* * *
Às nove da noite, a inspetora Sonja Modig ainda se encontrava no apartamento do Dr. Bjurman. Já tinha ligado para casa a fim de explicar a situação ao marido. Depois de onze anos casados, ele acabara aceitando o fato de que o trabalho da mulher nunca seguiria uma rotina das nove às cinco. Ela estava à mesa de Bjurman, no escritório, examinando documentos que achara nas gavetas, quando bateram à porta. Viu Bublanski equilibrando-se com dois copos de café e um saco de papel azul da confeitaria da esquina. Com um gesto cansado, fez sinal para que ele entrasse.
—No que é que eu posso encostar? - perguntou Bublanski automaticamente.
—Os técnicos já terminaram aqui. Ainda estão trabalhando no quarto e na cozinha. O corpo ainda está aí.
Bublanski puxou uma cadeira e sentou-se em frente à sua colega. Modig abriu o pacote e pegou um pãozinho com canela.
—Obrigada. Eu estava louca por um café. Saborearam o lanche em silêncio.
—Se eu entendi bem, não deu muito certo na Lundagatan - disse Modig, engolindo o último bocado de pão e lambendo os dedos.
—Não havia ninguém lá. Até tinha correspondência para a Salander, ainda fechada, mas quem mora lá é uma tal de Miriam Wu. Ainda não foi encontrada.
—Quem é ela?
—Não sei direito. O Faste está pesquisando o passado dela. Foi incluída no contrato habitacional há pouco mais de um mês, mas a impressão que dá é que no apartamento só mora uma pessoa. Acho que a Salander se mudou sem comunicar o novo endereço.
—Ela pode ter planejado tudo isso.
—O quê? Um triplo assassinato? - Bublanski balançou a cabeça com ar resignado. —Isto está virando um verdadeiro caos. O Ekström insistiu em dar uma coletiva de imprensa e agora vamos ficar um tempão com a mídia no nosso pé. A coisa promete. Achou alguma coisa?
—Tirando Bjurman no quarto... Achamos uma embalagem de Magnum vazia... Foi para as Impressões Digitais. O Bjurman tem um arquivo com as cópias dos relatórios mensais sobre Salander que ele mandava para a Comissão de Tutelas. A julgar por esses relatórios, Salander é um anjo.
—Ele também? Não! - exclamou Bublanski.
—Ele também o quê?
—Mais um admirador da Lisbeth Salander.
Bublanski resumiu o que ele descobrira com Dragan Armanskij e Mikael Blomkvist. Sonja Modig escutou sem interromper. Quando ele se calou, ela passou os dedos no cabelo e esfregou os olhos.
—Tudo isto está parecendo uma loucura - disse.
Bublanski meneou a cabeça, pensativo, e contraiu o lábio inferior. Sonja Modig olhou de lado para ele e conteve um sorriso. Seu rosto de feições grosseiras parecia quase brutal. Mas, quando estava incomodado ou incerto, assumia um jeito quase emburrado. Nessas horas ela achava que o apelido Bubolha lhe caía bem. Ela nunca o chamara assim e não sabia de onde o apelido surgira. Mas caía-lhe como uma luva.
—Muito bem - disse ela. —Até que ponto temos certeza?
—O procurador parece ter certeza. Agora à noite foi emitido um alerta de busca nacional a Lisbeth Salander - disse Bublanski. —Ela esteve todo o ano passado no exterior e é possível que tente sair do país.
—Até que ponto temos certeza? - ela repetiu. Ele deu de ombros.
—Já prendemos pessoas com bases muito mais frágeis que essas - respondeu.
—Temos as impressões digitais na arma do crime de Enskede. Temos o tutor morto também. Sem querer pôr a carroça na frente dos bois, aposto como foi usada a mesma arma. Amanhã vamos saber. Os técnicos acharam um fragmento de bala relativamente em bom estado no colchão.
—Certo.
—Há uns cartuchos do revólver aqui na gaveta de baixo da escrivaninha. Bala com núcleo de chumbo e ponta de carboneto de tungstênio.
—Certo.
—Temos vários documentos declarando que a Salander é louca. Bjurman era o tutor dela, é o proprietário da arma.
—Mmm... - fez Bubolha, emburrado.
Temos um elo entre a Salander e o casal de Enskede na pessoa de Mikael Blomkvist.
—Mmm... - ele repetiu.
—Você parece em dúvida.
—Não consigo formar uma imagem de Lisbeth Salander. Os arquivos dizem uma coisa, e tanto Armanskij como Blomkvist dizem outra. De acordo com os documentos, ela é uma psicopata praticamente retardada. E de acordo com o que dizem os dois, é uma investigadora sem igual. Há uma distância enorme entre as duas versões. Não temos motivo no que diz respeito a Bjurman, nem a menor confirmação de que ela conhecia o casal de Enskede.
—E uma doida psicótica precisa de motivo?
—Não fui até o quarto. Como está a coisa?
—Achei o Bjurman de bruços sobre a cama, de joelhos no chão. Como se estivesse rezando antes de dormir. Está nu. Com uma bala na cabeça.
—Uma bala só? Como em Enskede.
—Até onde pude ver, só havia uma bala. Tudo indica que Salander, se foi mesmo ela que fez isso, o obrigou a se ajoelhar na frente da cama antes de atirar. A bala entrou atrás da cabeça e saiu pelo lado da testa.
—Bala na nuca. Estilo execução.
—Exatamente.
—Eu estava pensando... alguém deve ter escutado o tiro.
—O quarto dá para o pátio dos fundos e os vizinhos de cima e de baixo viajaram no feriadão da Páscoa. A janela estava fechada. Além disso, ela usou um travesseiro para abafar o som.
—Muito esperto.
Nisso, Gunnar Samuelsson, do departamento técnico-legal, apontou a cabeça pela abertura da porta.
—Oi, Bubolha - ele exclamou, e voltou-se para a colega. —Modig, a gente virou o corpo para tirar ele do lugar. Você tem que vir dar uma olhada numa coisa.
Foram com ele até o quarto. O corpo de Nils Bjurman tinha sido deitado numa maca, de costas, primeira etapa do trajeto para o instituto médico-legal. Ninguém podia questionar a causa mortis. A testa exibia um ferimento enorme, de uns dez centímetros de largura, com um bom pedaço do osso frontal pendurado num farrapo de pele. Os respingos na cama e na parede falavam por si só.
Bublanski fez um muxoxo.
—No que a gente tem que dar uma olhada? - perguntou Modig. Gunnar Samuelsson ergueu o lençol, descobrindo o baixo-ventre de Bjurman. Bublanski pôs os óculos antes de se inclinar, como Modig, para ler o texto tatuado na barriga de Bjurman. As letras eram grosseiras e irregulares - o texto não era, evidentemente, obra de um tatuador profissional. Mas a mensagem aparecia com toda a clareza: SOU UM PORCO SÁDICO, UM CANALHA ESTUPRADOR.
Modig e Bublanski olharam um para o outro, estupefatos.
—Será que estamos olhando para um princípio de motivo? —Modig disse afinal.
A caminho de casa, Mikael Blomkvist comprou quatrocentos gramas de macarrão pré-cozido no 7-Eleven e colocou o pacote para esquentar no micro-ondas enquanto se despia para um banho de três minutos. Pegou um garfo e comeu em pé, direto da embalagem. Estava com fome, mas sem apetite, só queria engolir a comida o mais rápido possível. Feito isso, abriu uma Vestfyn e tomou a cerveja no gargalo.
Sem acender nenhuma luz, foi até a janela que dava para a cidade velha e permaneceu um bom tempo ali parado, tentando não pensar.
Exatamente vinte e quatro horas atrás, ele ainda estava jantando na casa da irmã quando Dag Svensson ligara para seu celular. Dag e Mia ainda estavam vivos.
Fazia trinta e seis horas que ele não dormia e já ia longe o tempo em que podia varar uma noite impunemente. Também sabia que não ia conseguir dormir sem pensar no que tinha visto. As imagens de Enskede estavam gravadas para sempre em sua retina.
Por fim, desligou o celular e se enfiou debaixo do edredom. As onze da noite, ainda não estava dormindo. Levantou e pôs a cafeteira para funcionar. Ligou o CD-player e escutou Debbie Harry cantar “Maria”. Enrolou-se num cobertor e sentou no sofá da sala para tomar o café e pensar em Lisbeth Salander.
O que ele de fato sabia a seu respeito? Praticamente nada.
Sabia que ela tinha memória fotográfica e que era uma hacker diabólica.
Sabia que era uma mulher singular e fechada, que não falava de si mesma e não tinha a menor confiança nas autoridades.
Sabia que ela podia ser de uma violência brutal. Motivo pelo qual ele próprio ainda estava vivo.
Mas ignorava totalmente que ela estivesse sob tutela e que passara parte da adolescência num hospital psiquiátrico. Ele precisava escolher um lado.
Em algum momento depois da meia-noite, resolveu que simplesmente não estava a fim de acreditar nas conclusões da polícia, que acusava Lisbeth de ter matado Dag e Mia. Devia-lhe pelo menos uma chance de se explicar antes de condená-la.
Não percebeu que estava pegando no sono, e acordou no sofá às quatro e meia da manhã. Foi titubeando até a cama e tornou a dormir.