13 - QUINTA-FEIRA SANTA 24 DE MARÇO


Às sete horas da Quinta-feira Santa, a responsabilidade formal pelo inquérito preliminar sobre o duplo assassinato de Enskede fora parar na mesa do procurador Richard Ekström. O procurador de plantão da noite, um jurista relativamente jovem e inexperiente, entendera que os assassinatos de Enskede extrapolavam, e muito, o padrão. Telefonara para acordar o procurador-adjunto do departamento, que por sua vez acordou o adjunto do secretá­rio de segurança do departamento. Em comum acordo decidiram passar o caso para um procurador zeloso e experiente. A escolha recaiu sobre Richard Ekström, de quarenta e dois anos.

Ekström era um homem magro e atlético de um metro e sessenta e sete, tinha cabelos loiros e finos e usava cavanhaque. Estava sempre impecavelmente vestido e, devido à sua baixa estatura, andava com sapatos de salto compensado. Iniciara a carreira de jurista como adjunto do procura dor de Uppsala, onde fora recrutado como investigador pelo Ministério Justiça para adaptar a lei sueca à União Européia. Saíra-se tão bem que fora nomeado chefe de seção. Sobressaíra-se num inquérito sobre as disfunções da segurança judiciária, quando clamara antes por mais eficiência do que pelo aumento de recursos exigido por algumas autoridades. Depois de quatro anos no Ministério da Justiça, passara para o Ministério Público de Estocolmo, onde cuidara de vários casos ligados a assaltos sensacionais ou a crimes de sangue.

No interior da administração, era considerado um socialdemocrata, mas na verdade Ekström era absolutamente alheio a política partidária. Começava a despertar certo interesse na mídia, e nos corredores do poder era um homem que seus superiores observavam de perto. Era definitivamente um candidato potencial para altos cargos e dispunha de uma ampla rede de contatos tanto no meio político como policial. Entre os policiais, as opiniões sobre os talentos de Ekström eram divididas. Seus relatórios ao Ministério de Justiça não apoiavam em nada os grupos que, dentro da polícia, defendiam que a melhor maneira de garantir a segurança judiciária era recrutar um número maior de policiais. Por outro lado, Ekström se sobressaía por sua absoluta firmeza quando conduzia um caso ao tribunal.

Informado pela Criminal sobre os acontecimentos da noite em Enskede, Ekström logo concluiu que aquele era um caso que sem dúvida alguma mexeria fortemente com a mídia. Não se tratava de assassinatos comuns. As vítimas eram uma pesquisadora em criminologia prestes a defender sua tese e um jornalista - palavra que ele detestava ou adorava, conforme a situação.

Pouco depois das sete horas, Ekström teve uma rápida conversa telefô­nica com o chefe da Criminal regional. Às sete e quinze, pegou o telefone e acordou o inspetor Jan Bublanski, apelidado de Bubolha pelos colegas. Bublanski estava tirando uns dias de folga na Semana Santa para compensar as inúmeras horas extras que acumulara ao longo do ano, mas pediram que interrompesse seu feriado e se apresentasse imediatamente na superintendência da polícia para dirigir as investigações no inquérito dos assassinatos de Enskede.

Bublanski tinha cinquenta e dois anos e trabalhara mais da metade da vida como policial, desde os vinte e três anos. Passara seis anos numa viatura fazendo patrulhas, fora nomeado para a repressão do tráfico de armas e roubos antes de fazer alguns cursos de formação permanente e integrar a seção de crimes violentos na Criminal regional. Nos últimos dez anos, participara precisamente de trinta e três investigações de assassinato ou homicídio. Das dezessete que comandara, catorze foram elucidadas e duas consideradas elucidadas do ponto de vista policial, o que significava que a polícia sabia quem era o culpado, mas não tinha provas suficientes para levá-lo à Justiça. Bublanski e seus colaboradores haviam fracassado em um único caso, seis anos antes. O caso de um alcoólatra, encrenqueiro notório, apunhalado na sua residência, em Bergshamra. O local do crime era um pesadelo de impressões digitais e vestígios de DNA de dezenas de indivíduos que, ao longo dos anos, tinham bebido ou brigado naquele apartamento. Bublanski e seus colegas estavam convencidos de que o assassino pertencia ao círculo de amigos suspeitos do homem, todos alcoólatras e toxicômanos, mas, apesar de um intenso trabalho de investigação, o assassino continuava escarnecendo a polícia. 0 caso, na verdade, estava arquivado.

Ao todo, Bublanski somava uma boa percentagem de êxito e era visto entre os colegas como particularmente qualificado.

Os colegas, porém, consideravam-no um tipo original, em boa parte porque era judeu e usava um quipá em algumas festas da superintendência da polícia. Isso um dia suscitara o comentário de um superintendente, atualmente aposentado, de que era inadequado usar um quipá na superintendência, assim como não aceitaria que um policial andasse por aí de turbante. No entanto, nunca chegou a existir uma verdadeira discussão sobre o assunto. Um jornalista que havia interceptado o comentário começou a fazer perguntas, o que levou o superintendente depressa a se retirar para a sua sala.

Bublanski pertencia à comunidade do Söder, e pedia refeições vegetarianas caso não houvesse comida kasher. Mas não era ortodoxo a ponto de não trabalhar no dia do sabá. Desde o primeiro instante, Bublanski percebeu que o duplo assassinato de Enskede não seria uma investigação rotineira. Richard Ekström tivera uma conversa particular com ele assim que cruzara a porta, pouco depois das oito horas.

—Parece ser uma história pesada - disse Ekström, cumprimentando-o. —O casal assassinado era um jornalista e uma criminologista. E não é só isso. Foi também um jornalista quem os encontrou.

Bublanski meneou a cabeça. Era praticamente uma garantia de que o caso seria acompanhado de perto e esmiuçado pela mídia.

—E, para completar, o jornalista que encontrou o casal é Mikael Blomkvist, da Millennium.

—Uau! - exclamou Bublanski.

—Conhecido por todo aquele barulho em torno do caso Wennerström.

—Já se tem alguma idéia de qual foi o motivo?

—Até o momento, nenhuma. As vítimas não são conhecidas nos nossos serviços. Tudo indica que era um casal tranqüilo. A mulher estava para defender a tese em breve. Resumindo: prioridade máxima para esse caso.

Bublanski meneou a cabeça. Para ele, qualquer homicídio sempre tinha prioridade absoluta.

—Vamos destacar uma equipe para o caso. Você vai ter que trabalhar depressa e eu vou cuidar para que disponha de todos os recursos. O Hans Faste e o Curt Bolinder vão te auxiliar. Também vamos chamar o Jerker Holmberg. Ele está trabalhando no assassinato de Rinkeby, mas parece que o culpado fugiu para o exterior. O Holmberg é um investigador sem igual nas cenas dos crimes. Se for preciso, você também pode apelar para os investigadores da Criminal Nacional.

—Eu queria a Sonja Modig.

—Ela não é meio jovem?

Bublanski ergueu uma sobrancelha e encarou Ekström, surpreso.

—Tem trinta e nove anos, ou seja, só alguns anos menos que você, e além disso é espertíssima.

—Está bem, escolha quem quiser para a sua equipe, mas seja rápido. A direção já se manifestou.

Isso Bublanski considerou um exagero descarado. Àquela hora da manhã, a direção nem sequer tinha tido tempo de sair da mesa do café da manhã.

A investigação policial começou de fato com uma reunião, pouco antes das nove horas, em que o inspetor Bublanski reuniu sua tropa numa sala da Criminal regional. Bublanski contemplou a equipe. Não estava inteiramente satisfeito com sua composição.

Das pessoas presentes, Sonja Modig era em quem ele mais confiava. Ela estava na polícia havia doze anos, dos quais quatro na Brigada de Crimes Violentos, onde participara de várias investigações dirigidas por Bublanski. Era minuciosa e metódica, mas Bublanski percebera rapidamente que também possuía a qualidade que ele considerava mais preciosa nas investigações difíceis: imaginação e capacidade de fazer associações. Em pelo menos dois casos complexos, Sonja Modig estabelecera ligações estranhas e um pouco forçadas que os demais haviam deixado passar e que trouxeram novas possibilidades à investigação. Além disso, Sonja Modig possuía um humor espirituoso que Bublanski apreciava.

Bublanski também estava satisfeito em ter Jerker Holmberg na equipe. Com cinquenta e cinco anos, Holmberg era originário de Angermanland. Era um homem direto e tedioso, totalmente desprovido dessa imaginação que tornava Sonja Modig tão preciosa. Em compensação, talvez fosse, na opinião de Bublanski, o melhor investigador de cenas do crime de toda a polícia sueca. Haviam trabalhado juntos em várias investigações ao longo dos anos, e Bublanski estava convicto de que se havia alguma coisa para ser encontrada no local do crime, Holmberg a encontraria. Sua primeira tarefa, portanto, seria assumir o comando das operações no apartamento de Enskede.

Bublanski conhecia muito pouco seu colega Curt Bolinder. Era um homem forte e taciturno, de cabelo loiro tão curto que de longe parecia totalmente calvo. Bolinder tinha trinta e oito anos e acabava de chegar à Brigada depois de passar vários anos na polícia de Huddinge investigando gangues criminosas. Tinha fama de ter pavio curto e pulso de ferro, o que era um eufemismo para dizer que ele talvez empregasse com sua clientela métodos não totalmente conformes ao regulamento. Dez anos antes, Curt Bolinder fora indiciado por golpes e ferimentos, mas a investigação o inocentara inteiramente.

A reputação de Curt Bolinder se baseava em outro incidente. Em outubro de 1999 ele estivera em Alby, juntamente com um colega, para prender um delinquente da região para interrogatório. O sujeito já era conhecido da polícia. Fazia vários anos que vinha espalhando o terror entre os vizinhos de seu prédio, e seu comportamento ameaçador resultara em algumas queixas contra ele. Graças a uma informação recebida pela polícia, ele agora era suspeito de ter assaltado uma loja em Norsborg. A intervenção, relativamente simples, desandou por completo quando o sujeito puxou uma faca em vez de acompanhar docilmente os policiais. O colega ficara com vários ferimentos nas mãos ao tentar enfrentá-lo, e com o polegar esquerdo decepado, antes que o malfeitor voltasse a atenção para Curt Bolinder, que pela primeira vez em sua carreira foi obrigado a usar sua arma de serviço. Deu três tiros. O primeiro foi um aviso. O segundo, disparado com o objetivo de atingir o malfeitor, errara o alvo, o que era um feito, considerando-se que a distância não chegava a três metros. O terceiro tiro, em compensação, atingiu o sujeito rompendo sua aorta, e em poucos minutos o homem sucumbira a uma hemorragia interna. A investigação que se seguiu eximiu Curt Bolinder de qualquer responsabilidade, mas o fato deu ensejo a uma polêmica na mídia que focalizava o monopólio estatal da violência e na qual Curt Bolinder foi citado no mesmo nível que os dois policiais espancadores do caso Osmo Vallo.

De início Bublanski se mostrara reticente em relação a Curt Bolinder, mas passados seis meses ainda não descobrira o que quer que fosse que merecesse sua crítica direta ou sua ira. Pelo contrário, Bublanski aos poucos passara a nutrir certo respeito por sua competência taciturna.

O último membro da equipe de Bublanski era Hans Faste, quarenta e sete anos e veterano da Brigada de Crimes Violentos havia quinze anos. Faste era o motivo direto da insatisfação de Bublanski com a composição da equipe. Faste tinha um lado positivo e outro negativo. O positivo era sua grande experiência e o fato de estar acostumado a investigações complexas. O negativo, segundo Bublanski, era ele ser egocêntrico, adepto de um humor meio pesado capaz de aborrecer qualquer pessoa normal, em particular o próprio Bublanski. O caráter e as atitudes de Faste simplesmente não lhe agradavam. Ainda assim, quando bem controlado, era um investigador competente. Além disso, tornara-se uma espécie de mentor para Curt Bolinder, que não parecia se incomodar com seu lado reclamão. Não raro trabalhavam em dupla nas investigações.

Também tinham sido convidados para a reunião a inspetora Anita Nyberg, da Criminal de plantão, para relatar o interrogatório de Mikael Blomkvist que ela conduzira na noite anterior, e o delegado Oswald Mârtensson, para informar sobre todos os acontecimentos, desde que tinham recebido o chamado. Estavam ambos esgotados e queriam ir para casa dormir o quanto antes, mas Anita Nyberg já obtivera fotos do local do crime e as fez circular pela equipe.

Meia hora depois, já tinham uma idéia do desenrolar dos fatos. Bublanski resumiu a situação:

—Ainda no aguardo da análise técnica do local, que está em andamento, os fatos parecem ser os seguintes... uma pessoa desconhecida, que não foi vista por nenhum vizinho ou testemunha, entrou num apartamento em Enskede e matou o casal Svensson e Bergman.

—Ainda não sabemos se a arma encontrada é a arma do crime, mas já foi para o laboratório - disse Anita Nyberg. —Prioridade absoluta. Encontramos também, na parede, relativamente intacto, um fragmento da bala que atingiu Dag Svensson. Em compensação, a bala que matou Mia Bergman está tão espedaçada que duvido que dê para aproveitar alguma coisa.

—Obrigado por esse pouco. Um Colt Magnum, um maldito revólver de caubói que devia ser totalmente proibido. Já temos o número de série?

—Ainda não - disse Oswald Mârtensson. —Mandei a arma e o fragmento da bala direto para o laboratório por um portador especial. Achei melhor eles olharem em vez de eu começar a mexer na arma.

—Está certo. Ainda não tive tempo de ir ao local, mas vocês dois estiveram lá. Quais são suas conclusões?

Anita Nyberg e Oswald Mârtensson trocaram um olhar. Nyberg deixou que seu colega mais velho respondesse.

—Em primeiro lugar, achamos que o assassino estava sozinho. Trata-se de uma verdadeira execução, não de um assassinato comum. A sensação é de que alguém tinha um motivo muito forte para matar Svensson e Bergman, e agiu com muita calma.

—E o que te faz pensar assim? - inquiriu Hans Faste.

—O apartamento estava limpo e em ordem. Não foi um assalto, não houve luta corporal ou coisa assim. Foram disparadas duas balas, e as duas atingiram o alvo bem na cabeça, com muita precisão. Logo, estamos lidando com alguém que sabe manejar uma arma.

—Certo.

—Se a gente der uma olhada aqui no desenho... fizemos uma simulação no local em que o homem, Dag Svensson, foi morto, de muito perto... podemos dizer que foi à queima-roupa. Há queimaduras muito claras em volta do ferimento penetrante. Eu diria que ele foi morto primeiro. Foi projetado contra a mesa de jantar. O assassino provavelmente estava na porta do hall ou na entrada da sala.

—Certo.

—De acordo com as testemunhas, os tiros se sucederam em alguns segundos. Mia Bergman foi morta de longe. Estava provavelmente na porta do quarto e tentou se desviar. A bala atingiu sua orelha esquerda e saiu logo acima do olho direito. A violência do impacto a impeliu para dentro do quarto onde foi encontrada. Ela caiu na beirada da cama e escorregou para o chão.

—Um atirador acostumado a manejar armas - confirmou Faste.

—É mais que isso. Não há nenhuma pegada indicando que o assassino tenha entrado no quarto para verificar quem ele acabava de matar. Ele sabia que a tinha atingido, virou as costas e saiu do apartamento. Foram dois tiros, dois mortos, e em seguida ele foi embora.

—Sim?

—Sem querer me adiantar à análise técnica, desconfio que o assassino usou munição de caça. A morte deve ter sido instantânea. As duas vítimas apresentam ferimentos pavorosos.

Houve um breve silêncio em volta da mesa. Nenhum dos presentes precisava ser lembrado de que existem dois tipos de munição - balas duras inteiramente cobertas de metal, que atravessam o corpo de lado a lado causando um estrago relativamente modesto, e munições flexíveis que se dilatam dentro do corpo e causam um estrago enorme. Há uma imensa diferença entre o estrago que uma bala de nove milímetros de diâmetro pode causar e o de uma bala que se expande até dois ou três centímetros. Este tipo é chamado “munição de caça”, ou “bala expansiva”, e seu objetivo é causar uma hemorragia abundante, o que é visto como uma caridade na caça ao alce, quando se trata de abater o animal o mais rápido possível sem que ele sofra. Por outro lado, as convenções internacionais proíbem o uso de munição de caça nas guerras, já que o infeliz atingido por uma bala expansiva quase sempre morre, pouco importando em que lugar do corpo se dá o impacto.

A polícia sueca, porém, em sua grande sabedoria, introduzira as munições de caça em seu arsenal dois anos antes. O motivo não era muito claro, mas o certo é que se, por exemplo, Hannes Westberg, o famoso manifestante atingido no ventre durante os tumultos de Göteborg em 2001, tivesse sido atingido por uma bala de caça, não teria sobrevivido.

—O objetivo, portanto, era matar - disse Curt Bolinder. Referia-se a Enskede, mas ao mesmo tempo expressava sua opinião no debate silencioso que ocorria em volta da mesa.

Anita Nyberg e Oswald Mârtensson assentiram com a cabeça.

—Depois, temos esse timing incrível - disse Bublanski.

—Exato. Imediatamente depois dos tiros, o assassino saiu do apartamento, desceu a escada, jogou a arma fora e sumiu noite adentro. Pouco depois, provavelmente em questão de segundos, Blomkvist e a irmã chegaram de carro.

—Hmm - fez Bublanski.

—Resta a possibilidade de o assassino ter saído pelo porão. Há uma porta de serviço que ele pode ter usado para chegar ao pátio e alcançar uma rua paralela, atravessando o gramado. Isso se ele tivesse a chave do porão.

—Existe alguma indicação de que ele tenha saído por lá?

—Não.

—Não temos nenhuma pista - disse Sonja Modig. —Mas por que ele jogou a arma fora? Se a tivesse levado - ou simplesmente jogado fora do prédio -, teríamos demorado para achar.

Todo mundo deu de ombros. Ninguém sabia responder àquela pergunta.

—O que pensar sobre Blomkvist? - perguntou Hans Faste.

—Ele estava manifestamente em estado de choque - disse Mârtensson. —Mas agiu de forma correta e coerente, deixou uma impressão positiva. A irmã dele confirmou o telefonema e o trajeto de carro. Não creio que ELE esteja envolvido no caso.

—É um jornalista conhecido - disse Sonja Modig.

—Isso vai fazer o maior barulho na imprensa - confirmou Bublanski. - Mais um motivo para solucionar o caso o mais depressa possível. Bem... Jerker, você, é claro, se encarrega do local do crime e dos vizinhos. Faste, você e o Curt ficam com as vítimas. Quem eram, profissão, círculo de amizades, quem teria motivo para matá-las? Sonja, nós dois vamos trabalhar nos depoimentos da noite passada. Depois você vai reconstituir a agenda de Dag Svensson e Mia Bergman nas vinte e quatro horas que antecederam o assassinato. Vamos tentar nos reunir de novo lá pelas duas e meia.

Quando se pôs ao trabalho, Mikael Blomkvist primeiro se instalou na sala que estivera à disposição de Dag Svensson durante a primavera. De início permaneceu um bom tempo parado, como se estivesse sem coragem de empreender a tarefa. Então ligou o computador.

Dag Svensson tinha seu próprio laptop e fizera boa parte do trabalho em casa, mas nos últimos tempos também ficara dois dias por semana na redação, ou até mais. Na Millennium, usara um antigo PowerMac G3 instalado na sala dos colaboradores. Mikael ligou a máquina e deparou com a miscelânea de coisas em que Dag Svensson estivera trabalhando. Ele usara o G3, sobretudo para pesquisas na internet, mas também havia ali vários arquivos que ele copiara do laptop. Por outro lado, mantinha um backup completo em dois discos ZIP que ele guardava numa gaveta fechada a chave. Todos os dias fazia uma cópia do material novo ou das atualizações. Não tinha aparecido na redação por vários dias, e a última cópia de segurança datava do domingo à noite. Faltavam três dias.

Mikael fez uma cópia do disco ZIP e trancou-a no armário de sua própria sala. A seguir, passou quarenta e cinco minutos percorrendo o conteúdo do disco original, que continha cerca de trinta pastas e inúmeras subpastas. O conjunto representava quatro anos de pesquisa acumulada para o projeto de Dag Svensson sobre o tráfico de mulheres. Leu o nome dos arquivos e procurou o que poderia conter algum material top secret - ou seja, o nome das fontes protegidas de Dag Svensson. Reparou que Dag Svensson era escrupuloso com suas fontes.-.estava tudo reunido numa pasta denominada [FONTES/SIGILO]. A pasta continha cento e trinta e quatro arquivos de variados tamanhos - a maioria pouco volumosos. Mikael selecionou e apagou todos os arquivos. Não os enviou para a lixeira, e sim para um ícone do programa Burn, que apagava em modo seguro.

Em seguida verificou os e-mails de Dag Svensson. Dag ganhara um endereço temporário no Millennium que ele usava tanto na redação como em seu computador pessoal. Tinha uma senha particular, o que não constituía um problema, já que Mikael era o administrador da conta e tinha acesso ao servidor da caixa de mensagens. Baixou uma cópia da correspondência de Dag Svensson e gravou-a num CD.

Por fim, debruçou-se sobre a imensa papelada que incluía obras de referência, notas, recortes de jornal, julgamentos e correspondência que Dag Svensson fora acumulando no caminho. Para não deixar margem ao acaso, ligou a fotocopiadora e fez uma cópia de tudo que parecia ter alguma importância. O processo envolvia um bom milhar de páginas e lhe custou três horas.

Selecionou todo o material que, de uma forma ou de outra, poderia estar relacionado com uma fonte sigilosa. O resultado foi um pacotinho de mais de quarenta páginas A4, principalmente na forma de notas oriundas de dois blocos A4 que Dag Svensson mantivera guardados a chave em sua mesa. Mikael pôs esse pacote num envelope e o levou para a sua própria sala. Depois recolocou a sala de Dag Svensson em ordem.

Só então conseguiu relaxar, e desceu até o 7-Eleven para tomar um café e comer um pedaço de pizza. Imaginava, erroneamente, que a polícia logo iria aparecer para examinar o conteúdo da sala de Dag Svensson.

Bublanski foi brindado com um impulso inesperado nas investigações pouco depois das dez horas, quando o Dr. Lennart Granlund, do Laboratório Criminalístico de Estado, em Linkóping, telefonou.

—É sobre o duplo assassinato de Enskede. -Já?

—Recebemos a arma hoje cedo e ainda não terminei totalmente a aná­lise, mas tenho uma informação que imagino deva interessá-lo.

—Que bom. Me conte tudo o que descobriu - pediu Bublanski, contendo a impaciência.

—A arma é um Colt 45 Magnum, fabricado nos Estados Unidos em 1981.

—A-há!

—Encontramos impressões digitais e, talvez, vestígios de DNA, mas a análise vai levar algum tempo. Também examinamos os projéteis que mataram o casal. Como era de se prever, as balas são mesmo dessa arma. Costuma ser assim, quando uma arma é encontrada na escada do local do crime. As balas estão superfragmentadas, mas conseguimos um pedacinho para poder comparar. Trata-se muito provavelmente da arma do crime.

—Uma arma ilegal, imagino. Você tem um número de série?

—A arma é absolutamente legal. Pertence a um advogado, o doutor Nils Bjurman, e foi comprada em 1983. Ele é membro do clube de tiro da polícia. Há um endereço em nome dele na Upplandsgatan, perto da Odenplan.

—Caramba!

—Encontramos várias digitais na arma. De pelo menos duas pessoas.

—A-há...

—É de se supor que um dos grupos de digitais seja de Bjurman, a não ser que a arma tenha sido roubada ou vendida, mas não há nenhuma indicação de que isso tenha acontecido.

—Ahã... Em outras palavras, temos um indício, como se diz nos filmes.

—Temos, nos nossos arquivos, uma ocorrência relacionada com a segunda pessoa. Digital do polegar e do indicador, mão direita.

—Quem é?

—Uma mulher nascida em 30 de abril de 1978. Foi detida por golpes e ferimentos no metrô da Gamla Stan em 1995. As digitais foram tiradas nessa ocasião.

—E ela tem nome?

—Sim. Lisbeth Salander.

Bublanski, vulgo Bubolha, ergueu as sobrancelhas e anotou o nome e a data de nascimento num bloco que havia em sua mesa.

Ao voltar para a redação depois do seu almoço tardio, Mikael Blomkvist foi direto trancar-se em sua sala, sinalizando assim que não queria ser incomodado. Ainda não tinha tido tempo de conferir todas as informações secundárias nos e-mails e anotações de Dag Svensson. No momento, precisava reavaliar o livro e os artigos com um novo olhar, considerando que seu autor estava morto e já não poderia responder às perguntas espinhosas.

Precisava tomar uma decisão sobre a publicação do livro, assim como descobrir se alguma coisa no meio do material poderia constituir o motivo do assassinato. Ligou o computador e se pôs ao trabalho.

Jan Bublanski ligou para o responsável pelo inquérito preliminar, Richard Ekström, para comunicar-lhe as novidades do laboratório. Decidiram que Bublanski e sua colega Sonja Modig entrariam em contato com o dr. Bjurman para uma conversa - que poderia se transformar em interrogatório ou, inclusive, em indiciamento, se fosse o caso -, ao passo que seus colegas Hans Faste e Curt Bolinder deveriam se concentrar em Lisbeth Salander, pedindo-lhe que explicasse como suas impressões digitais tinham ido parar na arma do crime.

Localizar o Dr. Bjurman de início não apresentou nenhum problema maior. Seu endereço constava no cadastro de contribuintes, no registro de armas e no registro de documentos de carros, além de figurar oficialmente na lista telefônica. Bublanski e Modig foram até Odenplan e conseguiram entrar no prédio da Upplandsgatan na hora em que um rapaz saía.

Depois as coisas se complicaram. Quando tocaram a campainha, ninguém atendeu. Foram até o escritório de Bjurman, em Sankt Eriksplan, e repetiram a manobra, com o mesmo resultado frustrante.

—Ele talvez esteja no tribunal - sugeriu a inspetora Sonja Modig.

—Talvez tenha fugido para o Brasil depois de cometer um duplo homicídio - disse Bublanski.

Sonja Modig meneou a cabeça, enquanto olhava de esguelha para o colega. Sentia-se bem na companhia dele. De bom grado o aceitaria como amante se não fosse mãe de dois filhos e se, tal como Bublanski, não fosse casada e feliz no casamento. Olhando para as placas de latão das demais portas do andar, observou que havia um Norman, dentista, uma empresa de nome N-Consulting e um Rune Hâkansson, advogado.

Bateram à porta de Hâkansson.

—Bom dia, meu nome é Modig e esse é o inspetor Bublanski. Somos da polícia e estou tentando entrar em contato com seu colega e vizinho doutor Bjurman. Por acaso saberia onde podemos encontrá-lo? Hâkansson balançou a cabeça.

—Eu o tenho visto pouco nesses últimos tempos. Ele esteve muito doente há dois anos e praticamente interrompeu toda a sua atividade. A placa continua na porta, mas ele aparece aqui muito pouco, eu diria que a cada dois meses.

—Muito doente?

—Não sei bem. Era uma pessoa muito ativa, e de repente adoeceu. Câncer, sei lá. Não o conheço muito.

—O senhor acha, ou sabe que ele teve câncer? - perguntou Sonja Modig.

—Bem... não sei. Ele tinha uma secretária, Britt Karlsson, ou Nilsson, uma coisa assim. Uma mulher já de certa idade. Foi demitida, e foi ela quem me contou que ele tinha ficado doente, mas eu não sei exatamente o que era. Foi na primavera de 2003. Só voltei a vê-lo no final do ano, e ele tinha envelhecido uns dez anos, estava magro, o cabelo tinha ficado grisalho... então eu pensei em câncer. Por quê? Ele fez alguma coisa?

—Não que a gente saiba - respondeu Bublanski. —Mas queremos falar com ele sobre um caso urgente.

Voltaram ao apartamento da Upplandsgatan e tocaram mais uma vez a campainha de Bjurman. Nenhuma resposta. Por fim, Bublanski pegou o celular e discou o número do celular de Bjurman. A resposta foi: o número chamado não está disponível no momento. Por favor, tente mais tarde.

Tentou o telefone fixo do apartamento. Do corredor, escutaram vagamente o toque do outro lado da porta, até que uma secretária eletrônica atendeu pedindo que fosse deixado um recado. Entreolharam-se e deram de ombros. Era uma da tarde.

—Um café?

—Melhor, um hambúrguer.

Foram até o Burger King da Odenplan. Sonja Modig comeu um Whopper e Bublanski pediu um hambúrguer vegetariano antes de voltarem para a superintendência.

O procurador Ekström convocou uma reunião em sua sala para as duas da tarde. Bublanski e Modig sentaram-se lado a lado na mesa de reunião, perto da janela. Curt Bolinder chegou dois minutos depois e sentou-se na frente deles. Jerker Holmberg entrou carregando uma bandeja cheia de copinhos de papelão com café. Tinha dado um pulo em Enskede e pretendia voltar para lá mais tarde, depois que os técnicos concluíssem seu trabalho.

—Onde está o Faste? - perguntou Ekström.

—Na Comissão de Assuntos Sociais. Ligou há cinco minutos para dizer que ia se atrasar um pouco - respondeu Curt Bolinder.

—Certo. Vamos começar sem ele. O que é que nós temos? - começou Ekström sem fazer cerimônia.

Apontou primeiro para Bublanski.

—Tentamos encontrar o doutor Nils Bjurman. Ele não estava nem em casa nem no escritório. Segundo um conhecido dele, ficou doente há dois anos e praticamente abandonou suas atividades.

Sonda Modig prosseguiu.

—Bjurman tem cinquenta e seis anos e nenhuma ficha criminal. Atua principalmente como advogado de empresas. Não tive tempo de examinar o passado dele.

—Mas ele é mesmo o dono da arma usada em Enskede?

—Isso é certo. Tem porte de armas e é membro do clube de tiro da polícia - disse Bublanski, meneando a cabeça. —Falei com o Gunnarsson, do departamento de armas; é o presidente do clube e conhece muito bem o nosso homem. Bjurman se tornou membro em 1978 e atuou como tesoureiro de 1984 a 1992. Gunnarsson descreve Bjurman como excelente atirador, calmo, ponderado e muito direto.

—Interessado em armas?

—Segundo o Gunnarsson, Bjurman estava mais interessado na vida social do que no tiro propriamente dito. Gostava das competições, mas nunca passou a imagem de um fanático por armas. Em 1983, participou do campeonato sueco e ficou em décimo terceiro lugar. Nos dez últimos anos, sua presença no tiro diminuiu, só tem aparecido nas assembléias e coisas assim.

—Ele tem outras armas?

—Desde que se tornou membro do clube de tiro, obteve licença de porte para quatro armas de punho. Além do Colt, tinha uma Beretta, uma Smith & Wesson e uma pistola de competição da marca Rapid. Essas três foram vendidas há dez anos por intermédio do clube, e as licenças foram transferidas para outros membros. Nada irregular.

—Nós só não sabemos onde ele se encontra atualmente.

—É verdade. Mas só estamos procurando desde as dez da manhã. Talvez tenha ido passear em Djurgârden, ou esteja hospitalizado, ou seja lá o que for.

Nisso, chegou Hans Faste. Parecia sem fôlego.

—Desculpem o atraso. Tenho novidades, passo agora para vocês? Ekström fez um gesto convidando-o a falar.

—Lisbeth Salander é um nome realmente interessante. Passei o dia na Assuntos Sociais e na Comissão de Tutelas.

Tirou a jaqueta de couro e colocou-a no encosto da cadeira antes de se sentar e abrir um bloco de anotações.

—Comissão de Tutelas? - perguntou Ekström com o cenho franzido.

—É uma fulana superperturbada - disse Hans Faste. —Foi declarada incapaz e colocada sob tutela. E adivinhem quem é o tutor? —Fez uma pausa oratória. —O doutor Nils Bjurman, proprietário da arma usada em Enskede.

Todos franziram o cenho.

Hans Faste levou quinze minutos repassando as informações que reunira sobre Lisbeth Salander.

— Resumindo — disse Ekström, quando Faste concluiu —, temos na arma do crime as impressões digitais de uma mulher que passou a adolescência entrando e saindo do hospital psiquiátrico, que se supõe que ganhe a vida se prostituindo, declarada incapaz pelo tribunal e com tendência manifesta à violência. Como é que ela anda à solta pelas ruas?

—Ela apresentou tendências à violência desde a pré-escola - disse Faste. —Parece uma legítima psicopata.

—Mas ainda não temos nada que a vincule ao casal de Enskede. —Ekström tamborilou com a ponta dos dedos na mesa. —Bem, quem sabe esse duplo homicídio afinal não seja tão difícil de solucionar? Temos o endereço dessa Salander?

—Oficialmente, ela mora na Lundagatan, em Södermalm. O fisco informa que em alguns períodos trabalhou como assalariada na Milton Security, uma empresa de segurança.

—E que tipo de trabalho ela fazia?

—Não sei. Mas era um salário anual bastante modesto, por alguns anos. Faxineira, ou algo assim.

—Hmm - fez Ekström. —Logo saberemos. Mas, por enquanto, me parece urgente encontrar esta Salander.

—Concordo - disse Bublanski. - Mais tarde a gente cuida dos detalhes. Com que, então, temos um suspeito. Faste, você e o Curt corram para a Lundagatan e tentem pegar a Salander. Sejam prudentes - não se sabe se ela tem outra arma nem até que ponto vai a loucura dela.

—Combinado.

—Bubolha - interrompeu Ekström. —O chefe da Milton Security se chama Dragan Armanskij. Eu o conheci há alguns anos durante uma investigação. Pode confiar nele. Vá até lá e converse com ele sobre a Salander. Deve dar tempo de você alcançá-lo antes de ele sair do escritório.

Bublanski parecia irritado, em parte porque Ekström tinha usado o seu apelido e também porque tinha formulado sua proposta como se fosse uma ordem. Seco, meneou a cabeça e voltou o olhar para Sonja Modig.

—Modig, continue procurando o doutor Bjurman. Pergunte nos apartamentos vizinhos. Acho que também é urgente encontrá-lo.

—Está bem.

—Temos que encontrar a ligação entre Salander e o casal de Enskede. E teríamos que conseguir situar Salander em Enskede na hora do crime. Jerker, pegue umas fotos dela para mostrar aos vizinhos. Operação porta a porta no final da tarde. Leve uns policiais uniformizados com você.

Bublanski fez uma pausa e coçou a nuca.

—Caramba, com alguma sorte a gente resolve essa confusão ainda hoje. E eu que achei que ia ser um caso arrastado.

—Outra coisa - disse Ekström. —A mídia está nos pressionando. Prometi uma coletiva às quinze horas. Posso cuidar disso, se alguém da assessoria de imprensa me ajudar. Imagino que alguns jornalistas liguem direto para vocês. Salander e Bjurman ficam em sigilo até segunda ordem.

Todos menearam a cabeça.

Dragan Armanskij planejara deixar o escritório mais cedo que de costume. Era Quinta-feira Santa, e ele e a mulher planejavam passar o feriadão da Páscoa na casa de campo em Blidö. Acabava de fechar sua pasta de documentos e vestir o casaco quando a recepção ligou, avisando que um certo inspetor Jan Bublanski desejava vê-lo. Armanskij não conhecia Bublanski, mas o fato de haver um policial procurando por ele bastou para ele soltar um suspiro e recolocar o casaco no cabide. Não estava com a menor vontade de atender o visitante, porém a Milton Security não podia se dar ao luxo de esnobar a polícia. Foi receber Bublanski no elevador.

—Obrigado por me ceder um pouco do seu tempo - disse Bublanski à guisa de cumprimento. —Meu chefe, o procurador Richard Ekström, mandou lembranças.

Apertaram-se as mãos.

—Ekström. Sim, de fato, estivemos em contato uma ou duas vezes. Já faz alguns anos. Aceita um,.café?

Armanskij parou na frente da máquina antes de abrir a porta de sua sala e convidar Bublanski a sentar-se na confortável poltrona dos visitantes, perto da janela.

—Armanskij... é um nome russo? - perguntou Bublanski, curioso. —O meu nome também é, com ski.

—A minha família é de origem armênia. E a sua?

—Polonesa.

—No que posso ajudá-lo?

Bublanski pegou um bloco de anotações e abriu-o.

—Estou investigando o duplo homicídio de Enskede. Imagino que já tenha visto o noticiário de hoje.

Armanskij aquiesceu com um gesto de cabeça.

—O Ekström me disse que o senhor é discreto.

—Na minha posição, não vale a pena brigar com a polícia. Sei ficar de boca fechada, se é o que quer saber.

—Muito bem. Nesse momento, estamos procurando uma pessoa que trabalhou para o senhor. O nome dela é Lisbeth Salander. O senhor a conhece?

Armanskij sentiu de repente uma bola de cimento se formando em sua barriga. Permaneceu impassível.

—Por que estão procurando a senhorita Salander?

—Digamos que temos motivos para considerá-la interessante para a investigação.

A bola de cimento na barriga de Armanskij se dilatou. A dor era quase física. Desde a primeira vez em que vira Lisbeth Salander, tivera um forte pressentimento de que a vida daquela moça se encaminhava para uma catástrofe. Mas sempre a vira como vítima, não como culpada. Seu rosto continuava impassível.

—Vocês suspeitam que Lisbeth Salander tenha cometido o duplo assassinato de Enskede, é isso? Estou entendendo direito?

Bublanski hesitou por um instante antes de concordar com a cabeça.

—O que pode me dizer sobre Salander?

—O que quer saber?

—Para começar... onde ela pode ser encontrada?

—Ela mora na Lundagatan. Preciso verificar o endereço exato. Tenho o número do celular dela.

—O endereço nós já temos. O número do celular nos interessa. Armanskij procurou o número no caderno de endereços. Leu em voz alta enquanto Bublanski anotava.

—Ela trabalhava para o senhor.

—Como freelancer. De vez em quando passava um ou outro serviço para ela. Isso de 1998 até mais ou menos um ano e meio atrás.

—Que tipo de serviço?

—Pesquisa.

Bublanski ergueu os olhos do bloco de anotações com um ar espantado.

—Pesquisa? - repetiu.

—Investigações sobre pessoas, para ser mais preciso.

—Um momento... estamos falando da mesma moça? - perguntou Bublanski. —A Lisbeth Salander que estamos procurando nem concluiu o segundo grau e foi declarada incapaz.

—Não se diz mais “declarada incapaz” - observou Armanskij suavemente.

—Não me interessa como se diz. De acordo com os dados de arquivo, a moça que estamos procurando parece ser tremendamente perturbada e ter predisposição à violência. Além disso, há um relatório da Comissão de Assuntos Sociais dando a entender que ela se prostituía no final dos anos 1990. Nada no dossiê dela indica que pudesse ter um trabalho qualificado.

—Os dossiês são uma coisa. Os seres humanos são outra.

—Quer dizer que ela é qualificada para fazer investigações sobre pessoas para a Milton Security?

—Não só isso. É incontestavelmente a melhor investigadora que eu conheço.

Devagar, Bublanski colocou a caneta de lado e franziu a testa.

—O senhor parece que... a respeita bastante.

Armanskij olhou para as próprias mãos. A pergunta o punha diante de uma encruzilhada. Ele sempre soubera que mais cedo ou mais tarde Lisbeth Salander se veria em maus lençóis. Ele tinha a maior dificuldade em entender o que poderia tê-la envolvido no duplo assassinato de Enskede - quer como culpada, quer como cúmplice -, mas era obrigado a admitir que pouco sabia da vida pessoal dela. No que é que ela foi se meter? Armanskij lembrou de sua súbita visita à empresa, quando misteriosamente afirmara que tinha dinheiro suficiente para se virar e não estava precisando de trabalho.

O mais prudente, o mais sensato naquele momento, era permanecer distante de tudo que dizia respeito à Lisbeth Salander, tanto do ponto de vista pessoal como, e principalmente, da Milton Security. Armanskij ponderou que Lisbeth Salander era sem dúvida a criatura mais sozinha que ele conhecia.

—Respeito à competência dela. E isso vocês não vão encontrar nem no histórico escolar e nem nos arquivos.

—Então conhece o passado dela?

—Sei que ela foi posta sob tutela e que teve uma infância difícil, sim.

—Mesmo assim o senhor a contratou.

—Foi justamente por isso que eu a contratei.

—Explique melhor.

—O antigo tutor dela, Holger Palmgren, era o advogado do velho J. F. Milton. Começou a tomar conta dela na adolescência e me convenceu a lhe dar um trabalho. De início, pedi para ela separar a correspondência, fazer fotocópias, esse tipo de coisa. Depois me dei conta de que ela tinha talentos inesperados. E o tal relatório do Serviço Social dizendo que ela de vez em quando se prostituía, pode esquecer. Isso é besteira. Lisbeth Salander teve uma infância lamentável e era, sem sombra de dúvida, meio selvagem, o que não é nenhum crime. Acho que prostituição seria a última coisa que ela faria.

—O novo tutor dela se chama Nils Bjurman.

—Não o conheço. Palmgren teve um derrame há dois anos. Pouco depois, Lisbeth Salander reduziu os serviços que me prestava. O último foi em outubro, há um ano e meio.

—Por que deixou de recorrer a ela?

—Não foi escolha minha. Ela é que cortou o contato e sumiu, foi para o exterior sem nenhuma palavra de explicação.

—Sumiu no exterior?

—Ficou fora mais de um ano.

—Não está batendo. O doutor Bjurman enviou relatórios mensais sobre ela no ano passado todo. Temos as cópias na delegacia central.

Armanskij deu de ombros, sorrindo de leve.

—Quando a viu pela última vez?

—Faz mais ou menos dois meses, no início de fevereiro. Ela apareceu do nada, para uma visita de cortesia. Fazia mais de ano que eu não tinha notícias dela. Passou o ano todo fora, percorrendo a Ásia e as Antilhas.

—Me desculpe, mas estou meio perplexo. Eu vim para cá com a impressão de que Lisbeth Salander era uma garota com problemas psiquiátricos, que não tinha nem terminado a escola e estava sob tutela. Agora o senhor vem me dizer que a contratou como investigadora altamente qualificada, que ela trabalha como freelancer e ganha o suficiente para tirar um ano sabático e dar a volta ao mundo, isso sem que o tutor dela dê o alerta. Alguma coisa não está batendo.

—Muitas coisas não batem quando se trata de Lisbeth Salander.

—Posso lhe perguntar... o que acha dela? Armanskij refletiu um instante.

—Acho que é a pessoa mais inflexível que eu já conheci, chega a ser irritante - ele acabou dizendo.

—Inflexível?

—Ela não faz nada que não sinta vontade de fazer. Não dá a mínima para o que os outros pensam a seu respeito. É de uma competência extraordinária. E é completamente diferente das outras pessoas.

—Louca?

—Qual é a sua definição dessa palavra?

—Ela seria capaz de matar duas pessoas a sangue-frio? Armanskij permaneceu um bom tempo calado.

—Lamento - disse por fim. —Não posso responder a essa pergunta. Sou um cínico. Acho que todo mundo tem em si a capacidade de matar alguém. Por desespero, ódio, ou pelo menos para se defender.

—Isso significa que não exclui a possibilidade.

—Lisbeth Salander não faz nada sem motivo. Se ela matou alguém, é porque achou que tinha um bom motivo para isso. Queria perguntar uma coisa... Em que se baseia a sua suspeita de que ela estaria envolvida nos assassinatos de Enskede?

Bublanski hesitou um pouco. Seu olhar cruzou com o de Armanskij.

—Que fique só entre nós.

—Com toda a certeza.

—A arma do crime pertence ao tutor dela. E tem as digitais dela. Armanskij cerrou os dentes. Era uma circunstância agravante.

—Eu só ouvi falar desse assassinato pelo rádio. Qual foi o motivo? Drogas?

—Ela tem alguma ligação com o mundo das drogas?

—Não que eu saiba. Mas, como eu disse, a infância dela foi bem complicada, e aconteceu de uma vez ela ser presa na rua por embriaguez. Suponho que o dossiê dela diga que a droga fazia parte do quadro.

—O problema é que não temos a menor idéia do motivo desses assassinatos. Era um casal exemplar. Ela, criminologista, prestes a defender uma tese de doutorado. Ele, um jornalista. Dag Svensson e Mia Bergman. Isso lhe diz alguma coisa?

Armanskij balançou a cabeça.

—Estamos tentando entender a ligação entre eles e a Lisbeth Salander.

—Nunca ouvi falar neles. Bublanski se levantou.

—Obrigado por ter me cedido seu tempo. A conversa foi fascinante. Não sei se estou saindo daqui mais bem informado do que cheguei, mas espero que isto fique entre nós.

—Sem nenhum problema.

—E espero poder voltar aqui, se necessário. E, claro, se a Lisbeth Salander aparecer...

- Claro... - respondeu Dragan Armanskij. Apertaram-se as mãos. Quando Bublanski chegou à porta, deteve-se e virou-se mais uma vez para Armanskij.

—O senhor por acaso sabe com quem ela anda? Algum amigo, conhecido...

Armanskij balançou a cabeça.

—Não conheço nada, por assim dizer, da vida pessoal dela. Uma das poucas pessoas que contam para ela é o Holger Palmgren. Ela certamente procurou entrar em contato com ele. Ele está internado num centro de reabilitação em Ersta.

—Ela nunca recebeu nenhuma visita quando trabalhava aqui?

—Não. Ela trabalhava em casa, só aparecia para me entregar os relatórios. Inclusive, era muito raro ela encontrar com um cliente. A não ser talvez...

Uma idéia repentina passou pela mente de Armanskij.

—O quê?

—Bem, existe outra pessoa que ela talvez tenha procurado. Um jornalista com quem ela conviveu bastante dois anos atrás e que ficou o tempo todo me pedindo notícias quando ela esteve fora.

—Um jornalista?

—O nome dele é Mikael Blomkvist. Lembra do caso Wennerström? Bublanski soltou lentamente a maçaneta da porta e se voltou para Dragan Armanskij.

—Foi o Mikael Blomkvist que encontrou os corpos em Enskede. O senhor acaba de estabelecer uma ligação entre Salander e as vítimas.

Armanskij sentiu o peso da bola de cimento em sua barriga.

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