20. TERÇA-FEIRA 1º DE JULHO — QUARTA-FEIRA 2 DE JULHO
A primeira coisa que Mikael fez de manhã assim que chegou a Hedestad foi procurar Dirch Frode para ter notícias de Henrik Vanger. O estado de saúde do velho havia melhorado consideravelmente durante a semana. Ainda estava fraco e frágil, mas já podia se sentar na cama. Seu estado não era mais considerado crítico.
— Graças a Deus! — disse Mikael. — Descobri que gosto muito dele.
— Eu sei. Henrik também gosta de você — respondeu Frode balançando a cabeça. — E a viagem ao Grande Norte, como foi?
— Bem-sucedida e insatisfatória. Mais tarde eu conto. Agora tenho uma pergunta a lhe fazer.
— Diga.
— O que acontecerá à Millennium se Henrik falecer?
— Nada de especial. Martin assumirá o lugar dele no conselho administrativo.
— Há um risco, mesmo hipotético, de que Martin crie problemas para a Millennium se eu não parar de investigar o desaparecimento de Harriet Vanger?
Dirch Frode lançou um olhar inquiridor a Mikael.
— O que aconteceu?
— Para dizer a verdade, nada. — Mikael relatou a conversa que teve com Martin na noite de São João. — Quando voltei de Norsjö, Erika me telefonou para dizer que Martin entrou em contato com ela e lhe pediu que insistisse comigo que eles estão precisando de mim na redação.
— Entendo. Suponho que Cecilia foi importuná-lo. Mas não acredito que Martin faria barganhas. Ele é muito honesto para isso. E lembre-se que eu também participo do conselho administrativo da pequena sociedade paralela que criamos no momento que entramos na Millennium.
— Mas, caso a situação se complique, qual seria a posição dele?
— Contratos são feitos para ser respeitados. Trabalho para Henrik. Ele e eu somos amigos há quarenta e cinco anos e atuamos mais ou menos da mesma forma nesse tipo de contexto. Se Henrik morrer, serei eu, e não Martin, o sucessor dele na sociedade paralela. O contrato estipula claramente que nos comprometemos a gerar recursos para a Millennium durante quatro anos. Se Martin quiser criar obstáculos — o que não acredito —, poderá, teoricamente, barrar a entrada de alguns novos anunciantes.
— O que é a base da existência da Millennium.
— Sim, mas considere as coisas deste modo: entregar-se a tais baixezas toma tempo. Martin está lutando por sua própria sobrevivência industrial e trabalha catorze horas por dia. Não tem tempo de se dedicar a outras coisas.
Mikael ficou em silêncio, pensativo.
— Se me permite uma pergunta: sei que isto não me diz respeito, mas qual é a situação geral do grupo?
Dirch Frode assumiu um ar mais grave.
— Estamos com problemas.
— Certo, mesmo um simples jornalista econômico como eu percebeu isso. Mas até que ponto são problemas sérios?
— Promete que fica entre nós?
— Com certeza.
— Nas últimas semanas perdemos dois grandes pedidos na indústria eletrônica e estamos sendo ejetados do mercado russo. Em setembro, seremos obrigados a demitir mil e seiscentos funcionários em Örebro e em Trollhättan. Uma triste recompensa para pessoas que trabalham há tantos anos no grupo. Sempre que fechamos uma fábrica, a confiança no grupo fica abalada.
— Martin está sob pressão?
— É um boi de carga pisando em ovos.
Mikael voltou para casa e ligou para Erika. Ela não estava na redação e ele discutiu o assunto com Christer Malm.
— E o seguinte: Erika me telefonou ontem quando voltei de Norsjö. Martin Vanger conversou com ela e a estimulou, por assim dizer, a propor que eu voltasse a trabalhar na redação.
— É o que eu também acho — disse Christer.
— Entendo. Mas o fato é que tenho um contrato com Henrik Vanger que não posso romper e Martin age a pedido de uma pessoa que deseja que eu pare de investigar e desapareça da aldeia. A proposta dele, portanto, não passa de uma tentativa de me afastar daqui.
— Entendo.
— Diga a Erika que só voltarei para Estocolmo quando eu tiver terminado tudo, não antes.
— Está bem, transmitirei seu recado. Mas você é completamente louco.
— Christer, está acontecendo algo aqui, e eu não tenho a menor intenção de recuar.
Christer deu um forte suspiro.
Mikael foi procurar Martin Vanger. Eva Hassel abriu a porta e o saudou amigavelmente.
— Bom dia. Martin está?
Em resposta à pergunta, Martin apareceu com sua pasta de executivo na mão. Beijou o rosto de Eva e cumprimentou Mikael.
— Estou indo para o escritório. Quer falar comigo?
— Posso esperar, se está com pressa.
— Vamos, fale.
— Não tenho a intenção de voltar para a redação da Millennium antes de terminar o trabalho que Henrik me confiou. Aviso desde já, para que não conte comigo no conselho administrativo antes do fim do ano.
Martin Vanger balançou-se nos calcanhares para a frente e para trás.
— Entendo. Acha que estou querendo me livrar de você. — Fez uma pausa. — Mikael, falaremos disso mais tarde. Não tenho realmente tempo para me dedicar a uma atividade no conselho administrativo da revista e preferia não ter aceitado a proposta de Henrik. Mas, acredite, farei o melhor que puder para que a Millennium sobreviva.
— Nunca duvidei disso — respondeu Mikael polidamente.
— Faremos uma reunião na semana que vem para avaliar toda a situação financeira e depois eu lhe darei uma opinião a esse respeito. Mas acredito sinceramente que a Millennium não pode se dar ao luxo de ter um de seus principais representantes ocioso aqui em Hedebyön. Gosto da revista e estou certo de que poderemos recuperá-la, mas você é indispensável para esse trabalho. Quanto a mim, vejo-me pressionado por um conflito de interesses: seguir a vontade de Henrik ou cumprir meu trabalho no conselho administrativo da Millennium.
Mikael vestiu uma roupa esportiva e saiu para praticar jogging até a Fortificação. Depois passou pela cabana de Gottfried antes de voltar, num ritmo mais lento, beirando a praia. Dirch Frode estava sentado à mesa do jardim. Ele esperou pacientemente que Mikael esvaziasse uma garrafa de água e enxugasse o rosto.
— Tem certeza de que é bom para a saúde com esse calor?
— Ora, vamos! — respondeu Mikael.
— Eu me enganei. Não é Cecilia quem está importunando Martin. É Isabella que está mobilizando todo o clã Vanger para arrancar as suas penas e, se possível, assar você na panela. Ela é apoiada por Birger.
— Isabella?
— É uma mulher maldosa e mesquinha que, de modo geral, não gosta de ninguém. Neste momento, o ódio dela se dirige a você em particular. Espalhou boatos de que você é um vigarista que convenceu Henrik a contratá-lo e que o excitou a ponto de causar-lhe um infarto.
— E alguém acreditou nisso?
— Há sempre gente pronta a acreditar nas más-línguas.
— Estou tentando descobrir o que aconteceu com a filha dela e ela me odeia. Se fosse a minha filha, acho que eu reagiria de outro modo.
* * *
Por volta das duas da tarde, o celular de Mikael tocou.
— Bom dia, meu nome é Cony Torsson, trabalho no Hedestads-Kuriren. Teria um tempinho para responder a algumas perguntas? Obtivemos informações confidenciais de que está morando aqui na aldeia.
— Nesse caso as informações demoraram um pouco a chegar. Estou morando aqui desde 1º de janeiro.
— Eu não sabia. E o que faz em Hedeby?
— Estou escrevendo. E tendo uma espécie de ano sabático.
— Está escrevendo sobre o quê?
— Saberá quando for publicado.
— Você acaba de sair da prisão...
— E...?
— Qual é a sua opinião sobre jornalistas que falsificam dados?
— Jornalistas que falsificam dados são imbecis.
— Está querendo dizer que é um imbecil?
— Por que eu diria isso? Nunca falsifiquei dados.
— Mas foi condenado por difamação.
— E...?
O repórter Conny Torsson hesitou tanto tempo que Mikael foi obrigado a explicar.
— Fui condenado por difamação, não por ter falsificado dados.
— Mas publicou esses dados.
— Se telefonou para falar da minha condenação, não tenho nenhum comentário a fazer.
— Gostaria de entrevistá-lo.
— Sinto muito, nada tenho a dizer sobre esse assunto.
— Então não quer conversar sobre o processo?
— Isso mesmo — respondeu Mikael, pondo fim à conversa. Ele refletiu um bom tempo antes de voltar ao computador.
Lisbeth Salander seguiu as instruções que lhe deram e cruzou a ponte na sua Kawasaki. Parou diante da primeira casa à esquerda. Era um lugar distante, mas estaria disposta a ir ao Pólo Norte se estivesse sendo paga para isso. Além do mais, fora bom correr a toda a velocidade pela rodovia E4. Estacionou a moto e desatou a correia que prendia sua sacola de viagem.
Mikael Blomkvist abriu a porta e acenou com a mão. Saiu e inspecionou a moto com um assombro sincero.
— Uau! Você veio de moto!
Lisbeth Salander não disse nada, mas observou-o atentamente tocar o volante e experimentar o acelerador. Ela não gostava que mexessem nas suas coisas, mas viu o sorriso dele, um sorriso de garoto, e considerou aquilo como uma circunstância atenuante. Em geral, as pessoas interessadas por motocicletas sentiam desprezo pela sua moto de baixa cilindrada.
— Quando eu tinha dezenove anos, tive uma moto — disse Mikael virando-se para ela. — Obrigado por ter vindo. Entre. Vou mostrar a casa.
Mikael pedira emprestada uma cama de armar a Nilsson, do outro lado da estrada, e a instalara na saleta de trabalho. Desconfiada, Lisbeth Salander deu uma volta pela casa, mas relaxou após constatar que não havia nenhuma armadilha. Mikael indicou o banheiro.
— Não quer tomar um banho e se refrescar?
— Preciso me trocar. Não pretendo ficar com este macacão de couro.
— Vá, enquanto isso eu vou fazendo o jantar.
Mikael preparou costeletas de cordeiro ao molho de vinho tinto e pôs a mesa fora, enquanto Lisbeth tomava um banho e trocava de roupa. Saiu de pés descalços, vestindo uma regata preta e uma saia jeans curta. O cheiro da comida era bom e ela devorou duas porções. Mikael observou discretamente sua tatuagem nas costas.
Cinco mais três — disse Lisbeth Salander. — Cinco casos da lista da sua Harriet e mais três que, na minha opinião, também deveriam figurar.
— Me conte tudo.
— Faz apenas onze dias que trabalho nisso e não tive tempo de ver todos os inquéritos policiais. Alguns foram transferidos para os arquivos nacionais, outros ainda estão no distrito responsável pelo caso. Em um dia visitei três distritos diferentes, não deu tempo de fazer mais. Mas os cinco estão identificados.
Lisbeth Salander pôs uma pilha impressionante de papéis sobre a mesa, mais de quinhentas folhas de papel ofício. Rapidamente distribuiu o material em diferentes partes.
— Vamos ver por ordem cronológica. — Ela entregou uma lista a Mikael.
1949 — Rebecka Jacobsson, Hedestad (30112)
1954 — Mari Holmberg, Kalmar (32018)
1957 — Rakel Lunde, Landskrona (32027)
1960 — (Magda) Lovisa Sjöberg, Karlstad (32016)
1960 — Liv Gustavsson, Estocolmo (32016)
1962 — Lea Persson, Uddevalla (31208)
1964 — Sara Witt, Ronneby (32109)
1966 — Lena Andersson, Uppsala (30112)
— O primeiro caso dessa série parece ser Rebecka Jacobsson, 1949, do qual você já conhece os detalhes. O caso seguinte que encontrei é Mari Holmberg, uma prostituta de trinta e dois anos de Kalmar, morta em sua casa em outubro de 1954. Não se sabe exatamente quando ela foi assassinada, pois só foi encontrada algum tempo depois, provavelmente nove ou dez dias.
— E como você fez a ligação entre ela e a lista de Harriet?
— Ela tinha as mãos e os pés amarrados e o corpo coberto de ferimentos terríveis, mas a causa da morte foi asfixia. O assassino enfiou um guardanapo na garganta dela.
Mikael ficou em silêncio antes de abrir a Bíblia no local indicado, capítulo XX do Levítico, versículo 18.
"Se um homem dormir com uma mulher durante o tempo de sua menstruação e vir a sua nudez, descobrindo o seu fluxo e descobrindo-o ela mesma, serão ambos cortados do meio de seu povo."
Lisbeth concordou com a cabeça.
— Harriet Vanger fez a mesma ligação. Bem, vamos ao próximo.
— Maio de 1957, Rakel Lunde, quarenta e cinco anos. Era dona de casa e considerada uma espécie de excêntrica da região. Via a sorte das pessoas consultando as cartas, lendo a mão e coisas do gênero. Rakel morava numa casa bem isolada na periferia de Landskrona, onde foi morta ao amanhecer. Encontraram-na nua e amarrada a um varal de roupa no pátio, com a boca tapada por uma fita adesiva. Causa da morte: foi agredida com uma pedra pesada várias vezes. Apresentava várias contusões e fraturas.
— Que horror, Lisbeth! Tudo isso é monstruoso.
— E é só o começo. As iniciais RL coincidem — achou a citação?
— É evidente. "Qualquer homem ou mulher que evocar os espíritos ou fizer adivinhações, será morto. Serão apedrejados e levarão a sua culpa."
— A seguir vem Lovisa Sjöberg em Ranmo, perto de Karlstad. É a que Harriet se refere como Magda. Seu nome completo era Magda Lovisa, mas todos a chamavam de Lovisa.
Mikael escutou com atenção Lisbeth relatar os detalhes bizarros do assassinato de Karlstad. Quando ela acendeu um cigarro, ele a interrogou com o olhar, mostrando o maço. Ela o empurrou para ele.
— Então o assassino também atacou o animal?
— A Bíblia diz que, se uma mulher se acasala com um animal, os dois serão mortos.
— Mas é pouco provável que essa mulher tenha se acasalado com uma vaca!
— A citação pode ser interpretada em sentido amplo. Basta que ela tenha entrado em contato com um animal, o que uma proprietária rural certamente precisa fazer todos os dias.
— Certo. Continue.
— O próximo caso da lista de Harriet é Sara. Identifiquei-a como Sara Witt, trinta e sete anos, residente em Ronneby. Foi morta em janeiro de 1964. Encontraram-na amarrada à cama. Sofreu graves sevícias sexuais, mas a causa da morte foi asfixia. Morreu estrangulada. O assassino também provocou um incêndio criminoso. A intenção era que a casa toda queimasse, só que uma parte do fogo só extinguiu sozinha e outra parte foi controlada pelos bombeiros.
— E a ligação?
— Escute mais um pouco. Sara Witt era filha de pastor e mulher de pastor. O marido estava fora justamente naquele fim de semana.
— "Se a filha de um sacerdote se desonrar pela prostituição, ela desonra o pai; será queimada no fogo." De fato, confere com a lista. Você disse que descobriu outros casos.
— Descobri outras três mulheres mortas em circunstâncias tão estranhas que poderiam ter figurado na lista de Harriet. O primeiro caso é o de uma jovem chamada Liv Gustavsson. Ela tinha vinte e dois anos e morava em Farsta.
Era apaixonada por equitação; participava de competições e era muito bem-dotada. Tinha também uma pequena pet shop com a irmã.
— E?
— Foi encontrada na loja, onde ficara sozinha até mais tarde fazendo a contabilidade. Deve ter deixado o assassino entrar voluntariamente. Foi estuprada e estrangulada.
— Isso não parece ter muito a ver com a lista de Harriet.
— Não, se não fosse por uma coisa. O assassino encerrou seu trabalho enfiando um periquito na vagina dela e soltando todos os animais que havia na loja. Gatos, tartarugas, hamsters, coelhos, aves. Até os peixes do aquário. Imagine o espetáculo terrível que a irmã presenciou na manhã seguinte.
Mikael assentiu com a cabeça.
— Ela foi morta em agosto de 1960, quatro meses depois do assassinato de Magda Lovisa em Karlstad. Nos dois casos, trata-se de mulheres cuja profissão as punham em contato com animais, e em ambos houve sacrifício de animais. A vaca em Karlstad sobreviveu, é verdade, mas imagino que seja bem difícil matar uma vaca com uma simples facada. Matar um periquito é mais fácil. Sem contar que há um outro sacrifício de animal na lista.
— Qual?
— Lisbeth contou do estranho "Crime do pombo" de Lea Persson em Uddevalla. Mikael ficou refletindo tanto tempo em silêncio que Lisbeth se impacientou.
— Certo, concordo com a sua teoria — ele acabou por dizer. — Há mais um caso.
— Um dos que descobri. Não sei quantos outros me escaparam.
— Me conte.
— Fevereiro de 1966, em Uppsala. A vítima, a mais jovem de todas, foi uma colegial de dezessete anos chamada Lena Andersson. Desapareceu após uma festa da sua turma e foi encontrada três dias depois numa vala da planície de Uppsala, bastante longe da cidade. Foi morta em outro lugar e levada para lá.
Mikael assentiu com a cabeça.
— Esse assassinato deu o que falar, mas as circunstâncias exatas sobre a morte nunca foram divulgadas. A moça foi torturada de maneira atroz. Li o relatório do legista. Foi torturada com fogo; as mãos e os seios estavam gravemente queimados e o corpo apresentava queimaduras em diversos pontos. Foram encontradas manchas de estearina, sugerindo que uma vela deve ter sido utilizada, mas as mãos estavam tão carbonizadas que certamente foram postas num fogo mais intenso. Para terminar, o assassino serrou a cabeça e a deixou ao lado do corpo. Mikael empalideceu.
— Meu Deus! — disse.
— Não encontrei nenhuma citação bíblica que encaixe, mas há várias passagens que falam de imolação e de sacrifício pelo pecado, e em alguns trechos se preconiza que o animal de sacrifício, geralmente um touro, seja decepado de modo que a cabeça se separe da gordura. A utilização do fogo lembra também o primeiro assassinato, o de Rebecka aqui em Hedestad.
Quando os mosquitos começaram sua dança noturna, Mikael e Lisbeth deixaram a mesa de jardim e se instalaram na cozinha para continuar a conversa.
— O fato de você não ter encontrado uma citação bíblica exata não quer dizer grande coisa. Não se trata de citações, mas de uma paródia grotesca do que diz a Bíblia; são mais associações com versículos esparsos.
— Eu sei. Um exemplo dessa falta de lógica é a citação de que os dois devem ser exterminados se um homem faz amor com uma mulher menstruada. Se interpretarmos literalmente, o assassino deveria ter se suicidado.
— E tudo isso nos leva a quê? — perguntou Mikael.
— Ou a sua Harriet tinha o estranho hobby de colecionar citações bíblicas para associá-las a vítimas de crimes dos quais ouviu falar, ou ela sabia da existência de uma ligação entre os crimes.
— Entre 1949 e 1966, talvez antes e depois também, teria existido um louco furioso e sádico que andou com uma Bíblia debaixo do braço matando mulheres durante dezessete anos sem que ninguém tivesse feito uma ligação entre os crimes. Parece inacreditável.
Lisbeth Salander afastou a cadeira e foi buscar café no fogão. Acendeu um cigarro e soprou a fumaça ao redor. Mikael praguejou por dentro e lhe pediu mais um cigarro.
— Não, não é nada inacreditável. Primeiro — disse ela erguendo o polegar —, há dezenas e dezenas de assassinatos de mulheres não solucionados na Suécia do século XX. Certa vez ouvi Persson, o professor de criminologia, dizer na tevê que os assassinos seriais são muito raros na Suécia, embora alguns jamais tenham sido identificados.
Mikael assentiu com a cabeça. Ela levantou um segundo dedo.
— Esses crimes foram cometidos num período muito longo e em diferentes regiões do país. Dois ocorreram sucessivamente em 1960, mas em circunstâncias relativamente diferentes — uma camponesa em Karlstad e uma moça de vinte e dois anos apaixonada por equitação em Estocolmo.
Três dedos.
— Não há um esquema claro, marcante. Os crimes foram cometidos de formas diferentes e não há uma verdadeira assinatura, apesar de alguns elementos retornarem toda vez. Animais. Fogo. Violências sexuais graves. E, como você disse, uma paródia de conhecimentos bíblicos. Mas, pelo que se sabe, nenhum dos investigadores da polícia usou a Bíblia para interpretar os crimes.
Mikael concordou com a cabeça e a examinou discretamente. Com seu corpo frágil, sua regata preta, as tatuagens e os piercings no rosto, Lisbeth Salander era de fato uma figura estranha na casa dos convidados em Hedeby. Quando ele tentara ser sociável durante o jantar, ela permaneceu taciturna e mal respondeu. Mas trabalhando era uma profissional dos pés à cabeça. Seu apartamento em Estocolmo parecia uma ruína após um bombardeio, porém Mikael foi obrigado a reconhecer que Lisbeth Salander tinha a cabeça muito bem organizada. Que estranho!
— É difícil ver a relação entre uma prostituta de Uddevalla assassinada atrás de um container num terreno baldio industrial e a mulher do pastor de Ronneby estrangulada e vítima de um incêndio criminoso. A menos que encontremos a chave que Harriet nos deixou, é claro.
— O que nos leva à próxima questão — disse Lisbeth.
— Como Harriet foi se envolver com toda essa merda? Ela, uma menina de dezesseis anos que vivia num meio bastante protegido.
— Só há uma resposta — disse ela. Mikael assentiu com a cabeça outra vez.
— Existe, necessariamente, uma ligação com a família Vanger.
Por volta das onze da noite, eles haviam repassado a série de crimes e discutido relações e detalhes curiosos, a ponto de os pensamentos girarem sem parar na cabeça de Mikael. Ele esfregou os olhos, se espreguiçou e perguntou se Lisbeth não tinha vontade de dar uma caminhada. Ela pareceu achar esse tipo de exercício uma perda de tempo, mas, depois de refletir um instante, concordou. Mikael sugeriu que ela vestisse uma calça comprida por causa dos mosquitos.
Deram uma volta pelo porto de recreio, passaram junto à ponte e seguiram em direção ao promontório onde Martin Vanger morava. Mikael apontou as casas e contou quem eram seus moradores. Teve dificuldade de falar sobre Cecilia Vanger quando mostrou sua casa. Lisbeth olhou para ele discretamente.
Passaram em frente ao luxuoso iate de Martin Vanger e chegaram ao promontório, onde se sentaram numa pedra e dividiram um cigarro.
— Há um outro tipo de ligação entre as vítimas — disse Mikael de repente. — Talvez já tenha lhe ocorrido isso.
— O quê?
— Os prenomes.
Lisbeth Salander refletiu por um instante e depois balançou negativamente a cabeça.
— Todas têm prenomes bíblicos.
— Não, não é verdade — respondeu Lisbeth vivamente. — Não há nem Liv nem Lena na Bíblia.
— Pois eu digo que sim — replicou Mikael. — Liv significa "viver", que é o sentido bíblico do prenome Eva. E, pense um pouco, Lisbeth: Lena é uma redução de quê?
Lisbeth Salander contraiu os olhos com força, irritada consigo mesma. Mikael raciocinara mais rápido que ela, e ela não gostava disso.
— De Magdalena, assim como Magda. Ou seja, Madalena — ela disse.
— A pecadora, a primeira mulher, a Virgem Maria... eis todas elas reunidas. É uma história bem maluca, capaz de fundir a cabeça de qualquer psicólogo. Mas, na verdade, ainda estou pensando em outra coisa sobre os prenomes.
Lisbeth aguardou pacientemente.
— São também prenomes femininos judaicos tradicionais. A família Vanger teve um bom contingente de doidos anti-semitas, nazistas e teóricos da conspiração. Harald Vanger, no topo da lista, tem mais de noventa anos e estava no auge de sua forma nos anos 1960. A única vez em que o encontrei, disse com desprezo que sua filha era uma puta. Ele claramente tem problemas com as mulheres.
De volta à casa, eles prepararam sanduíches e esquentaram o café. Mikael lançou um olhar às quinhentas páginas que a investigadora favorita de Dragan Armanskij havia produzido.
— Fez um trabalho de pesquisa fantástico num tempo recorde. Obrigado. E obrigado também pela gentileza de vir até aqui me trazer o relatório.
— E o que faremos agora? — perguntou Lisbeth.
— Falarei com Dirch Frode amanhã de manhã para que paguem você.
— Não foi isso que eu quis dizer. Mikael olhou para ela.
— Bem... o trabalho de pesquisa para o qual eu a contratei terminou — ele disse com prudência.
— Ainda não acabei de resolver essa história.
Mikael inclinou-se para trás no banco da cozinha e sondou os olhos dela. Não conseguiu detectar absolutamente nada. Durante seis meses havia trabalhado sozinho no desaparecimento de Harriet e de repente outra pessoa — uma investigadora habilidosa — captava todas as implicações do caso. Ele tomou uma súbita decisão.
— Entendo. Essa história também está mexendo com os meus nervos. Falarei com Dirch Frode amanhã. Contrataremos você por mais uma semana ou duas como... humm... assistente de pesquisa. Não sei se ele está disposto a pagar o mesmo que paga a Armanskij, mas daremos um jeito de conseguir uma remuneração satisfatória.
Lisbeth agradeceu com um breve sorriso. Ela não tinha a menor vontade de ficar inativa e teria aceitado de bom grado o trabalho de graça.
— Vou dormir — ela anunciou. E, sem dizer mais nada, foi para o quarto e fechou a porta.
Dez minutos depois, abriu a porta e pôs a cabeça para fora.
— Acho que você está enganado. Ele não é um assassino serial, um doente que leu a Bíblia demais. É simplesmente um canalha ordinário que odeia as mulheres.