24. SEXTA-FEIRA 11 DE JULHO — SÁBADO 12 DE JULHO


Martin Vanger se abaixou para vasculhar os bolsos de Mikael e pegou as chaves.

— Esperteza sua trocar a fechadura. Vou me encarregar da sua namorada quando ela voltar.

Mikael não respondeu. Lembrou-se que Martin Vanger era um negociador com experiência em muitas batalhas industriais. Sabia quando estavam blefando com ele.

— Por quê?

— Por que o quê?

— Por que tudo isto? — Mikael tentou indicar a peça com um gesto de cabeça.

Martin Vanger se abaixou, pôs a mão sob o queixo de Mikael e ergueu-lhe a cabeça para que seus olhares se cruzassem.

— Porque é muito fácil — disse. — Mulheres desaparecem o tempo todo. Elas não fazem falta a ninguém. Imigrantes, prostitutas russas. Milhares de pessoas passam pela Suécia todos os anos.

Soltou a cabeça de Mikael e levantou-se, quase orgulhoso de poder esclarecer seu visitante.

As palavras de Martin atingiram Mikael como uma bofetada. Meu Deus, então não se trata de um enigma histórico. Martin Vanger mata mulheres até hoje. E eu, como um idiota, me lancei em...

— Não tenho nenhuma convidada no momento. Mas talvez você ache divertido saber que no inverno passado e na primavera, enquanto você e Henrik quebravam a cabeça com suas histórias, eu tinha uma mulher aqui. Chamava-se Irina e era da Bielo-Rússia. No dia em que você veio jantar comigo, ela estava presa aqui na jaula. Foi uma noitada agradável, não foi?

Martin Vanger sentou em cima da mesa e deixou pender as pernas. Mikael fechou os olhos. Sentiu regurgitações ácidas na garganta e engoliu várias vezes.

— O que faz com os corpos?

— Meu barco está amarrado no pontão logo abaixo. Levo-as para longe, ao largo. Ao contrário do meu pai, não deixo vestígios. Mas ele também era esperto. Suas vítimas se espalhavam por toda a Suécia.

As peças do quebra-cabeça começavam a se juntar na mente de Mikael. Gottfried Vanger. De 1949 a 1965. Martin Vanger a partir de 1966, em Uppsala.

— Você admirava seu pai.

— Foi ele quem me ensinou. Fui iniciado aos catorze anos.

— Uddevalla. Lea Persson.

— Isso mesmo, eu estava lá. Fui apenas um espectador, mas estava lá.

— Em 1964, Sara Witt, em Ronneby.

— Eu tinha dezesseis anos. Foi a primeira vez que tive uma mulher para mim. Gottfried me ensinou. Fui eu que a estrangulei.

Ele se orgulha! Meu Deus, que família de psicopatas!

— Não percebe que é patológico?

Martin Vanger encolheu ligeiramente os ombros.

— Você não entende que sensação divina é ter o controle absoluto sobre a vida e a morte de alguém.

— O prazer de torturar e matar mulheres...

O industrial refletiu um instante, com o olhar fixo num ponto vazio da parede atrás de Mikael. Depois exibiu seu sorriso charmoso.

— Não é bem assim. Se eu fosse fazer uma análise racional do meu estado, eu diria que sou um estuprador serial, não um assassino serial. Na verdade, sou um sequestrador serial. Matar é apenas o desfecho natural, porque devo ocultar o crime, entende?

Mikael não soube o que responder e limitou-se a assentir com a cabeça.

— Evidentemente meus atos não são aceitáveis pela sociedade, mas meu crime é em primeiro lugar um crime contra as convenções sociais. A morte só acontece no final da temporada de minhas hóspedes aqui, quando estou cansado. É sempre fascinante ver a decepção delas.

— Decepção? — perguntou Mikael, estupefato.

— Exatamente. Decepção. Elas imaginam que, porque me satisfazem, vão sobreviver. Começam a confiar em mim e a criar uma camaradagem, e até o final esperam que essa camaradagem signifique algo. A decepção vem quando descobrem, de repente, que foram enganadas.

Martin deu a volta em torno da mesa e se apoiou na jaula de aço.

— Você, com suas convenções pequeno-burguesas, nunca vai entender, mas é planejar o sequestro que produz a excitação. Não se deve agir impulsivamente; sequestradores desse tipo sempre se dão mal. É uma verdadeira ciência, com muitos detalhes a se levar em conta. Devo identificar uma presa e catalogar toda a sua vida. Quem é ela? De onde vem? Onde pegá-la? Como fazer para estar a sós com ela sem que meu nome apareça num futuro inquérito policial?

Chega, pensou Mikael. Martin Vanger falava de sequestros e assassinatos num tom quase acadêmico, um pouco como se tivesse expondo sua opinião contrária numa questão de teologia esotérica.

— Será que isso realmente te interessa, Mikael?

E inclinou-se para a frente acariciando o rosto de Mikael. O contato da mão era suave, quase terno.

— Tenho certeza de que você compreende que esse caso só pode terminar de uma maneira. Se importa que eu fume?

Mikael disse não com a cabeça.

— Pode me dar um cigarro também? — perguntou Mikael.

Martin Vanger atendeu o pedido. Acendeu dois cigarros e pôs um deles entre os lábios de Mikael, deixando-o dar uma longa tragada.

— Obrigado — disse Mikael automaticamente. Martin Vanger riu de novo.

— Veja só, você já começou a se adaptar ao princípio da submissão.

Tenho a sua vida em minhas mãos, Mikael. Sabe que posso matá-lo de um momento para o outro. Suplicou que eu melhorasse sua qualidade de vida e fez isso utilizando a razão e as boas maneiras. Foi recompensado.

Mikael assentiu com a cabeça. Seu coração batia desordenadamente, era quase insuportável.


Às onze e quinze da noite, Lisbeth Salander bebeu um gole de água da sua garrafa enquanto virava as páginas. De repente viu algo que a fez arregalar os olhos, mas, ao contrário do que acontecera com Mikael naquele mesmo dia, não engasgou quando estabeleceu a relação.

Clique!

Durante duas horas ela percorrera boletins administrativos das várias empresas do grupo Vanger. A publicação principal intitulava-se Informações do grupo Vanger e trazia o logotipo do grupo — uma bandeira sueca flutuando ao vento e cuja ponta formava uma flecha. A revista fora claramente concebida pelo departamento de comunicação do grupo como veículo de propaganda destinado a garantir que os funcionários se sentissem membros de uma grande família.

Nas férias de inverno de fevereiro de 1967, Henrik Vanger, num gesto magnânimo, convidara cinquenta funcionários da sede para passar uma semana na estação de esqui de Härjedalen com suas famílias. Motivo do convite: o grupo obtivera resultados recordes no ano precedente e ele queria agradecer os esforços de todos. O departamento de comunicação, também presente, fazia uma reportagem fotográfica do evento.

Havia muitas fotos das pistas de esqui com legendas divertidas. Algumas foram tiradas no bar, onde se viam homens risonhos, com o rosto marcado pelo frio, erguendo canecas de cerveja. Duas fotos de uma pequena cerimônia matinal em que Henrik Vanger premiava, como "A Funcionária de Escritório do Ano", uma secretária chamada Ulla-Britt Mogren, de quarenta e um anos. Ela recebia um prêmio de quinhentas coroas e uma saladeira de vidro.

A entrega do prêmio fora no terraço do hotel, aparentemente pouco antes de as pessoas se lançarem de novo nas pistas de esqui. Havia umas vinte pessoas na foto. A direita, logo atrás de Henrik Vanger, achava-se um homem de cabelos compridos louros. Vestia uma jaqueta escura com um tom diferente nos ombros. Embora a foto fosse em preto-e-branco, Lisbeth Salander teve a certeza e podia apostar que era vermelho.

A legenda dizia: Bem à direita, Martin Vanger, 19 anos, estudante de Uppsala. Já é considerado alguém com um futuro muito promissor na direção do grupo.

— Agora te peguei, safado — disse Lisbeth Salander em voz baixa.

Ela apagou a luz da sala e deixou os boletins administrativos espalhados em cima da mesa — aquela cretina da Bodil Lindgren que dê um jeito nisto amanhã!

Foi para o estacionamento por uma porta lateral. Enquanto se encaminhava para a sua moto, lembrou que havia prometido avisar o guarda quando saísse. Parou e olhou para o estacionamento. O guarda estava do outro lado do prédio. Isso significava que ela seria obrigada a retornar e dar toda a volta. Foda-se!

Ao chegar à moto, pegou o celular e chamou o número de Mikael. Uma voz anunciou que o aparelho não estava disponível. Mas ela descobriu que Mikael havia tentado chamá-la treze vezes entre as três e meia da tarde e às nove da noite. Nas últimas duas horas ele não fizera chamadas.

Lisbeth digitou o número do telefone fixo da casa dos convidados, mas ninguém atendeu. Franziu o cenho, pôs a mochila com o computador nas costas, o capacete, e ligou a moto. Levou dez minutos para ir do escritório Vanger, na zona industrial de Hedestad, até a ilha. Havia luz na cozinha, porém a casa estava vazia.

Lisbeth Salander saiu para dar uma espiada no lado externo da casa. Seu primeiro pensamento foi que Mikael fora à casa de Dirch Frode, mas da ponte constatou que as luzes da casa de Frode, na outra margem, estavam apagadas. Olhou seu relógio: onze e quarenta.

Voltou para casa, abriu o armário e examinou os laptops que armazenavam as imagens das câmeras de segurança. Não precisou mais de um momento para estabelecer a sequência dos acontecimentos.

Às 15h32, Mikael chegou em casa.

Às 16h03, saiu para beber um café no jardim. Levava consigo uma pasta, que examinava. Deu três breves telefonemas durante a hora em que esteve no jardim. Pelo horário, as três chamadas correspondiam, aproximadamente, às que ela não atendera.

Às 17h21, Mikael saiu. Voltou um pouco menos de quinze minutos depois.

Às 18h20, foi até o portão e olhou para o lado da ponte.

Às 21h03, saiu outra vez. Não voltou mais.

Lisbeth passou rapidamente as imagens do segundo computador, que mostravam o portão e a estrada. Ela podia ver as idas e vindas de outras pessoas durante o dia.

Às 19h12, Gunnar Nilsson chegou em sua casa.

Às 19h42, alguém no Saab da fazenda de Östergarden partiu em direção a Hedestad.

Às 20h02, o carro estava de volta — uma ida até a loja de conveniências do posto de gasolina?

A seguir, nada mais até as nove em ponto, quando o carro de Martin Vanger passou. Três minutos depois, Mikael saiu de casa.

Cerca de uma hora depois, às 21h50, Martin Vanger apareceu de repente no campo da objetiva. Ficou diante do portão por um minuto, contemplando a casa e olhando pela janela da cozinha. Depois dirigiu-se à porta da frente, tentando abri-la com uma chave. Deve ter percebido que a fechadura fora trocada e ficou imóvel por um instante, antes de se virar e ir embora.

Lisbeth Salander sentiu, de repente, um frio na barriga.


Mikael fora deixado novamente sozinho por longo tempo. Estava estendido, imóvel, em sua posição desconfortável, com as mãos algemadas às costas e o pescoço preso à argola no chão por uma corrente fina. Moveu as algemas, mesmo sabendo que não conseguiria abri-las. Estavam tão apertadas que ele perdera a sensibilidade nas mãos.

Não tinha nenhuma chance. Fechou os olhos.

Não soube dizer quanto tempo transcorreu até ouvir de novo os passos de Martin Vanger. O empresário surgiu em seu campo de visão. Tinha um ar preocupado.

— Desconfortável? — ele perguntou.

— Sim — respondeu Mikael.

— É o único culpado por isso. Deveria ter voltado para Estocolmo.

— Por que você gosta de matar, Martin?

— É uma escolha que eu fiz. Poderia ficar aqui discutindo com você a noite toda sobre os aspectos morais e o sentido racional dos meus atos, e isso não alteraria em nada os fatos. Tente ver as coisas desse modo: o ser humano é um invólucro de pele que acondiciona células, sangue e componentes químicos. Algumas pessoas, raras, conservam-se nos livros de história. A grande maioria sucumbe e desaparece sem deixar sinal.

— Você mata mulheres.

— Nós, que matamos por prazer, pois não sou o único a me dedicar a esse passatempo, levamos uma vida de intensidade máxima.

— Mas por que Harriet, sua própria irmã?

O rosto de Martin alterou-se de repente. Num salto, aproximou-se de Mikael e o pegou pelos cabelos.

— O que aconteceu a ela?

— Que está querendo dizer? — arquejou Mikael.

Tentou virar a cabeça para diminuir a dor no couro cabeludo. A corrente logo se esticou em volta de seu pescoço.

— Você e Salander. O que vocês descobriram?

— Solte-me, não consigo falar.

Martin Vanger soltou os cabelos de Mikael e sentou-se diante dele com as pernas cruzadas. Então pegou uma faca e pôs a ponta dela na pele bem debaixo do olho de Mikael, que fez um esforço para olhar Martin.

— O que aconteceu a ela, seu filho-da-puta?

— Não entendo. Achei que você a tivesse matado.

Martin Vanger fixou Mikael por um longo momento, depois relaxou. Levantou-se e pôs-se a caminhar pelo porão enquanto refletia. Então jogou a faca no chão, riu e voltou-se para Mikael.

— Harriet, Harriet, sempre essa maldita Harriet. Tentamos... convencê-la. Gottfried tentou ensiná-la. Achamos que era uma das nossas e que aceitaria seu dever, mas ela não passava de uma... putinha ordinária. Achei que a tinha sob controle, mas ela estava planejando avisar Henrik e percebi que não podia confiar nela. Cedo ou tarde ela falaria de mim.

— E então a matou.

— Eu quis matá-la. Tinha a intenção de fazer isso, mas cheguei tarde demais. Não consegui vir para a ilha.

O cérebro de Mikael tentava assimilar a informação, mas era como se uma janela se abrisse e anunciasse: memória insuficiente. Martin Vanger não sabia o que acontecera à irmã!

De repente, Martin tirou o celular do casaco, examinou a tela e o colocou sobre a cadeira ao lado da pistola.

— Chegou a hora de liquidar esse assunto. Preciso de um tempo para me encarregar também da sua companheira anoréxica ainda esta noite.

Abriu um armário, tirou uma correia de couro e passou-a com um nó corrediço em volta do pescoço de Mikael, desatando a corrente que o prendia ao chão. Fez Mikael levantar-se e o empurrou contra a parede. Passou a correia por uma argola acima da cabeça de Mikael e a esticou, obrigando-o a ficar na ponta dos pés.

— Está muito apertado? Não consegue respirar? — Afrouxou um centímetro ou dois e prendeu a ponta da correia mais abaixo na parede. — Não quero que morra asfixiado daqui a pouco.

O laço apertava o pescoço de Mikael com tanta força que ele não conseguia falar. Martin Vanger o observou atentamente.

Com um gesto brusco, desatou o cinto da calça de Mikael e a abaixou juntamente com a cueca. Mikael perdeu o equilíbrio e pendeu por um segundo no nó corrediço, antes que os dedos do pé voltassem a tocar o chão. Martin Vanger foi buscar uma tesoura num móvel. Cortou a camiseta de Mikael e jogou os retalhos no chão. Depois postou-se a alguma distância e contemplou sua vítima.

— Nunca tive um homem aqui — disse Martin com uma voz grave. — Nunca toquei outro homem... a não ser meu pai. Era meu dever.

As têmporas de Mikael latejavam. Ele não podia apoiar o peso do corpo nos pés sem se estrangular. Tentou achar um ponto onde se segurar na parede de concreto às suas costas, mas não encontrou nada.

— Chegou a hora — disse Martin Vanger.

Pôs a mão sobre a correia e a pressionou. Mikael sentiu o laço apertar ainda mais seu pescoço.

— Sempre quis saber qual é o gosto de um homem.

Pressionou ainda mais a correia, inclinou-se para a frente e beijou Mikael na boca, bem no momento em que uma voz cortante soou no porão.

— Seu canalha... Você deveria saber que só eu tenho o direito de fazer isso.

Mikael ouviu a voz de Lisbeth através de uma neblina vermelha. Conseguiu focalizar os olhos e a viu de pé à porta. Ela fitava Martin Vanger com um olhar inexpressivo.

— Não... corra! — grasnou Mikael.

Ele não viu a expressão de Martin Vanger, mas sentiu fisicamente o choque que percorreu o corpo dele quando se virou. Por um segundo, Martin ficou imóvel, depois estendeu a mão para alcançar a pistola que deixara em cima da cadeira.

Num relâmpago, Lisbeth deu três passadas e ergueu um taco de golfe que trazia escondido. O taco descreveu um amplo círculo no ar e atingiu Martin na clavícula. O golpe foi fortíssimo, Mikael ouviu quebrar-se alguma coisa. Martin Vanger urrou.

— Gosta de dor? — perguntou Lisbeth Salander.

Sua voz era áspera como uma lixa. Enquanto vivesse, Mikael jamais esqueceria o rosto dela no momento do ataque. Lisbeth mostrou os dentes como uma fera. Os olhos eram negros e brilhantes. Movia-se com a rapidez de uma aranha e parecia inteiramente concentrada em sua presa quando desferiu um novo golpe em Martin Vanger, nas costelas.

Ele tropeçou na cadeira e estatelou-se no chão. A pistola caiu diante de Lisbeth, que, com o pé, atirou-a para longe.

Ela o golpeou então uma terceira vez, no momento em que Martin tentava se levantar. Um estalo indicou que o atingira no quadril. Martin emitiu um som terrível. O quarto golpe se abateu sobre suas costas.

— Lis... errth... — arquejou Mikael.

Ele estava perdendo a consciência, e a dor nas têmporas era quase insuportável.

Lisbeth virou-se para ele e viu seu rosto vermelho, cor de tomate, os olhos esbugalhados de pavor e a língua começando a sair pela boca.

Lançou um olhar rápido em volta e viu a faca no chão. Olhou brevemente para Martin Vanger, que havia se ajoelhado e tentava escapar, com um braço pendendo frouxamente. Ele não seria um problema muito sério nos próximos segundos. Soltou o taco e pegou a faca. Embora tivesse a ponta afiada, ela estava quase sem fio. Lisbeth ficou na ponta dos pés e tentou febrilmente cortar a correia. Demorou alguns segundos até Mikael conseguir se apoiar no chão. Mas o nó corrediço continuava prendendo seu pescoço.


* * *

Lisbeth Salander voltou a olhar para Martin Vanger. Ele conseguira ficar de pé, porém estava curvado sobre si mesmo. Ela o ignorou e tentou enfiar os dedos entre a correia e o pescoço de Mikael. No início não ousou utilizar a faca, mas por fim decidiu introduzir a ponta dela ali, esfolando a pele ao tentar desfazer o nó. Este acabou cedendo e Mikael, num estertor, aspirou um pouco de ar.

Por um breve instante, Mikael teve a maravilhosa sensação de união entre corpo e espírito. Sua visão voltou a ficar perfeita, ele conseguia enxergar o menor grão de poeira no cômodo. Era como se cada respiração, cada roçar de roupa saíssem de alto-falantes direto para seus ouvidos; ele também sentia o cheiro da transpiração de Lisbeth e do couro de sua jaqueta. Depois, como um raio luminoso, o sangue afluiu novamente à cabeça e seu rosto recuperou a cor normal.

Lisbeth Salander virou a cabeça no momento em que Martin fugia pela porta. Ergueu-se num salto e pegou a pistola no chão, verificando se estava carregada. Destravou-a. Mikael notou que ela parecia familiarizada com as armas. Olhando em volta, os olhos dela se detiveram por meio segundo nas chaves das algemas em cima da mesa.

— Eu cuido dele — disse enquanto corria em direção à porta. No caminho apanhou as chaves e as fez deslizar pelo chão, até onde Mikael estava.

Ele tentou lhe pedir que esperasse, mas só conseguiu emitir um som rouco quando ela já havia desaparecido pela porta.


Lisbeth não esquecera que Martin Vanger possuía um rifle em algum lugar. Segurando a pistola engatilhada, ela se deteve ao chegar à passagem entre a garagem e a cozinha. Ficou prestando atenção, mas nenhum ruído revelou onde se achava a sua presa. Instintivamente dirigiu-se à cozinha. Quando já estava quase lá, ouviu um carro dar a partida.

Deu meia-volta e correu para o pátio, onde viu as luzes traseiras de um carro passando diante da casa de Henrik Vanger em direção à ponte. Correu o mais rápido que pôde até a casa dos convidados, pôs a pistola no bolso da jaqueta e não perdeu tempo com o capacete quando ligou a moto. Alguns segundos depois, atravessava a ponte.

Ele estava talvez uns noventa segundos à sua frente quando ela chegou ao viaduto de acesso à rodovia E4. Não o viu. Freou e desligou o motor para escutar.

O céu estava carregado de nuvens. No horizonte despontava um começo de aurora. Então avistou os faróis do carro de Martin Vanger na E4, na direção sul. Lisbeth acionou a moto e passou sob o viaduto. Estava a oitenta quilômetros por hora quando saiu da curva de acesso e entrou na pista, sem tráfego naquele momento. Acelerou tudo. Depois de uma curva, num longo declive da estrada, atingiu cento e setenta quilômetros por hora, o máximo que sua máquina de baixa cilindrada podia alcançar. Dois minutos depois, avistou o carro de Martin Vanger a cerca de quatrocentos metros.

Análise dos parâmetros. Que devo fazer agora?

Reduziu para cento e vinte quilômetros por hora, mantendo a mesma velocidade que a dele. Em algumas curvas perdeu-o de vista por alguns segundos. Depois pegaram um longo trecho reto. Ela estava a uns duzentos metros atrás de Martin Vanger.

Certamente ele viu o farol da moto, pois acelerou a marcha. Ela voltou a exigir o máximo da moto, mas nas curvas perdia terreno.

De longe ela viu os faróis de um caminhão. Martin Vanger também viu. Inesperadamente, ele acelerou ainda mais e passou para a pista da esquerda cento e cinquenta metros antes do choque. Lisbeth viu o caminhão frear e dar repetidos sinais de farol, mas a colisão foi inevitável. O carro de Martin Vanger chocou-se contra o caminhão com um estrondo terrível.

Lisbeth freou instintivamente ao ver o caminhão virar na pista. Na velocidade em que estava, levou dois segundos para chegar ao local do acidente e por pouco não foi atingida pela traseira do caminhão. Quando passou, viu com o canto do olho labaredas surgindo na parte dianteira.

Continuou por mais uns cento e cinquenta metros antes de parar e se virar. Viu o motorista do caminhão saltar da cabine. Então seguiu até Akerby, dois quilômetros ao sul, onde entrou à esquerda para pegar a estrada velha rumo ao norte, paralela à E4. Passou pelo local do acidente e viu que dois carros haviam parado. O de Martin estava totalmente esmagado debaixo do caminhão, envolto em labaredas enormes. Um homem tentava apagar o fogo com um pequeno extintor.

Ela acelerou e logo estava de volta a Hedeby. Cruzou a ponte, estacionou em frente à casa dos convidados e retornou a pé para a casa de Martin Vanger.


* * *

Mikael continuava tentando se livrar das algemas. Suas mãos estavam tão dormentes que ele não conseguia pegar a chave. Lisbeth abriu as algemas e o manteve apertado contra o peito até o sangue voltar a circular por suas mãos.

— E Martin? — perguntou Mikael com uma voz rouca.

— Morto. Chocou-se de frente, a cento e cinquenta por hora, contra um caminhão a poucos quilômetros daqui, na E4.

Mikael fitou-a espantado. Não fazia muito tempo que ela havia saído.

— Precisamos... chamar a polícia — arquejou Mikael antes de ser tomado por um violento acesso de tosse.

— Para quê? — perguntou Lisbeth Salander.


Mikael não conseguia se levantar. Permaneceu sentado no chão ainda por dez minutos, nu e encostado à parede. Massageou-se no pescoço e ergueu a garrafa de água com dedos insensíveis. Lisbeth esperou pacientemente ele se recuperar. Aproveitou para refletir.

— Vista-se.

Ela utilizou a camiseta cortada de Mikael para limpar as impressões digitais nas algemas, na faca e no taco de golfe. Pegou a garrafa de água.

— O que está fazendo?

— Vista-se. Está amanhecendo. Vamos, depressa.

Mikael ergueu-se sobre as pernas cambaleantes e conseguiu vestir a cueca e a calça. Enfiou os pés nos tênis. Lisbeth pôs as meias dele no bolso da jaqueta e perguntou:

— Tocou em alguma coisa aqui no porão?

Mikael olhou ao redor, tentando se lembrar. Por fim, disse que não havia tocado em nada a não ser na porta e nas chaves. Lisbeth encontrou as chaves no casaco que Martin Vanger deixara no encosto da cadeira. Limpou meticulosamente a maçaneta da porta e o interruptor, depois apagou a luz. Conduziu Mikael até o alto da escada e pediu-lhe que esperasse na passagem, enquanto ela recolocava o taco de golfe no lugar. Ao voltar, trazia uma camiseta escura que pertencera a Martin Vanger.

— Vista. Não quero que alguém te veja passeando sem camisa de madrugada.

Mikael percebeu que estava em estado de choque. Lisbeth assumira o comando e ele obedecia a suas ordens sem discutir. Deixaram a casa de Martin Vanger. Enquanto caminhavam, ela o amparava com seu corpo. Quando cruzaram a porta de Mikael, ela voltou-se para ele e disse:

— Se alguém nos viu e perguntar o que estávamos fazendo lá fora esta noite, diga que fomos dar um passeio até o promontório e depois transamos por lá.

— Lisbeth, não posso...

— Agora vá tomar um banho!

Ajudou-o a tirar as roupas e apontou-lhe o banheiro. Depois foi preparar um café e meia dúzia de torradas com queijo, patê de fígado e pepino em conserva. Estava sentada à mesa da cozinha, mergulhada numa intensa reflexão, quando Mikael retornou, mancando. Ela examinou os ferimentos e as escoriações visíveis em seu corpo. A correia deixara uma mancha vermelha-escura em volta da garganta e a faca produzira um corte no lado esquerdo do pescoço.

— Venha — ela disse. — Deite-se na cama.

Foi buscar curativos e cobriu a ferida com uma compressa. Depois serviu-lhe café e estendeu-lhe uma torrada.

— Não estou com fome — disse Mikael.

— Coma! — ordenou Lisbeth Salander, enquanto ela mesma dava uma grande bocada na torrada de queijo.

Mikael fechou os olhos por alguns segundos. Depois sentou-se e mordeu a torrada. Sua garganta doía tanto que mal conseguia engolir.

— Deixe o café esfriar um pouco. Deite-se de bruços.

Ela ficou cinco minutos massageando-lhe as costas com uma pomada. Depois virou-o de frente para ela e administrou o mesmo tratamento na parte frontal do corpo.

— Vai ficar com alguns sérios hematomas durante um bom tempo.

— Lisbeth, precisamos chamar a polícia.

— Não — ela disse, e com tal determinação na voz que Mikael arregalou os olhos. — Se você chamar a polícia, eu vou embora. Não quero nada com eles. Martin Vanger está morto. Morreu num acidente de carro. Há testemunhas. Deixe a polícia ou quem quer que seja descobrir aquela maldita câmara de tortura. Você e eu não sabemos de nada, assim como os outros habitantes do povoado.

— Por quê?

Ela ignorou a pergunta e continuou a massagear-lhe as coxas doloridas.

— Lisbeth, mas é simplesmente impossível...

— Se você continuar me aborrecendo, eu te levo de volta à masmorra de Martin e te acorrento de novo.

Nem havia terminado a frase quando Mikael adormeceu, tão subitamente como se tivesse desmaiado.


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