15. QUINTA-FEIRA 19 DE MAIO – DOMINGO 22 DE MAIO


Lisbeth Salander passou a maior parte da noite de quinta-feira lendo os artigos de Mikael Blomkvist e os capítulos de seu livro que estavam quase concluídos. Uma vez que o procurador Ekstrõm contava com o julgamento em julho, Mikael estipulara 20 de junho como o prazo de impressão. Isso significava que o Super-Blomkvist dispunha de um mês para terminar a redação e preencher todas as lacunas do texto.

Lisbeth não entendia como ele ia achar tempo, mas esse era um problema de Mikael, não dela. Seu problema era definir que atitude tomar em relação às questões que ele lhe propusera.

Pegou seu Palm e entrou em [Tavola-Biruta] para ver se ele tinha escrito alguma coisa desde o dia anterior. Viu que não. Então abriu o documento que ele intitulara [Questões centrais]. Já sabia o texto de cor, mas mesmo assim releu-o mais uma vez.

Era um esboço da estratégia que Annika Giannini já lhe expusera. Enquanto Annika falava, ela escutara com um interesse distraído e distante, um Pouco como se não estivesse interessada. Mas Mikael Blomkvist conhecia segredos seus que Annika Giannini não conhecia. Por isso ele conseguia apresentar a tal estratégia de forma mais substancial. Ela foi para o quarto parágrafo.


[A única pessoa que pode determinar como será o seu futuro é você mesma Pouco importam os esforços de Annika para te ajudar, ou os meus esforços de Armanskij, os de Palmgren e os de outras pessoas para te apoiar. Não pretendo te convencer a agir. Cabe a você decidir o que fazer. Ou você reverte o processo a seu favor, ou deixa que eles te condenem. Mas se quiser vencer, vai ter que lutar.]

Ela se desconectou e fitou o teto. Mikael pedia sua autorização para contar a verdade em seu livro. A intenção dele era omitir o estupro de Bjurman. O capítulo já estava escrito e ele juntava as pontas partindo do princípio de que Bjurman iniciara uma colaboração com Zalachenko, na qual tinha entrado areia quando Bjurman se apavorou e Niedermann se viu obrigado a matá-lo. Mikael não mencionava os motivos de Bjurman.

O Maldito Super-Blomkvist estava complicando a vida de Lisbeth Salander.

Ela refletiu por um longo tempo.

Às duas da manhã, ligou o Palm e abriu o editor de texto. Clicou em Novo Arquivo, pegou a canetinha digital e começou a marcar as letras no teclado.

[Meu nome é Lisbeth Salander. Nasci em 30 de abril de 1978. Minha mãe se chamava Agneta Sofia Salander. Tinha dezessete anos quando eu nasci. Meu pai era um psicopata, um assassino e um espancador de mulheres chamado Ale-xander Zalachenko. Ele havia trabalhado na Europa Ocidental como operador ilegal do GRO, O serviço de informações militares soviético.]

O texto avançava muito devagar, pois ela era obrigada a marcar letra por letra. Formulava cada frase mentalmente antes de escrevê-la. Não fez uma única alteração no que tinha escrito. Trabalhou até as quatro da manhã, quando desligou o computador de mão e guardou-o na cavidade atrás do criado-mudo. Produzira o equivalente a duas folhas A4 com entrelinhas simples.


Erika Berger acordou às sete horas. Sentia-se longe de ter preenchido cota de sono, mas dormira sem interrupção por oito horas. Lançou um olhar para Mikael Blomkvist, que ainda dormia pesadamente.

Antes de mais nada, ligou o celular e conferiu se tinha alguma mensagem. A tela indicou que seu marido, Lars Beckman, ligara-lhe onze vezes. Dro&z. Esqueci de avisar. Discou o número dele, explicou onde estava e por que não tinha voltado para casa na noite anterior. Ele estava aborrecido.

— Erika, nunca mais faça isso. Você sabe que não é por causa do Mikael, mas eu passei a noite toda louco de preocupação. Fiquei com medo que tivesse acontecido alguma coisa. Você precisa me avisar quando não vem para casa. Não pode esquecer, nunca.

Lars Beckman sabia perfeitamente que Mikael Blomkvist era amante de sua mulher. A relação existia com seu aval e consentimento. Mas sempre que Erika resolvia passar a noite na casa de Mikael Blomkvist, ela ligava para o marido e explicava a situação. Dessa vez, tinha ido para o hotel sem pensar em nada além de dormir.

— Me desculpe — disse ela. — Eu estava de-mo-li-da ontem à noite. Ele ainda resmungou mais um pouco.

— Não fique bravo, Lars. Não estou com energia para isso agora. À noite você me dá uma bronca.

Ele resmungou um pouco menos e prometeu lhe dar uma bronca quando pusesse as mãos nela.

— Bem. Como vai o Blomkvist?

— Está dormindo. — Ela riu de repente. — Não estou pedindo para você acreditar, mas caímos no sono cinco minutos depois de deitar. E a primeira vez que isso acontece.

— Erika, isso é sério. Você talvez devesse consultar um médico. Terminada a conversa com o marido, ela ligou para o PABX do SMP e deixou um recado para o assistente de redação, Peter Fredriksson. Explicou que tinha tido um imprevisto e chegaria um pouco mais tarde. Pediu que ele desmarcasse uma reunião agendada com os colaboradores da editaria de Cultura.

Depois, procurou sua bolsa, pegou uma escova de dentes e foi até o banheiro. Então voltou para a cama e acordou Mikael.

— Oi — ele murmurou.

— Oi — disse ela. — Vá depressa até o banheiro tomar um banho de gato e escovar os dentes.

— Quê... o quê?

Ele se sentou e olhou em volta tão espantado que ela precisou lembrá-lo de que estavam no Hotel Hilton de Slussen. Ele meneou a cabeça.

— Vamos. Já para o banheiro.

— Por quê?

— Porque assim que você sair de lá, vou fazer amor com você. Ela consultou o relógio.

— E seja rápido. Tenho uma reunião às onze e preciso de pelo menos meia hora para ajeitar o rosto. E ainda vou ter que comprar uma blusa a caminho do trabalho. Só temos duas horas para recuperar um monte de tempo perdido.

Mikael correu para o banheiro.

Jerker Holmberg estacionou o Ford de seu pai no pátio da casa do ex-primeiro-ministro Thprbjõrn Fàlldin, em As, próximo a Ramvik, na comuna de Hàrnõsand. Desceu do carro e deu uma olhada ao redor. Era quinta-feira de manhã. Garoava e os campos estavam claramente verdes. Aos setenta e nove anos, Fálldin já não era um agricultor em atividade e Holmberg se perguntou quem plantava e colhia ali. Fazia parte das regras do campo. Ele próprio tinha se criado em Hálledal, perto de Ramvik, a poucos metros de distância de Sandõbron, um dos lugares mais belos do mundo. Na opinião de Jerker Holmberg.

Ele subiu os degraus da frente e bateu na porta.

O antigo líder dos centristas estava envelhecido, mas ainda parecia cheio de vigor.

— Como vai, Thorbjórn? Meu nome é Jerker Holmberg. Já nos encontramos, mas faz alguns anos que nos vimos pela última vez. Meu pai é Gustav Holmberg, ele foi vereador centrista da comuna nos anos 1970 e 1980.

— Como vai? Sim, claro que estou reconhecendo você, Jerker. Você e policial em Estocolmo, se não me engano. Deve fazer uns dez, quinze anos que não nos vemos.

— Acho que até mais. Posso entrar?

Sentou-se à mesa da cozinha e Thorbjõrn Fãlldin tratou de servir um café.

— Espero que seu pai esteja bem. Não é por isso que você veio?

— Não. Meu pai está bem. Está refazendo o telhado da casa de campo.

— Com que idade ele está?

— Fez setenta e um há dois meses.

— Sim — disse Fãlldin, sentando-se. — Então, a que devo a honra da sua visita?

Jerker Holmberg olhou pela janela e viu uma gralha aterrissando ao lado de seu carro e ficar observando o chão. Virou-se para Fãlldin.

— Eu vim sem ser convidado e trago um problema enorme. E possível que no final desta conversa eu seja demitido. Estou aqui por motivo de trabalho, mas o meu chefe, o inspetor Jan Bublanski, da Brigada Criminal de Estocolmo, não está sabendo.

— Parece coisa séria.

— Vou estar bem encrencado se os meus superiores souberem desta visita.

— Entendo.

— Mas receio que, se eu não agir, um erro judicial terrível possa acontecer, e pela segunda vez.

— Seria melhor você se explicar.

— É a respeito de um homem chamado Alexander Zalachenko. Ele era espião do GRO russo e veio procurar asilo na Suécia no dia das eleições de 1976. O asilo foi concedido e ele passou a trabalhar para a Sapo. Tenho motivos para acreditar que você conhece essa história.

Thorbjõrn Fãlldin fitou Jerker Holmberg atentamente.

— É uma longa história — disse Holmberg, e começou a falar sobre o inquérito preliminar que o mantivera ocupado naqueles últimos meses.

Erika Berger rolou de bruços e descansou a cabeça sobre as mãos.

— Mikael, nunca lhe passou pela cabeça que na verdade nós dois somos completamente doidos?

— Como assim?

— No meu caso, pelo menos. Tenho por você um desejo incrível. lVle sinto como uma adolescente maluquete.

— Ah, é?

— E depois quero voltar para casa e fazer amor com o meu marido. Mikael riu.

— Conheço um bom terapeuta — disse ele. Ela tamborilou o dedo na barriga dele.

— Mikael, estou começando a achar que essa história do SMP não passa de um erro tremendo.

— Bobagem! E uma oportunidade fantástica para você. Se existe alguém capaz de reanimar aquele cadáver velho, esse alguém é você.

— É, pode ser. Mas o problema é justamente esse. O SMP tem todo o jeito de um cadáver. E ontem à noite você ainda me entregou esse presente do Magnus Borgsjõ. Não sei o que estou fazendo lá.

— Deixe a poeira baixar um pouco.

— Sim. Mas não vejo a menor graça nesse caso Borgsjõ. Não faço idéia de como vou administrar esse problema.

— Eu também não. Mas vamos achar um jeito. Ela ficou um instante calada.

— Sinto sua falta.

Ele assentiu com a cabeça e a fitou.

— Eu também sinto sua falta — disse.

— O que seria preciso para você ir para o SMP e se tornar chefe da Atualidades?

— Nem pensar. O editor de Atualidades não é um tal de Holm?

— É. Um cretino.

— Concordo.

— Você o conhece?

— Claro. Eu fui substituto sob as ordens dele, durante três meses, nos anos 1980. É um idiota que fica jogando as pessoas umas contra as outras. Além disso...

— Além disso o quê?

— Ah, nada. Não quero ficar repassando fofoca.

— Conta para mim.

— Uma mulher chamada Ulla qualquer coisa, também substituta, afirmava que ele a assediava sexualmente. Não sei se é verdade ou não, mas 3o houve intervenção do sindicato e ela não conseguiu prorrogar o contrato que tinha sido combinado de início.

Erika Berger olhou a hora e suspirou, jogou as pernas para fora da cama desapareceu no chuveiro. Mikael não se mexeu quando ela voltou se secando e se vestiu rapidamente.

— Vou ficar mais um pouco — disse ele.

Ela tascou-lhe um beijo no rosto, acenou com a mão e foi embora.

Rosa Figuerola estacionou a vinte metros do carro de Gõran Mârtensson na Luntmakaregatan, bem ao lado da Rua Olof Palmes gata. Viu Mârtensson percorrer a pé os sessenta metros que o separavam do parquímetro. Ele foi até a Sveavãgen.

Rosa Figuerola dispensou o pagamento. Ela o perderia de vista se parasse na máquina. Seguiu Mârtensson até a Kungsgatan, onde ele dobrou à esquerda. Empurrou a porta do Kungstornet. Ela reclamou, mas não tinha escolha e esperou três minutos antes de ir atrás dele dentro do café. Ele estava sentado no térreo e falava com um homem loiro, de uns trinta e cinco anos, com jeito de fortão. Um tira, pensou Rosa Figuerola.

Reconheceu-o como o homem que Christer Malm fotografara em frente ao Copacabana em 1º. de maio.

Ela pediu um café, sentou-se do outro lado do Kungstornet e abriu o Nagens Nyheter. Mârtensson e seu companheiro falavam em voz baixa. Ela não conseguia captar as palavras. Pegou o celular e fingiu ligar para alguém — o que foi inútil, já que nenhum dos dois olhava para ela. Tirou uma foto com o celular, sabendo perfeitamente que seria de 72 dpi, portanto de baixa qualidade para ser impressa. Em compensação, poderia servir como prova de que o encontro realmente acontecera.

Passados pouco mais de quinze minutos, o homem loiro se levantou e saiu do Kungstornet. Rosa Figuerola soltou intimamente um palavrão. Por que ela não tinha ficado lá fora? Ela o teria reconhecido quando ele saísse do café. Teve vontade de se levantar e recomeçar a caçada. Mas Mârtensson estava ali tranqüilamente, terminando seu café. Não queria chamar a atenção dele ao se levantar para seguir seu amigo não identificado.

Um minuto depois, Mârtensson se levantou e foi ao banheiro. Assim que fechou a porta, Rosa Figuerola levantou-se de um salto e saiu pela Kungsgatan Espiou nas duas direções, mas o homem loiro tivera tempo de desaparecer.

Ela apostou no tudo ou nada e correu para o cruzamento da Sveavãgen Não o via em lugar algum e desceu no metrô. Sem nenhuma esperança.

Retornou ao Kungstornet. Mârtensson também tinha sumido.

Erika Berger não conteve um palavrão quando chegou ao local onde estacionara sua BMW na noite anterior, a duas quadras do Samirs Gryta.

O carro ainda estava lá, mas, durante a noite, alguém havia furado seus quatro pneus. Seus porra de uns putos de uns ratos de merda!, exclamou intimamente, fervendo de raiva.

Não havia alternativa. Ligou para a oficina mecânica e explicou a situação. Não tinha tempo para ficar ali esperando, portanto enfiou a chave no cano de escapamento para que os mecânicos pudessem abrir o carro. Depois foi até a Mariatorget e pegou um táxi.

Lisbeth Salander entrou no site da Hacker Republic e constatou que Praga estava conectado. Chamou-o.

[Olá, Wasp. Como é estar no Sahlgrenska?]

[Repousante. Preciso da sua ajuda.]

[Não diga!!!]

[Eu não achava que fosse precisar.]

[Deve ser coisa séria.]

[Gõran Mârtensson, residente em Vallingby. Preciso ter acesso ao computador dele.]

[O.k.]

[Todo o material deve ser transferido para o Mikael Blomkvist, da Millen-nium.]

[O.k. Eu cuido disso.]

[O Big Brother está vigiando o telefone do Super-Blomkvist e provavelmente os e-mails também. Você tem que mandar para um endereço hotmail.]

[O.k.]

[Se eu não estiver disponível, o Blomkvist vai precisar da sua ajuda. Ele tem que poder te contatar.] [Humm.]

[Ele é meio certinho, mas você pode confiar nele.] [Humm.] [Quanto você vai querer?]

Praga ficou calado por alguns segundos.

[Isso tem algo a ver com a sua atual situação?]

[Tem.]

[E vai te ajudar?]

[Vai.]

[Então eu pago essa rodada.]

[Obrigada. Mas eu sempre pago as minhas dívidas. Vou precisar da sua ajuda até o julgamento. Pago 30 mil.]

[Você tem como pagar?]

[Tenho como pagar.]

[O.k.]

[Acho que vamos precisar do Trinity. Você acha que consegue fazer com que ele venha até a Suécia?]

[Para quê?]

[Para fazer o que ele sabe fazer de melhor. Pago honorários-padrão + despesas.]

[O.k. Quem?]

Ela explicou o que queria que ele fizesse.

O dr. Anders Jonasson parecia preocupado na sexta-feira de manhã enquanto fitava um inspetor Hans Faste um tanto irritado sentado do outro lado da mesa.

— Lamento — disse Anders Jonasson.

— Não consigo entender. Pensei que a Salander estivesse recuperada.


Vim até Gõteborg não só para interrogá-la mas para organizar a transferência dela para uma cela de Estocolmo, onde é o lugar dela.

— Lamento — Anders Jonasson repetiu. — Estou com muita vontade de me livrar dela, mesmo porque não temos muitos leitos. Mas...

— Existe a possibilidade de ela estar fingindo? Anders Jonasson riu.

— Não acho provável. Veja bem. A Lisbeth Salander tem um ferimento na cabeça. Extraí uma bala do cérebro dela; casos assim são uma loteria no que diz respeito às chances de sobrevivência. Ela sobreviveu, e o prognóstico foi particularmente bom... tão bom que eu e meus colegas estávamos prestes a lhe dar alta. Então aconteceu, ontem, essa nítida regressão. Ela se queixou de uma forte dor de cabeça e vem apresentando uma febre intermitente. Ontem estava com 38, e vomitou duas vezes. Durante a noite, a febre baixou e a temperatura estava quase normal, achei que tinha sido algo passageiro. Mas quando a examinei de manhã, estava com quase 39, e isso é sério. Durante o dia, a febre baixou de novo.

— Mas qual é o problema?

— Não sei, porém o fato de a temperatura oscilar desse modo mostra que não se trata de uma gripe ou algo do gênero. Contudo, não posso afirmar exatamente o que é, pode ser uma simples alergia a algum medicamento ou a outra coisa que ela tenha tocado.

Ele exibiu uma foto no computador e mostrou a tela para Hans Faste.

— Pedi uma tomografia do crânio. Como você vê, aqui temos uma parte mais escura, bem no local do ferimento. Não consigo definir o que é. Pode ser o ferimento cicatrizando, mas também uma pequena hemorragia. Só que antes de definir o problema não posso dar alta, por mais urgente que seja.

Hans Faste concordou com a cabeça, resignado. Não chegara a ponto de argumentar com um médico, profissional com poder de vida e morte, o que mais se aproxima de um representante de Deus na terra. Exceção feita aos policiais. De qualquer forma, ele não se sentia competente nem tinha conhecimentos para definir até que ponto Lisbeth Salander estava mal.

— E o que vai acontecer agora?

— Recomendei repouso completo e a interrupção da fisioterapia, de que ela precisa por causa dos ferimentos no ombro e no quadril.

- Certo... preciso entrar em contato com o procurador Ekstrõm em Estocolmo. Isso tudo aconteceu meio de surpresa. O que digo a ele?

— Há dois dias, eu estava prestes a autorizar a transferência talvez para o fim de semana. Na atual situação, vamos ter que aguardar algum tempo. Deve avisá-lo de que eu provavelmente não tome nenhuma decisão nesta semana, talvez ainda demore umas duas semanas até que vocês possam transferi-la para a casa de detenção de Estocolmo. Tudo vai depender da evolução do caso.

— A data do julgamento está marcada para julho...

— Se não houver nenhum imprevisto, ela deverá estar de pé bem antes disso.

O inspetor Jan Bublanski contemplou com desconfiança a mulher musculosa sentada do outro lado da mesa do café. Estavam numa esplanada da Norr Málarstrand. Era sexta-feira, 20 de maio, e fazia um dia de verão. Ela fora apanhá-lo às cinco da tarde, quando ele estava indo para casa, e exibira suas credenciais, que anunciavam Rosa Figuerola, da Segurança. Propusera uma conversa particular acompanhada por uma xícara de café.

De início, Bublanski se mostrara reticente e rabugento. Depois de algum tempo, ela o olhara nos olhos e disse que não estava em missão oficial para interrogá-lo, e que obviamente ele não tinha que falar com ela se não quisesse. Ele perguntara o que ela queria e ela explicara com toda a franqueza que seu chefe a incumbira de investigar o que havia de falso e de verdadeiro no pretenso caso Zalachenko, às vezes chamado de caso Salander. Explicara também que não tinha certeza de estar autorizada a lhe fazer perguntas e que cabia a ele optar por responder ou não.

— O que você quer saber? — Bublanski acabou perguntando.

— Me conte o que você sabe sobre Lisbeth Salander, Mikael Blomkvist, Gunnar Bjõrck e Alexander Zalachenko. Como é que essas peças todas acabam se juntando?

Conversaram por mais de duas horas.

Torsten Edklinth refletiu exaustivamente, tentando achar uma forma de prosseguir. Após cinco dias de investigação, Rosa Figuerola lhe fornecera uma seqüência de elementos claros e precisos que indicavam algo de muito ruim ocorrendo dentro da Sapo. Ele percebia a necessidade de agir com cautela, até dispor de provas suficientes para fundamentar suas afirmações. Na atual situação, ele mesmo se via em meio a certa desorientação constitucional, já que não tinha competência para levar adiante investigações secretas de intervenção, muito menos contra seus próprios colaboradores.

Portanto, precisava encontrar uma maneira de legitimar sua atuação. Em uma situação de crise, poderia apelar para sua condição de policial e para o dever que tem um policial de elucidar crimes — mas o crime em questão era de uma natureza constitucional tão delicada que ele provavelmente seria demitido se desse um passo em falso. Passou a sexta-feira em meio a ruminações solitárias dentro de sua sala.

As conclusões a que chegava eram de que Dragan Armanskij estava certo, mesmo que parecesse inverossímil. Existia uma conspiração dentro da Sapo, e algumas pessoas estavam atuando além de suas atividades regulares, ou paralelamente a elas. Considerando-se que fazia anos que tais atividades vinham se desenvolvendo — desde 1976, no mínimo, quando Zalachenko chegara à Suécia —, isso significava que elas eram organizadas e contavam com o aval de algumas "autoridades dentro da hierarquia. Ele ignorava até que nível remontava essa conspiração.

Escreveu três nomes num bloco de anotações.

Gõran Mârtensson. Proteção à Pessoa. Inspetor criminal.

Gunnar Bjõrck, chefe-adjunto da Brigada dos Estrangeiros. Falecido. (Suicídio?)

Albert Shenke, secretário-geral, DGPN/Sapo.

Rosa Figuerola concluíra que pelo menos o secretário-geral devia ter orquestrado o caso quando Mârtensson, da Proteção à Pessoa, fora transferido, embora não de fato, para a contra-espionagem. Ele passava o tempo vigiando o jornalista Mikael Blomkvist, o que não tinha absolutamente nada a ver com atividades de contraespionagem.

A essa lista cabia acrescentar outros nomes de fora da Sapo.

Peter Teleborian, psiquiatra Lars Faulsson, chaveiro

Teleborian fora contratado algumas vezes pela Sapo como consultor em psiquiatria no final dos anos 1980 e início dos 1990. Isso se dera, mais precisamente, três vezes, e Edklinth examinara os relatórios dos arquivos. A primeira fora uma ocasião extraordinária: a contra-espionagem identificara um informante russo infiltrado na indústria de telefonia sueca, e o passado daquele espião levava a pensar que ele poderia recorrer ao suicídio caso fosse desmascarado. Teleborian fizera uma análise, elogiada por sua precisão, sugerindo que o informante fosse convertido em agente duplo. Nas duas outras ocasiões, Teleborian fora consultado para avaliações de menor importância, uma de um funcionário da Sapo com problemas de alcoolismo e outra de um diplomata de um país africano com um estranho comportamento sexual.

Nem Teleborian nem Faulsson, porém — e muito menos Faulsson —, eram empregados da Sapo. No entanto, pelas missões que lhes confiavam, tinham algum vínculo com... com quê?

A conspiração estava intimamente ligada ao falecido Alexander Zalachenko, agente russo desertor do GRO e que, de acordo com as fontes, chegara à Suécia no dia das eleições de 1976. E do qual ninguém nunca ouvira falar. Como era possível?

Edklinth tentou imaginar o que poderia ter acontecido caso ele estivesse entre os executivos dirigentes da Sapo em 1976, quando Zalachenko havia desertado. Como ele teria se comportado? Discrição absoluta. Evidentemente. A deserção só podia ser do conhecimento de um pequeno círculo exclusivo, para evitar o risco de a informação chegar até os russos e... Que tipo de pequeno círculo?

Uma seção de intervenção?

Uma seção de intervenção desconhecida?

Se tudo tivesse sido feito dentro das normas, Zalachenko teria sido entregue à contra-espionagem. No melhor dos casos, o serviço de informação militar teria cuidado dele. Só que eles não tinham nem recursos nem competência para realizar esse tipo de intervenção. Então tinha sido a Sapo.

E a contra-espionagem jamais tivera esses recursos e competência. A chave era Bjõrck; ele obviamente tinha sido um dos que administraram Zalachenko. Mas Bjõrck nunca tivera nenhuma ligação com a contra-espionagem Bjõrck era um mistério. Oficialmente, desde os anos 1970 ele tinha um cargo na Brigada dos Estrangeiros, mas na prática ninguém o vira no departamento antes dos anos 1990, quando foi repentinamente nomeado chefe-adjunto.

Bjõrck, no entanto, era a principal fonte de informações de Blomkvist. Como Blomkvist conseguira que Bjõrck lhe revelasse tamanhas bombas em potencial? A ele, um jornalista?

As prostitutas. Bjõrck freqüentava prostitutas adolescentes e a Millennium pretendia denunciá-lo. Blomkvist devia ter chantageado Bjõrck.

Em seguida, Lisbeth Salander entrara na história.

O falecido Dr. Nils Bjurman trabalhara na Brigada dos Estrangeiros na mesma época que o falecido Bjõrck. Eles é que receberam Zalachenko. Mas o que tinham feito com ele?

Alguém havia, necessariamente, tomado as decisões. Com um desertor daquele gabarito, a ordem tinha que ter vindo do alto.

Do governo. Devia haver uma ligação. Ou seria impensável.

Impensável?

O mal-estar fazia Edklinth suar frio. Em termos oficiais, aquilo tudo era compreensível. Um desertor da importância de Zalachenko precisava ser tratado com o maior sigilo. Ele próprio teria decidido assim. E era isso que o governo Falldin devia ter decidido. Fazia sentido.

Em compensação, o que acontecera em 1991 não era nem um pouco normal. Bjõrck contratara Peter Teleborian para mandar internar Lisbeth Salander numa clínica de psiquiatria infantil, com o pretexto de que ela era psiquicamente perturbada. Isso constituía um crime. Um crime tão gigantesco que Edklinth tornou a suar frio.

Alguém tomara essas decisões. Nesse caso, não podia ter sido o governo... Ingvar Carlsson fora primeiro-ministro, seguido por Carl Bildt. Mas nenhum político se atreveria a considerar uma decisão que ia tão totalmente contra qualquer lei e qualquer justiça, e que resultaria num escândalo catastrófico caso fosse descoberta.

Se o governo estava envolvido nesse caso, a Suécia não era melhor que a pior ditadura do mundo.

E isso não era possível.

Depois, vieram os fatos de 12 de abril em Sahlgrenska. Zalachenko muito oportunamente morto por um justiceiro doente mental, enquanto um assalto ocorria no apartamento de Mikael Blomkvist, e Annika Giannini sofria una agressão. Em ambos os casos, o estranho relatório de 1991 de Bunnar Biõrck fora roubado. Essa era uma informação passada por Dragan Armanskij ern caráter confidencial. Porque nenhuma queixa havia sido registrada.

E, simultaneamente, Gunnar Bjõrck resolvera se enforcar. Logo ele que, entre tantos outros, Edklinth teria gostado de enfrentar numa conversa séria, olhos nos olhos.

Torsten Edklinth não acreditava no acaso quando este assumia tais dimensões. O inspetor criminal Jan Bublanski não acreditava num acaso assim. Mikael Blomkvist não acreditava. Edklinth pegou novamente a caneta.

Evert Gullberg, setenta e oito anos. Especialista em assuntos fiscais???

Quem era esse maldito Evert Gullberg?

Pensou em ligar para o diretor da Sapo, mas desistiu, pelo simples fato de que ignorava até que escalão remontava a conspiração. Ou seja, ele não sabia em quem confiar.

Tendo eliminado a hipótese de procurar alguém da Sapo, considerou por um momento procurar a polícia comum. Jan Bublanski conduzia as investigações sobre Ronald Niedermann e certamente teria interesse em alguma informação anexa. Mas, do ponto de vista político, isso era impossível.

Sentiu um fardo enorme pesar sobre seus ombros.

No fim das contas, só lhe restava uma saída constitucionalmente correta e que talvez representasse uma proteção caso, no futuro, caísse em desgraça política. Precisava dirigir-se ao chefe a fim de obter apoio político para seus atos.

Olhou a hora. Quase quatro da tarde. Pegou o telefone e ligou para o ministro da Justiça, que conhecia havia muitos anos e com quem estivera em inúmeras palestras no ministério. Conseguiu tê-lo na linha em menos de cinco minutos.

— Olá, Torsten — disse o ministro da Justiça. — Quanto tempo! A que se deve esta chamada?

— Para ser franco, acho que estou ligando para conferir qual a minha credibilidade junto a você.

— Credibilidade? Que pergunta. Sua credibilidade comigo é muito grande. Por que essa pergunta esquisita?

— Porque depois dela vem um pedido sério e fora do comum... Preciso me encontrar com você e com o primeiro-ministro, e com urgência.

— Só isso?

— Para poder explicar, gostaria que estivéssemos bem confortáveis e a sós. Estou com um caso tão espantoso aqui na minha mesa que queria informar você e o primeiro-ministro a respeito.

— Parece sério.

— É sério.

— Tem alguma coisa a ver com terrorismo ou ameaças...

— Não. E ainda mais sério. Com esta ligação para você, estou arriscando a minha reputação e a minha carreira. Eu não teria esse tipo de conversa se não julgasse que a situação é extremamente grave.

— Compreendo. Por isso a pergunta sobre sua credibilidade... Você queria se encontrar com o primeiro-ministro quando?

— Ainda hoje à noite, se possível.

— Você está me deixando preocupado.

— Receio que você tenha todos os motivos para ficar preocupado.

— O encontro deve durar quanto tempo? Edklinth refletiu.

— Acho que vou precisar de uma hora para resumir todos os detalhes.

— Eu ligo para você daqui a pouco.

O ministro da Justiça ligou quinze minutos depois dizendo que o primeiro-ministro tinha a possibilidade de receber Torsten Edklinth em sua residência naquela noite, às nove e meia. Edklinth estava com as mãos úmidas quando desligou. Bem, puxa vida, não é impossível que amanhã de manhã minha carreira esteja encerrada.

Pegou o telefone e ligou para Rosa Figuerola.

— Oi, Rosa. Apresente-se às vinte e uma horas para o serviço. Traje adequado obrigatório.

— Estou sempre com um traje adequado — disse Rosa Figuerola.

O primeiro-ministro contemplava o diretor da Proteção à Constituição com um olhar que só poderia ser qualificado de cético. Edklinth podia imaginar engrenagens rodando a toda a velocidade por trás dos óculos do homem.

O primeiro-ministro desviou o olhar para Rosa Figuerola, que não abrira boca durante a uma hora de explanação. Viu uma mulher muito alta e musculosa que retribuía seu olhar com uma polidez repleta de expectativa.

Então voltou-se para o ministro da Justiça, que empalidecera ligeiramente durante a explanação.

Por fim, o primeiro-ministro respirou fundo, tirou os óculos e deixou seu olhar se perder ao longe.

— Acho que vamos precisar de mais um café — disse por fim.

— Sim, obrigada — disse Rosa Figuerola.

Edklinth meneou a cabeça e o ministro da Justiça pegou a garrafa térmica.

— Deixem eu fazer um resumo para ter certeza de que entendi tudo direito — disse o primeiro-ministro. — Vocês desconfiam que exista uma conspiração dentro da Sapo, a qual estaria extrapolando suas atribuições constitucionais, e que, com o passar dos anos, essa conspiração manteve atividades que só podemos qualificar de criminosas.

Edklinth fez que sim com a cabeça.

— E vocês vieram me procurar porque não confiam na direção da Sapo.

— Sim e não — respondeu Edklinth. — Resolvi procurá-lo porque esse tipo de atividade contraria a Constituição, mas desconheço o objetivo da conspiração e não sei se posso ter interpretado mal algum elemento. Essa atividade poderia, afinal, ser legítima, e pode ter o aval do governo. Nesse caso, eu estaria partindo de informações erradas ou mal interpretadas e estaria arriscado a revelar uma operação secreta em andamento.

O primeiro-ministro olhou para o ministro da Justiça. Ambos compreendiam que Edklinth tomasse suas precauções.

— Nunca ouvi falar em nada parecido. Você está a par de alguma coisa?

— Em absoluto — respondeu o primeiro-ministro. — Não vi nada em nenhum relatório da Segurança que pudesse confirmar essa história.

— O Mikael Blomkvist acha que se trata de um grupo dentro da Sapo. Ele o chama de clube Zalachenko.

— Nunca ouvi falar nisso. A Suécia teria acolhido e mantido um dissidente russo desse calibre... Quer dizer que ele desertou durante o governo de Fãlldin...

— Custo a acreditar que Fãlldin tenha ocultado uma história dessas. - disse o ministro da Justiça. — Uma deserção dessa importância era para ser passada em absoluta prioridade para o governo seguinte.

Edklinth pigarreou.

— O governo de direita deixou para Olof Palme. Não é segredo para ninguém que alguns dos meus antecessores na Sapo tinham uma opinião bem particular sobre Palme...

— Quer dizer que alguém teria esquecido de informar o governo social -democrata...

Edklinth concordou com a cabeça.

— Eu gostaria de lembrar que Fãlldin cumpriu dois mandatos. Em ambas as ocasiões, o governo rachou. Na primeira vez, ele cedeu o lugar para Ola Ullsten, cujo governo era minoritário em 1979. Depois, o governo se fragmentou pela segunda vez, quando os moderados abandonaram o barco e Fãlldin governou com os liberais. Desconfio que a chancelaria do governo estava próxima do caos durante essas transferências de poder. É até possível que um caso como o de Zalachenko tenha permanecido num círculo tão restrito que o primeiro-ministro Fãlldin nem tomou conhecimento dele, de forma que nunca teve coisa alguma para repassar ao Palme.

— Nesse caso, quem seria o responsável? — perguntou o primeiro-ministro.

Todos, com exceção de Rosa Figuerola, balançaram a cabeça.

— Suponho que seja inevitável a imprensa ficar sabendo — disse o primeiro-ministro.

— O Mikael Blomkvist e a Millennium vão publicar. Ou seja, estamos numa posição incômoda.

Edklinth tivera o cuidado de usar a palavra nós. O primeiro-ministro meneou a cabeça. Entendia a gravidade da situação.

— Bem. Em primeiro lugar, queria lhe agradecer por ter me informado desse caso tão rapidamente. Não costumo aceitar encontros desse tipo sem aviso prévio, mas o ministro da Justiça me garantiu que o senhor era um homem sensato e que necessariamente algo extraordinário estava acontecendo, para que quisesse me ver assim, driblando todos os canais de praxe.

Edklinth respirou um pouco melhor. O que quer que acontecesse, não ria fulminado pela fúria do primeiro-ministro.

- Agora só nos resta resolver como administrar tudo isso. O senhor tem alguma sugestão?

— Talvez — respondeu Edklinth, hesitante.

Permaneceu calado por tanto tempo que Rosa Figuerola acabou dando uma tossidinha.

— Posso falar?

— Pois não — disse o primeiro-ministro.

— Se é mesmo verdade que o governo não está a par dessa operação, isso significa que ela é ilegal. Em casos assim, o criminoso é o responsável, ou seja, é o funcionário, ou os funcionários do Estado, que extrapolou suas atribuições. Se conseguirmos provar tudo o que Mikael Blomkvist afirma, significa que um grupo de funcionários da Segurança dedicou-se a uma atividade criminosa. O problema assume então dois aspectos.

— O que você quer dizer com isso?

— Em primeiro lugar, precisamos responder às perguntas: como isso foi possível? Quem é o responsável? Como uma conspiração dessas pode ter se realizado no âmbito de um órgão policial legitimamente estabelecido? Permita-me lembrar que eu mesma trabalho para a DGPN/Sapo, e me orgulho disso. Como isso pode ter se prolongado por tanto tempo? Como essa atividade pôde ser dissimulada e financiada?

O primeiro-ministro concordou com a cabeça.

— Esse aspecto vai ser abordado em livros que serão publicados — prosseguiu Rosa Figuerola. — Mas uma coisa é certa: existe necessariamente um financiamento, e ele deve girar em torno de vários milhões de coroas por ano. Examinei o orçamento da Segurança e não encontrei nada que pudesse ser chamado de clube Zalachenko. Mas, como sabem, existem alguns fundos secretos a que o secretário-geral e o diretor do orçamento têm acesso, e eu não.

O primeiro-ministro balançou a cabeça com tristeza. Por que a gestão da época sempre significava pesadelo?

— O outro aspecto diz respeito aos personagens principais dessa história. Mais precisamente, às pessoas que convém apanharmos.

O primeiro-ministro fez um muxoxo.

— Na minha opinião, as respostas a essas perguntas dependem da decisão que o senhor vai tomar dentro de alguns minutos.

Torsten Edklinth prendeu a respiração. Se pudesse, teria desfechado um pontapé na tíbia de Rosa Figuerola. Ela acabava de entrar de sola na retórica afirmando que o primeiro-ministro era pessoalmente responsável. Ele próprio cogitara chegar a essa conclusão, mas somente após uma longa digressão diplomática.

— Que decisão a senhora acha que devo tomar? — perguntou o primeiro-ministro.

— Quanto a nós, temos interesses em comum. Eu trabalho há três anos na Proteção à Constituição e considero essa missão de uma importância crucial para a democracia sueca. Nesses últimos anos, a Segurança se conduziu corretamente, dentro da Constituição. Para nós, é importante deixar claro que se trata de uma atividade criminosa comandada por indivíduos que agiram por conta própria.

— Esse tipo de atividade não conta, definitivamente, com o aval do governo — disse o ministro da Justiça.

Rosa Figuerola meneou a cabeça e refletiu por alguns segundos.

— De sua parte, imagino que o senhor não queira que esse escândalo atinja o governo, o que aconteceria se o governo tentasse ocultar o caso — disse ela.

— O governo não tem o hábito de ocultar atividades criminosas — disse o ministro da Justiça.

— Não, mas vamos, hipoteticamente, supor que ele tenha vontade de fazer isso. Nesse caso, o escândalo seria incalculável.

— Prossiga — disse o primeiro-ministro.

— A situação atual se complica com o fato de nós, da Proteção à Constituição, sermos obrigados a praticar ações que contrariam o regulamento para termos uma chance mínima de elucidar essa história. Gostaríamos que isso se desse do modo jurídica e constitucionalmente correto.

— É o que todos nós queremos — disse o primeiro-ministro.

— Sendo assim, sugiro que, na qualidade de primeiro-ministro, o senhor ordene que a Proteção à Constituição esclareça essa confusão o quanto antes. Que nos forneça uma ordem de missão por escrito e as autorizações necessárias.

- Não estou certo de que o que está sugerindo seja legal — disse o ministro da Justiça.

— Sim, é legal. O governo tem poder para tomar decisões mais amplas caso de ameaça à Constituição. Se um grupo de militares ou policiais começar a conduzir uma política independente do Ministério de Relações Exteriores, significa que houve um golpe de Estado em nosso país.

- Relações Exteriores? — perguntou o ministro da Justiça.

O primeiro-ministro balançou subitamente a cabeça.

— O Zalachenko era um dissidente de uma potência estrangeira — disse Rosa Figuerola. — Segundo o Mikael Blomkvist, ele transmitia informações para serviços de inteligência estrangeiros. Se o governo não foi informado, significa que houve um golpe de Estado.

— Entendo aonde você quer chegar — disse o primeiro-ministro. — Agora, deixe-me expressar a minha opinião.

O primeiro-ministro se levantou e deu a volta na mesa. Parou diante de Edklinth.

— O senhor tem uma colaboradora inteligente. E que, além disso, fala sem papas na língua.

Edklinth engoliu em seco e meneou a cabeça. O primeiro-ministro voltou-se para o seu ministro da Justiça.

— Chame seu secretário de Estado e o diretor jurídico. Amanhã de manhã, quero um documento que dê à Proteção à Constituição poderes extraordinários para atuar neste caso. A missão consiste em definir o grau de veracidade das afirmações que nos preocupam, reunir uma documentação sobre sua amplitude e identificar as pessoas responsáveis ou implicadas.

Edklinth assentiu com a cabeça.

— Esse documento não diz que vocês vão conduzir um inquérito preliminar; posso estar enganado, mas acho que nesse estágio só o procurador-geral da nação pode indicar o responsável por um inquérito preliminar. Em compensação, posso encarregá-lo da missão de conduzir sozinho uma investigação com o objetivo de descobrir a verdade. Portanto, vai conduzir uma investigação oficial do Estado. Está me acompanhando?

— Sim. Mas, se me permite observar, eu mesmo sou um ex-procurador.

— Humm. Vamos pedir que o diretor jurídico dê uma olhada e defina 0 que é oficialmente correto. Seja como for, o senhor é o único responsável por essa investigação. Pode designar os colaboradores de que vai precisar. Se encontrar provas de alguma atividade criminosa, deverá transmiti-las ao Ministério Público, que decidirá sobre eventuais ações judiciárias.

— Tenho que verificar nos textos o que, exatamente, está em vigor, mas me parece que o senhor tem obrigação de informar o porta-voz do governo e a Comissão Constitucional... isso tudo virá à tona rapidamente — disse o ministro da Justiça.

— Ou seja, vamos ter que agir depressa — disse o primeiro-ministro.

— Humm — fez Rosa Figuerola.

— O que foi? — perguntou o primeiro-ministro.

— Ainda há dois problemas... Em primeiro lugar, a publicação da Millennium poderia se chocar com a nossa investigação e, em segundo, o julgamento da Lisbeth Salander vai começar em poucas semanas.

— Temos como saber quando a Millennium pretende publicar?

— Não custa perguntar — disse Edklinth. — A última coisa que queremos é nos envolver no trabalho da imprensa.

— No que diz respeito à Salander... — começou a dizer o primeiro--ministro. Refletiu por um momento. — Seria terrível descobrir que ela realmente foi vítima dos abusos relatados pela Millennium... isso pode ser mesmo verdade?

— Creio que sim — disse Edklinth.

— Nesse caso, precisamos garantir que ela seja indenizada e, antes de mais nada, que não volte a ser vítima de outro abuso de poder — disse o primeiro-ministro.

— E como vamos fazer isso? — perguntou o ministro da Justiça. — O governo não pode, de modo algum, interferir numa ação judicial em andamento. E contra a lei.

— Talvez pudéssemos falar com o procurador...

— Não — disse Edklinth. — Como primeiro-ministro, o senhor não pode influenciar no processo judiciário.

— Em outras palavras, a Salander terá que travar seu combate no tribunal — disse o ministro da Justiça. — E só se ela perder o processo e apelar e que o governo pode intervir para indultá-la ou ordenar ao Ministério Público que avalie se é o caso de reabrir o processo.

E acrescentou:

- Mas isso só vale se ela for condenada a uma pena prisional. Se ela for condenada a uma internação psiquiátrica, o governo nada pode fazer. Quando se trata de uma questão de ordem médica, não compete ao primeiro-ministro determinar se ela é mentalmente sã ou não.

Às dez da noite de sexta-feira, Lisbeth Salander escutou a chave na fechadura. Desligou imediatamente o computador de mão e o enfiou debaixo do travesseiro. Quando levantou os olhos, viu Anders Jonasson fechando a porta.

— Boa noite, senhorita Salander — disse ele. — Como vai?

— Estou com uma dor de cabeça terrível e me sinto febril — disse Lisbeth.

— Isso não é nada bom.

Lisbeth não parecia particularmente incomodada com a febre nem com a dor de cabeça. Anders Jonasson examinou-a por dez minutos. Verificou que no início da noite a febre tornara a subir bastante.

— E uma pena que isso esteja acontecendo agora, quando você estava se restabelecendo tão bem. Infelizmente, não vou poder lhe dar alta antes de pelo menos duas semanas.

— Duas semanas são suficientes. Ele fitou-a demoradamente.

A distância entre Londres e Estocolmo pela estrada é, por alto, de mil e oitocentos quilômetros, e teoricamente são necessárias vinte horas para percorrê-los. Na prática, foram quase vinte horas só para chegar à fronteira da Alemanha com a Dinamarca. O céu estava coberto por nuvens pesadas como chumbo, e na segunda-feira, enquanto o homem que se apresentava como Trinity atravessava a ponte de 0resund, a chuva desabou. Ele reduziu a velocidade e acionou os limpadores do pára-brisa.

Trinity achava um pesadelo dirigir na Europa, com o continente inteiro teimando em andar do lado errado da estrada. Preparara sua caminhonete no sábado de manhã e pegara a balsa de Doves para Calais, em seguida atravessara a Bélgica passando por Liège. Cruzara a fronteira alemã em Aix-la-Chapel-le e subira pela auto-estrada em direção a Hamburgo e depois Dinamarca.

Seu sócio, Bob the Dog, dormia no banco traseiro. Tinham se revezado na direção e, exceto por algumas paradas de uma hora para comer, mantiveram uma velocidade regular de noventa quilômetros por hora. Com dezoito anos de idade, a caminhonete não tinha condições de andar mais rápido.

Havia maneiras mais simples de ir de Londres a Estocolmo, mas infelizmente era pouco provável que se pudesse entrar na Suécia com cerca de trinta quilos de equipamento eletrônico fazendo um vôo regular. Embora tivessem cruzado seis fronteiras durante o trajeto, Trinity não fora parado por nenhum aduaneiro ou policial. Ele era um ardente partidário da União Européia, cujas regras simplificavam as visitas ao continente.

Trinity estava com trinta e dois anos e nascera na cidade de Bradford, mas desde criança morava no norte de Londres. Tivera uma formação bastante medíocre, uma escola profissionalizante que lhe fornecera um diploma de técnico em telefonia, e depois dos dezenove anos, ele de fato trabalhara como instalador na British Telecom por três anos.

Na verdade, tinha conhecimentos teóricos em eletrônica e informática que lhe permitiam encarar sem problema discussões em que superava qualquer especialista no assunto. Vivera no meio de computadores desde os dez anos, e pirateara seu primeiro computador aos treze. Isso aguçara sua vontade e, aos dezesseis anos, já evoluíra tanto, que podia ser comparado aos melhores do mundo. Em determinada ocasião, passara cada minuto do seu dia acordado diante da tela do computador, criando seus próprios programas e jogando spams na rede. Conseguiu se infiltrar na BBC, no Ministério da Defesa inglês e na Scotland Yard. Conseguiu até assumir por algum tempo o comando de um submarino nuclear britânico que patrulhava o Mar do Norte. Felizmente, Trinity era mais um curioso do que um gênio do mal da informática. Seu fascínio acabava assim que conseguia invadir um computador e descobria um acesso a seus segredos. Quando muito, permitia-se uma brincadeira de moleque do tipo configurar um computador de submarino para que ele convidasse o capitão a limpar a bunda quando este solicitava uma posição. Esse incidente provocara uma série de reuniões de emergência no Ministério da Defesa, e Trinity acabara entendendo que talvez não fosse uma boa idéia se gabar de seus conhecimentos numa época em que os governos não estavam brincando quando ameaçavam condenar os hackers a pesadas penas de prisão.

Trinity fizera o curso de técnico em telefonia porque já sabia como funcionava a rede telefônica. Logo constatara como tudo estava desesperadoramente obsoleto e se tornara consultor de segurança para instalação de alarmes e supervisão de sistemas contra roubo. Para alguns clientes cuidadosamente selecionados, ele também podia oferecer serviços exclusivos, como vigilância e escuta telefônica.

Era um dos fundadores da Hacker Republic, da qual Wasp era uma das cidadãs.

Eram sete e meia da noite de domingo quando Trinity e Bob the Dog entraram no subúrbio de Estocolmo. Estavam passando por Kungens kurva, em Skárholmen, quando Trinity pegou o celular e discou um número que havia decorado.

— Praga — disse Trinity.

— Onde vocês estão?

— Você pediu para eu ligar quando a gente passasse pela Ikea.

Praga explicou como chegar ao albergue da juventude de Lângholmen, onde fizera uma reserva para seus colegas ingleses. Embora Praga quase nunca saísse de seu apartamento, combinaram de se encontrar lá às dez horas do dia seguinte.

Depois de refletir um instante, Praga resolveu fazer um esforço imenso e encarou a louça suja, a faxina e a ventilação do local para receber seus convidados.


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