18 - TERÇA-FEIRA 29 DE MARÇO – QUARTA-FEIRA 30 DE MARÇO


Três investigações paralelas sobre os assassinatos de Enskede estavam, portanto, em andamento. A primeira era a do inspetor Bublanski, que tinha a vantagem de representar a autoridade do Estado. Tudo indicava que a solução estava bem ao alcance da mão; tinham uma suspeita e uma arma do crime associada a essa suspeita. Tinham uma ligação incontestável com a primeira vítima e uma possível ligação, através de Mikael Blomkvist, com as duas outras vítimas. Para Bublanski, praticamente só faltava encontrar Lisbeth Salander e enfiá-la numa cela da casa de detenção de Kronoberg.

A investigação de Dragan Armanskij estava formalmente subordinada à investigação oficial da polícia, mas Armanskij também tinha uma agenda própria. Sua intenção era, de certa forma, cuidar dos interesses de Lisbeth Salander - descobrir a verdade e, de preferência, uma verdade com circunstâncias atenuantes.

A investigação mais incômoda era a da Millennium. A revista careciatotalmente dos recursos de que dispunham tanto a polícia como a empresa de Armanskij. Ao contrário da polícia, Mikael Blomkvist não estava particularmente interessado em descobrir um motivo plausível que pudesse ter levado Lisbeth Salander a Enskede para matar seus dois amigos. Em dado momento, durante os feriados da Páscoa, ele concluíra que simplesmente não acreditava naquela história. Se Lisbeth Salander estava envolvida de alguma maneira nos assassinatos, era necessariamente por motivos bem diversos dos que a investigação oficial dava a entender. Outra pessoa tinha segurado a arma, ou então alguma coisa escapara do controle de Lisbeth Salander.

Niklas Eriksson permaneceu calado no trajeto de táxi entre Slussen e a delegacia central de Kungsholmen. Estava deslumbrado por se ver afinal, e sem aviso prévio, em meio a uma legítima investigação policial. Olhou de lado para Steve Bohman, que relia mais uma vez o resumo de Armanskij. Então sorriu de repente consigo mesmo.

Aquela missão lhe oferecia uma chance totalmente inesperada de viver uma ambição que nem Armanskij nem Steve Bohman conheciam ou sequer adivinhavam. Achava-se, de repente, em condições de apanhar Lisbeth Salander. Esperava poder contribuir para sua detenção. Esperava que ela fosse condenada à prisão perpétua.

Todo mundo sabia que Lisbeth Salander não era muito popular na Milton Security. A maioria dos colaboradores que tinham lidado com ela a consideravam uma chave de cadeia. Mas nem Bohman nem Armanskij desconfiavam até que ponto Niklas Eriksson odiava Lisbeth Salander.

A vida havia sido injusta com Niklas Eriksson. Ele era um sujeito bonito. Um homem na flor da idade. Além disso, era inteligente. Ainda assim, estava excluída para sempre qualquer possibilidade de ele vir a ser o que sempre sonhara, ou seja, um policial. Seu problema era um sopro no coração, causado por uma lesão microscópica de uma válvula. Ele fora operado e o defeito, corrigido, mas, pelo fato de ter tido um problema cardíaco, fora definitivamente desclassificado e julgado um ser humano de categoria inferior.

Quando lhe propuseram trabalhar na Milton Security, ele aceitou. Mas foi sem o menor entusiasmo. Considerava a Milton uma lixeira de indivíduos inúteis - tiras aposentados e que já não estavam à altura. E ele era um desses rejeitados, sem ser responsável por isso.

Quando começou a trabalhar na Milton, uma de suas primeiras missões foi auxiliar a unidade de intervenção. Ele tinha que fazer uma aná­lise de segurança para a proteção pessoal de uma cantora mundialmente famosa, e já não tão jovem, que vinha sofrendo ameaças de um admirador demasiado afoito, que além disso era um paciente psiquiátrico foragido. A cantora morava sozinha numa mansão em Södertörn, onde a Milton havia instalado um sistema de vigilância e um alarme, e deixado um guarda-costas de plantão. Certa noite, já bem tarde, o admirador afoito tentou entrar arrombando a casa. O guarda-costas neutralizou rapidamente o sujeito, que foi depois condenado por ameaças e arrombamento, e despachado de volta para o asilo.

Por duas semanas, Niklas Eriksson fora várias vezes à mansão de Södertörn, acompanhando outros funcionários da Milton. Achava que a cantora madurona tinha um ar altivo de megera esnobe, e olhara espantada para ele quando ele bancou o sedutor. Ela deveria era se dar por feliz de um admirador ainda se lembrar dela.

Desprezava a maneira como o pessoal da Milton lambia as botas daquela mulher. Mas, evidentemente, não expressara sua opinião.

Certa tarde, pouco antes da prisão do admirador, a cantora e mais dois funcionários da Milton achavam-se à beira de uma pequena piscina nos fundos da casa, enquanto ele próprio estava lá dentro tirando fotos das portas e janelas que precisariam eventualmente ser reforçadas. Andara de um cômodo a outro até chegar ao quarto da mulher, e de repente não resistira à tentação de abrir uma cômoda. Encontrara uma dúzia de álbuns fotográficos datando da sua época de glória, nos anos 1970 e 1980, quando ela e sua orquestra faziam turnês pelo mundo inteiro. Encontrara também uma caixa com fotos muito pessoais da cantora. Fotos relativamente inocentes, mas que, com alguma imaginação, poderiam ser vistas como “ensaios eróticos”. Meu Deus, que mocreia! Ele roubara cinco das fotos mais ousadas, aparentemente tiradas por algum amante e decerto guardadas como recordação.

Fizera cópias e em seguida repusera os originais no lugar. Depois, esperou cinco meses antes de vendê-las a um tabloide inglês. Tinham-lhe pagado nove mil libras. As fotos deram o que falar.

Ele até hoje não sabia como Lisbeth Salander tinha feito. Pouco depois de as fotos serem publicadas, ela o procurou. Sabia que era ele quem vendera as fotos. Ameaçou denunciá-lo a Dragan Armanskij se voltasse a fazer coisas daquele tipo. Ela o teria denunciado se pudesse se fundamentar em documentos - o que aparentemente ela não estava em condições de fazer. Mas, a partir daquele dia, sentiu que ela o vigiava. Assim que ele se virava, deparava com seus olhinhos suínos.

Ele se sentira acuado e frustrado. O único revide possível tinha sido minar a credibilidade dela alimentando fofocas a seu respeito na sala dos funcionários, mas sem muito êxito. Não ousava chamar muita atenção, pois sabia, como todos na empresa, que por algum motivo incompreensível ela era protegida pelo próprio Armanskij. Eriksson se perguntava que espécie de poder ela tinha sobre o presidente da Milton, ou se era o caso de pensar que o velho safado a comia escondido. Embora ninguém na Milton gostasse muito de Lisbeth Salander, os funcionários respeitavam Armanskij e aceitavam a presença daquela garota estranha. Niklas Eriksson experimentara um alívio enorme com sua progressiva saída de cena e o cessar de suas atividades na Milton.

Uma oportunidade de lhe dar o troco acabava de surgir. Finalmente, sem risco algum. Ela poderia acusá-lo do que quisesse - ninguém iria acreditar. Nem Armanskij daria crédito a uma assassina psicopata.

O inspetor Bublanski viu Hans Faste sair do elevador na companhia de Bohman e Eriksson, da Milton Security. Faste tinha ido buscar os novos colaboradores na entrada de segurança. Bublanski não se entusiasmava muito com a idéia de abrir os arquivos de uma investigação por homicídio para pessoas de fora, mas era decisão de seus superiores e... afinal, Bohman era um policial de verdade, já com bons quilômetros rodados. E Eriksson, egresso da escola de polícia, não podia ser um total imbecil. Bublanski indicou a sala de reuniões.

A caçada a Lisbeth Salander estava em seu sexto dia e era hora de fazer um balanço. O procurador Ekström não participava da reunião. Estavam presentes os inspetores Sonja Modig, Hans Faste, Curt Bolinder e Jerker Holmberg, reforçados por quatro colegas da unidade de investigação da Criminal Nacional. Bublanski começou apresentando os novos colaboradores da Milton Security e perguntou se um deles gostaria de dizer algumas palavras. Bohman clareou a garganta.

— Já faz algum tempo que deixei esta casa, mas alguns de vocês me conhecem e sabem que fui um dos seus durante muitos anos, antes de passar para o setor privado. O motivo da nossa presença aqui é que a Salander trabalhou vários anos para nós e, de certa forma, nos sentimos um pouco responsáveis. Nossa missão é colaborar no que for possível para a rápida prisão de Salander. Podemos fornecer algumas informações pessoais sobre ela. Portanto, não estamos aqui para atrapalhar a investigação nem para aprontar com vocês por baixo do pano.

—Que tipo de colega ela era? - perguntou Faste.

—Não exatamente uma pessoa que dava vontade de abraçar respondeu Niklas Eriksson.

Ele se calou quando Bublanski levantou a mão.

—Teremos oportunidade de abordar mais detalhes durante a reunião. Mas vamos analisar as coisas dentro de uma certa ordem, para obtermos uma visão coerente da situação. Terminada a reunião, vocês dois vão se encontrar com o procurador Ekström para assinar um juramento de segredo profissional. Agora, vamos começar com Sonja.

—É frustrante. Apenas fizemos progresso poucas horas depois do assassinato, quando identificamos Salander. Localizamos seu domicílio, ou o que pensamos ser seu domicílio. Depois, nem uma mínima pista sequer. Recebemos umas trinta ligações de pessoas que a teriam visto, mas até agora todas se revelaram falsas. Ela parece ter evaporado.

—O que é meio incompreensível - disse Curt Bolinder. —Ela tem uma aparência física bem característica, usa tatuagens, não deveria ser difícil encontrá-la.

—A polícia de Uppsala fez uma blitz ontem, dessas com fanfarra e banda de música, baseada numa informação dessas. Tudo isso para pôr as mãos num garoto de catorze anos parecido com a Salander, que levou um susto daqueles. Os pais não ficaram lá muito contentes, posso garantir.

—Imagino que não ajude estarmos buscando uma pessoa que aparenta ter catorze anos. Ela pode sumir no meio de turmas de jovens.

—Mas com a publicidade que a mídia vem fazendo em torno dela, alguém teria que ter visto alguma coisa - objetou Bolinder. —Ela vai passar no Procura-se desta semana, vamos ver se dá em alguma coisa.

—Custo a acreditar, quando penso que ela foi manchete de todos os jornais suecos - disse Hans Faste.

—Isso significa que a gente talvez tenha que mudar o raciocínio - disse Bublanski. —Ela pode ter conseguido fugir para o exterior, mas é mais provável que esteja escondida em algum lugar, esperando.

Bohman levantou a mão. Bublanski lhe fez um sinal com a cabeça.

—A imagem que temos dela não indica que ela seja autodestrutiva. É uma fina estrategista e planeja suas ações como um jogador de xadrez. Não faz nada sem analisar as conseqüências. Esta é, pelo menos, a opinião de Dragan Armanskij.

—É também a opinião do ex-psiquiatra dela. Mas vamos deixar de lado, por enquanto, a personalidade dela - disse Bublanski. —Mais cedo ou mais tarde ela vai ter que fazer algum movimento. Jerker, quais são os recursos financeiros dela?

—Esta vocês vão adorar - disse Jerker Holmberg. —Há muitos anos ela tem uma conta no Handelsbanken. Esse é o dinheiro que ela declara. Ou melhor, que o doutor Bjurman declarava. Há um ano, essa conta acusava um saldo de cem mil coroas. No outono de 2003, ela sacou toda essa quantia.

—Ela precisou de dinheiro líquido no outono de 2003. Segundo Armanskij, foi quando ela parou de trabalhar na Milton Security - disse Bohman.

—Pode ser. A conta ficou zerada por duas semanas. Depois, a mesma quantia voltou a ser depositada.

—Ela pode ter achado que ia precisar do dinheiro para alguma coisa, acabou não usando e pôs o dinheiro de volta no banco.

—Faz sentido. Em dezembro de 2003, ela usou essa conta para pagar algumas faturas, inclusive às taxas de condomínio do ano seguinte. O saldo ficou em setenta mil coroas. Depois disso, nenhuma movimentação durante um ano, com exceção de um depósito de nove mil coroas e alguma coisa. Verifiquei, era a herança da mãe dela.

—Certo.

—Em março deste ano, ela sacou o dinheiro da herança, a quantia exata era de 9312 coroas. Foi à única vez que ela mexeu nessa conta.

—Mas então do que é que ela vive caramba?

—Escutem esta. Em janeiro deste ano, ela abriu outra conta. Desta vez no SEB. Depositou dois milhões de coroas.

—O quê?

—De onde saiu esse dinheiro? - perguntou Modig.

—Foi transferido para a conta dela a partir de um banco das ilhas anglo-normandas.

O silêncio tomou conta da sala de reuniões.

—Não estou entendendo - disse Sonja Modig por fim.

—Quer dizer que esse dinheiro ela não declarou? - perguntou Bublanski.

—É, mas tecnicamente ela não precisa declarar antes do próximo ano. Observe que essa quantia não consta no relatório mensal de Bjurman sobre a situação financeira de Salander.

—Você quer dizer que ou ele não estava a par, ou eles estavam tramando alguma coisa juntos. Jerker, em que pé estamos no aspecto técnico?

—Ontem à noite fiz um balanço com o chefe do inquérito preliminar. 0 que sabemos é o seguinte. Primeiro: temos condições de estabelecer a ligação entre Salander e os dois locais dos crimes. Achamos suas impressões digitais na arma do crime e nos estilhaços de uma xícara de café quebrada em Enskede. Estamos aguardando a resposta sobre as amostras de DNA que colhemos... mas não há quase nenhuma dúvida de que ela esteve no apartamento.

—Certo.

—Segundo: temos suas impressões digitais na embalagem da arma encontrada no apartamento do doutor Bjurman.

—Certo.

—Terceiro: temos, finalmente, uma testemunha que a viu no local do crime em Enskede. O balconista de uma tabacaria se manifestou dizendo que Lisbeth Salander comprou um pacote de Marlboro light na sua loja na noite do crime.

—E levou todo esse tempo para resolver falar.

—Ele viajou no feriadão, como todo mundo. O fato é que a tabacaria fica na esquina, aqui - Jerker Holmberg mostrou um mapa -, a uns cento e noventa metros do local do crime. Ela entrou um pouco antes de a loja fechar, às vinte e duas horas. Ele nos deu uma descrição perfeita.

—A tatuagem no pescoço? - perguntou Curt Bolinder.

—Ele foi meio vago sobre isso. Acha que se lembra de uma tatuagem. Mas notou com segurança que ela tinha um piercing na sobrancelha.

—E o que mais?

—Não há muito mais que isso como prova puramente técnica. Mas é o suficiente.

—Faste, e o apartamento da Lundagatan?

—Achamos as digitais dela, mas não acredito que ela more lá. Viramos o apartamento de ponta-cabeça e tudo parece pertencer a Miriam Wu. Ela só foi incluída no contrato em fevereiro deste ano.

—O que se sabe sobre ela?

—Nenhuma condenação. Lésbica assumida. Participa às vezes de shows e coisas assim, na Gay Pride. Ela faz de conta que estuda sociologia e é coproprietária de uma butique pornô na Tegnérgatan. A Domino Fashion.

—Butique pornô? - perguntou Sonja Modig, erguendo as sobrancelhas.

Uma vez, para agradar o marido, ela havia comprado uma lingerie sexy na Domino Fashion. Coisa que não tinha a menor intenção de revelar aos homens daquela mesa.

—É, eles vendem algemas e roupa de puta, coisas assim. Se estiver procurando um chicote...

—Não é uma butique pornô, é uma butique de moda para pessoas que gostam de lingerie refinada - ela disse.

—Dá na mesma.

—Prossiga - disse Bublanski, irritado. —Não temos nenhuma pista da Miriam Wu.

—Nenhuma.

—Ela pode ter viajado no feriado - sugeriu Sonja Modig.

—Ou então a Salander acabou com ela também - sugeriu Faste. —Ela talvez queira varrer do mapa todos os seus conhecidos.

—Com que então, a Miriam Wu é lésbica. Devemos concluir que a Salander e ela estão juntas?

—Acho que podemos tranqüilamente concluir que existe uma relação sexual - disse Curt Bolinder. —Me baseio em várias coisas. Primeiro, achamos as digitais da Lisbeth Salander em torno da cama do apartamento. Também achamos digitais nas algemas, que obviamente foram usadas como brinquedo sexual.

—Então ela decerto vai apreciar as algemas que estou reservando para ela - disse Hans Faste.

Sonja Modig suspirou profundamente.

—Prossiga - disse Bublanski.

—Segundo: temos a informação de que a Miriam Wu flertou pesado no Moulin com uma garota cuja descrição corresponde à de Salander. Foi há uns quinze dias. O informante diz que conhece a Salander, que já cruzou com ela no Moulin, embora este ano ela não tenha sido vista por lá, já que estava no exterior. Não tive tempo de verificar com os funcionários. Vou ver isso hoje à tarde.

—O dossiê dela no Serviço Social não menciona que ela é lésbica. Na adolescência, ela volta e meia fugia das famílias adotivas para dar em cima dos homens nos bares. Foi pega várias vezes na companhia de homens mais velhos.

—Ela além de tudo rodava a bolsinha! - disse Hans Faste.

—O que se sabe sobre os amigos dela? Curt?

—Praticamente nada. Ela não foi interpelada desde os dezoito anos. Conhece o Dragan Armanskij e o Mikael Blomkvist, isso a gente sabe. E também a Miriam Wu, claro. A mesma fonte que me falou sobre ela e a Wu no Moulin disse que antigamente ela andava com um grupo de meninas. O grupo atendia pelo nome de Evil Fingers.

—Evil Fingers? O que é isso? - Bublanski quis saber.

—Parece um troço de ocultismo. Elas costumavam se encontrar para farrear.

—Não me diga que a Salander também é uma maldita satanista - disse Bublanski. —A mídia vai adorar.

—Um grupo de lésbicas satanistas - sugeriu Faste generosamente.

—Hans, você tem uma visão medieval das mulheres - disse Sonja Modig. —Até eu já ouvi falar nas Evil Fingers.

—Ah, é? - disse Bublanski, surpreso.

—Era um grupo feminino de rock do final dos anos 1990. Não eram superestrelas, mas teve uma época em que foram relativamente famosas.

—Ou seja, lésbicas satânicas tocando hard rock — disse Hans Faste.

—Está bem, chega - disse Bublanski. —Hans, você e o Curt se informem sobre as integrantes do Evil Fingers e falem com elas. A Salander tinha outros amigos?

—Não muitos além do seu ex-tutor, Holger Palmgren. Mas ele está passando por um tratamento prolongado depois que teve um derrame, parece que é bem grave. Não, não posso dizer que descobri um círculo de amizades. Aliás, também não descobrimos onde a Salander mora, nem um caderno de endereços, mas não parece que ela tenha muitos amigos próximos.

—Mesmo assim, ninguém pode andar por aí feito um fantasma, sem deixar vestígios. O que pensar de Mikael Blomkvist?

—A gente não o seguiu propriamente, mas ficamos dando sinal de vida durante o fim de semana - disse Faste. —Para o caso de a Salander se manifestar. Ele foi para casa depois do trabalho e parece não ter saído do apartamento durante o feriado.

—Acho difícil Mikael Blomkvist estar envolvido no assassinato - disse Sonja Modig. —A versão dele faz sentido e ele nos forneceu um cronograma detalhado de seus passos na noite do crime.

—Mas ele conhece a Salander. É o elo entre ela e o casal de Enskede. E há também o depoimento dele sobre os dois homens que agrediram a Salander uma semana antes dos assassinatos. O que pensar disso?

—Com exceção do Blomkvist, não há nenhuma outra testemunha dessa agressão... ou dessa suposta agressão - disse Faste.

—Você acha que o Blomkvist está inventando ou mentindo?

—Talvez, para desviar a atenção da Salander.

—Nada disso faz realmente sentido. Foi o Blomkvist que aventou a teoria de que o casal de Enskede foi morto por causa do livro que o Dag Svensson estava escrevendo.

—Isso é balela - disse Faste. —Foi a Salander. Por que alguém iria assassinar o tutor dela para calar o Dag Svensson? E quem... um cara da polícia?

—Se o Blomkvist publicar essa teoria vamos ficar numa pior, com pistas policiais para todo lado — disse Curt Bolinder.

Todos menearam a cabeça.

—Certo - disse Sonja Modig. —Ela matou o Bjurman por quê?

—E o que significa aquela tatuagem? - perguntou Bublanski, mostrando a foto da barriga de Bjurman.

SOU UM PORCO SÁDICO, UM CANALHA ESTUPRADOR. Um breve silêncio caiu sobre o grupo.

—O que dizem os médicos? - quis saber Bohman.

— A tatuagem data de três anos. Eles podem ver isso pela pele, conforme a profundidade do sangramento - disse Sonja Modig.

—Podemos pressupor que o Bjurman não mandou fazer a tatuagem por livre e espontânea vontade.

—Verdade que existem tarados por toda parte, mas imagino que essa não seja uma tatuagem corriqueira, mesmo entre os fanáticos.

Sonja Modig balançou o indicador.

—O médico legista diz que, tecnicamente falando, é uma péssima tatuagem, o que eu mesma também constatei. Conclusão: foi feita por um amador. A agulha não foi aplicada sempre com a mesma profundidade, e é uma tatuagem imensa numa parte muito sensível do corpo. Deve ter sido um procedimento extremamente doloroso, que pode quase ser colocado no mesmo nível de golpes e ferimentos agravados.

—A não ser pelo fato de o Bjurman nunca ter dado queixa - disse Faste.

—Eu também não daria queixa se me tatuassem um slogan desses na barriga — observou Curt Bolinder.

—Tenho outra coisa aqui - disse Sonja Modig - que talvez possa reforçar a mensagem da tatuagem. É sobre o Bjurman ser um porco sádico.

Ela abriu uma pasta com fotos impressas e as fez circular.

—Só imprimi uma pequena amostra. Mas está aí o que encontrei num arquivo do disco rígido do Bjurman. São fotos baixadas da internet. O computador dele contém mais de duas mil fotos desse tipo.

Faste deu um assobio e mostrou a foto de uma mulher amarrada numa posição brutal e desconfortável.

—Talvez seja algo para a Domino Fashion ou as Evil Fingers - disse ele.

Bublanski fez um gesto irritado com a mão para que Faste calasse a boca.

—Como devemos interpretar isso? - perguntou Bohman.

—A tatuagem tem, digamos... dois anos - disse Bublanski. —Foi mais ou menos na época em que Bjurman ficou doente. Nem o médico legista nem o arquivo médico dele registram qualquer doença grave além da hipertensão. Logo, podemos imaginar que exista uma relação.

—A Salander se mudou no decorrer desse mesmo ano - disse Bohman. —Parou, de repente, de trabalhar para a Milton e se mandou para o exterior.

—Todos concordam que pode haver alguma relação aí também? Se a mensagem da tatuagem estiver certa, o Bjurman teria estuprado alguém. Salander era, sem dúvida, indicada para isso. Nesse caso, seria um bom motivo para um assassinato.

—Mas também poderia haver outras interpretações - disse Hans Faste. —Imagino muito bem um cenário em que a Salander e a china oferecem uma espécie de serviço de acompanhamento ligeiramente sadomasô. Sendo o Bjurman um desses birutas que gozam quando chicoteados por menininhas. Ele pode ter desenvolvido uma espécie de relação de dependência com a Salander e as coisas azedaram.

—Mas isso não explica por que ela teria ido até Enskede.

—Se o Dag Svensson e a Mia Bergman estavam prestes a denunciar o comércio do sexo, eles podem ter topado com a Salander e a Wu. Aí pode ter surgido um motivo para a Salander matar os dois.

—O que nos deixa com mais especulações ainda - disse Sonja Modig. A reunião se estendeu por mais uma hora, e também foi debatido o sumiço do computador de Dag Svensson. Quando pararam para almoçar, sentiam-se todos frustrados. A investigação estava com mais pontos de interrogação do que nunca.

Erika Berger telefonou para Magnus Borgsjö, da direção do Svenska Morgon-Posten, assim que chegou à redação na terça-feira de manhã.

—Estou interessada - disse ela.

—Eu tinha certeza.

—Eu pretendia te comunicar a minha decisão logo depois do feriado da Páscoa, mas, como você pode imaginar a redação aqui está um verdadeiro caos.

—O assassinato de Dag Svensson. Meus sinceros pêsames. É uma história feia essa.

—Então você entende que não é uma boa hora para eu anunciar que vou abandonar o barco.

Ele ficou um instante em silêncio.

—Estamos com um problema - disse Borgsjö.

—Qual?

—Quando conversamos a primeira vez, eu disse que o cargo teria de ser preenchido no dia 1° de agosto. Mas ocorre que Hãkan Morander, o redator-chefe que você deverá substituir, não está nada bem de saúde. Está com problemas cardíacos e precisa reduzir as atividades. Ele conversou com o médico há alguns dias e acabo de saber que ele vai deixar o cargo em 1- de julho. Pensei que ele ficaria até o outono e que você poderia ir tomando pé da situação junto com ele, em agosto e setembro. Mas na atual situação temos uma crise. Erika precisamos de você aqui a partir de 1- de maio; 15 de maio no mais tardar.

—Meu Deus. Isso é daqui a umas poucas semanas.

—Você continua interessada?

—Sim... mas significa que só tenho um mês para organizar as coisas na Millennium.

—Eu sei, Erika, sinto muito. Mas sou obrigado a pressioná-la. Agora, um mês deveria ser mais que suficiente para você encerrar suas pendências numa revista que tem meia dúzia de funcionários.

—Mas isso significa eu largar tudo bem no meio do caos.

—Você vai largar de qualquer jeito. Só estamos antecipando em algumas semanas.

—Quero colocar umas condições.

—Estou escutando.

—Vou continuar no conselho administrativo da Millennium.

—Não é muito pertinente. Está certo que a Millennium é uma revista mensal, e muitíssimo menor, mas do ponto de vista técnico somos concorrentes.

—Não importa. Eu ficaria totalmente alheia às atividades da redação da Millennium, mas não tenho a menor intenção de vender minha parte. De modo que permaneço no C. A.

—Está certo, a gente dá um jeito.

Marcaram um encontro com a direção da empresa na primeira semana de abril a fim de discutirem alguns detalhes e redigir o contrato.

* * *

Mikael Blomkvist teve uma sensação de déjà vu ao examinar a lista de suspeitos que tinha elaborado com Malu no fim de semana. Nela constavam trinta e sete nomes que Dag Svensson maltratava sem dó nem piedade em seu livro. Entre eles, vinte e um eram de clientes que ele tinha conseguido identificar.

Mikael se lembrou de repente da sua caçada a um assassino em Hedestad, dois anos antes, cuja galeria de suspeitos, no início, somava quase cinquenta pessoas. Ele fora obrigado a se deter em especulações sobre a eventual culpabilidade de cada uma.

Por volta das dez horas de terça-feira, fez um sinal pedindo a Malu Eriksson que viesse até sua sala. Fechou a porta e convidou-a a se sentar.

Permaneceram em silêncio enquanto tomavam um cafezinho. Por fim, ele lhe passou a lista dos trinta e sete nomes levantados no fim de semana.

—O que a gente faz?

—Para começar, vamos mostrar essa lista para a Erika daqui a uns dez minutos. Depois, vamos tentar analisar nome por nome. Pode ser que alguém da lista tenha relação com os assassinatos.

—E como a gente faz para analisar?

—Eu vou me concentrar nos vinte e um clientes sexuais nominalmente citados no livro. Eles têm mais a perder do que os outros. Vou retomar onde o Dag parou e visitar um por um.

—Certo.

—Tenho duas tarefas para você. Primeiro, temos aqui sete nomes sem identificação, dois clientes e cinco aproveitadores. A sua tarefa, nos próximos dias, vai ser tentar identificá-los. Alguns nomes estão na tese da Mia; talvez haja referências que possam nos ajudar a descobrir os verdadeiros nomes deles.

—Está bem.

—Segundo, sabemos muito pouco sobre o Nils Bjurman, o tutor da Lisbeth. Os jornais publicaram um currículo sumário, mas imagino que metade esteja errada.

—Então vou dar uma fuçada no passado dele.

—Exatamente. Veja o que consegue encontrar.

* * *

Harriet Vanger ligou para Mikael Blomkvist por volta das cinco da tarde.

—Você pode falar?

—Um pouquinho.

—Essa moça que eles estão procurando... foi ela que ajudou a me achar, não foi?

Harriet Vanger e Lisbeth Salander nunca tinham se encontrado.

—Foi - respondeu Mikael. —Me desculpe, não tive tempo de te ligar para te manter informada. Mas foi ela, sim, de fato.

—O que isso significa?

—No que lhe diz respeito... nada, espero.

—Mas ela sabe tudo sobre mim e sobre o que aconteceu dois anos atrás.

—Sim, ela sabe tudo o que aconteceu. Harriet ficou calada do outro lado da linha.

—Harriet... não acredito que ela seja culpada. Sou obrigado a pensar que ela é inocente. Eu confio na Lisbeth Salander.

—Se acreditarmos no que dizem os jornais...

—Não dá para acreditar no que dizem os jornais. É simplista demais. Ela deu a palavra dela que não ia trair você. Acho que vai cumpri-la pelo resto da vida. Pelo que percebi, ela tem princípios.

—E se ela não cumprir?

—Não sei, Harriet. Vou fazer de tudo para descobrir o que realmente aconteceu.

—Está bem.

—Não se preocupe.

—Não estou preocupada. Só quero estar preparada para o pior. Como você está, Mikael?

—Não muito bem. Estamos em pé de guerra com esses assassinatos. Harriet Vanger calou-se um instante.

—... Nesse momento, estou aqui em Estocolmo. Pego o avião para a Austrália amanhã e vou ficar um mês fora.

—Ah, é?

—Estou hospedada no mesmo hotel.

—Não sei bem o que dizer. Estou me sentindo um caco. Tenho que trabalhar esta noite e não vou ser uma companhia muito agradável.

—Você não precisa ser uma companhia agradável. Venha só relaxar um pouco.

Mikael voltou para casa por volta da uma da manhã. Estava cansado e chegou a pensar em deixar tudo para lá e ir dormir, mas mesmo assim ligou o iBook e checou a caixa postal. Não havia nada de interessante.

Abriu a pasta [LISBETH SALANDER] e encontrou um arquivo recente. Intitulava-se [Para MikBlom] e estava bem junto do documento intitulado [Para Sally].

Foi quase um choque deparar de repente com aquele arquivo em seu computador. Ela está aqui. Lisbeth Salander entrou no meu computador. Talvez ainda esteja aí. Clicou duas vezes.

Não saberia dizer o que esperava. Uma carta. Uma resposta. Protestos de inocência. Uma explicação. A resposta de Lisbeth Salander a Mikael Blomkvist era frustrante, de tão breve. A mensagem consistia numa única palavra. Quatro letras.

[Zala.]

Mikael fitou aquele nome.

Dag Svensson tinha falado em Zala ao telefone, duas horas antes de ser morto.

O que ela está tentando dizer? Será que Zala é o elo entre o Bjurman, o Dag e a Mia? Como? Por quê? Quem é ele? E como é que a Lisbeth sabe? De que modo está envolvida nisso?

Abriu as propriedades do arquivo e viu que o texto tinha sido criado havia menos de quinze minutos. Então abriu um sorriso. O arquivo mostrava Mikael Blomkvist como autor. Ela criara o arquivo no próprio computador dele, e com o seu programa. Era melhor que um e-mail, não deixava pistas nem um IP que pudesse ser rastreado, embora Mikael tivesse quase certeza de que Lisbeth Salander jamais poderia ser rastreada pela rede. E isso simplesmente provava que ela tinha operado um hostile takeover - era assim que ela chamava - do seu computador.

Aproximou-se da janela e olhou para o prédio da prefeitura. Não conseguia se livrar da sensação de estar sendo observado por Lisbeth naquele momento, era quase como se ela estivesse ali na sala contemplando-o através da tela do iBook. Concretamente, ela podia estar em qualquer lugar do mundo, mas ele suspeitava que ela estava muito mais perto. Em algum lugar no centro de Estocolmo. Num raio de um quilômetro de onde ele se achava.

Refletiu alguns instantes, em seguida sentou-se e criou um novo arquivo Word que intitulou [Sally-2] e salvou-o na área de trabalho. Escreveu uma mensagem veemente.

[Lisbeth,

Que diacho de menina complicada você está me saindo... Quem é esse Zala? Ele é que é o elo? Você sabe quem matou Dag & Mia? Se sabe, me diga, para a gente conseguir desfazer este nó e ir para casa dormir. Mikael.]

Ela estava dentro do iBook de Mikael Blomkvist. A resposta chegou menos de um minuto depois. Um novo arquivo se materializou na sua área de trabalho, desta vez intitulado [Super-Blomkvist].

[O jornalista é você. Trate de descobrir.]

As sobrancelhas de Mikael se contraíram. Ela estava de gozação com ele, e ainda usando aquele apelido que, ela sabia muito bem, ele detestava. E não fornecia um indício sequer. Ele digitou o arquivo [Sally-3] e o salvou na área de trabalho.

[Lisbeth,

Um jornalista descobre as coisas perguntando às pessoas que sabem. E eu te pergunto: você sabe por que o Dag e a Mia foram mortos e quem os matou? Se souber, me diga. Dê-me uma pista para que eu possa avançar. Mikael.]

Foi desanimando enquanto esperava, horas a fio, por uma resposta. Eram mais de quatro da manhã quando desistiu e foi se deitar.

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