin. Humm. Ela talvez devesse ter perguntado antes de atirar.
Magge Lundin não parecia em condições de manter uma conversa clara, e, além disso, existia a possibilidade de alguém ter ouvido o disparo. Era melhor sair dali imediatamente. Poderia encontrar Magge Lundin mais tarde e interrogá-lo de um jeito mais tranqüilo. Tornou a acionar a trava de segurança, enfiou a arma no bolso e pegou sua mochila.
Já havia percorrido uns dez metros de estrada quando parou e se virou. Voltou lentamente para a casa de Nils Bjurman e examinou a moto de Magge Lundin. Harley Davidson - pensou. —Cool.